154. Madonna; diabo; caretas; excessos; backing track; divas; especialista; bagre; calor; portal; viuvez; futuro; link; canela
Sábado passado a Madonna deu um show no Rio de Janeiro, mais precisamente na praia de Copacabana, para uma audiência in loco que pode ter sido de quinhentas mil pessoas ou de um milhão e meio: diz um ditado velho que quem conta um conto aumenta um ponto – um ponto ou um milhão. Por ser na praia, o show não cobrou ingresso, mas a... vamos chamá-la de cantora levou dezessete milhões de reais pela apresentação, pagos não sei por quem, talvez pela prefeitura da cidade. Sua entourage, que deve ser grande, não incluía entretanto nenhum músico. Madonna é uma cantora sem banda: seus shows não têm guitarrista, baterista, pianista, nem sequer um cabeludo de terno feio e óculos rosados soprando um saxofone ou as tradicionais cantoras gordinhas de fundo. Parece que tudo o que ela trouxe foi uns bailarinos, o cenário e um computador com as faixas pré-gravadas (que levam o nome técnico de backing tracks) em cima de algumas das quais (não de todas), hum, canta.
Justo, portanto, muito justo que não tenham cobrado entrada.
Leio que ela andou reclamando do calor, dos barulhos (o geral da terra e o particular de seus fãs) e talvez de dores nas costas e nos joelhos. Isto de se queixar do calor e das dores nas juntas entendo bem, ainda que eu seja bem mais novo do que a material old lady: é tudo queixa minha recorrente. Já reclamar dos fãs, não: se ela for, como se alega, uma diva, uma divindade, os fez à sua imagem e semelhança, e a esse caso a gente aplica um outro ditado: quem pariu Mateus que o embale. Ou quem pariu “os maus teus”, os maus dela: ela que embale os seus maus.
Lembro dela nos anos 80: loira falsa, bonitinha sem ser linda, certinha sem ser lá muito gostosa, não fazendo feio na dança, semitonando pouco no estúdio e muito ao vivo, apareceu para o mundo saracoteando numa gôndola e dizendo que seu amor do momento a fazia se sentir como uma virgem; depois, de vestidão vermelho, cantou que beleza não põe a mesa, mas dinheiro sim: only boys that save their pennies make my rainy day. Parecia música, ainda que música pra deixar pra lá com o fim da estação. Então ela foi aos poucos descobrindo que escândalos propelem hits, e passou a criar escândalos para vender discos e vendê-los, os próprios escândalos, como “arte”: papai, não amola, engravidei mesmo e pronto; quando eu te chupo, garotão, é como se eu estivesse rezando; quero te pôr em transe; shows linha “chanchada nacional”, isto é, com o tal sexo simulado; boquete em gargalo de champã; e por aí vai. As cafajestagens chocavam, de início bastante, depois cada vez menos: o excesso enjoa e, a partir de uma certa idade, a única fornicação que interessa é a que gente faz – se a gente for são, é claro. E as fornicações dela sempre foram forçadas: ela tem cara de quem dorme com bobes e cremes no rosto, e tem um livro da Shirley MacLaine na cabeceira. Fez um livro de fotos que oscilavam entre o kitsch P&B e a falta de coragem de partir pro hardcore, em que aparecia pelada com um corpinho de rã e nenhuma foto excitava ou acendia alguma faísca; era de prever que o próximo passo fosse, mais dia, menos dia, sair pelas ruas de Nova York (ou de Miami; ela é chegada em latinos) num carro alegórico com mandiocas, nabos ou cenouras cravados nas partes, talvez relinchando sobre algum beat dançante.
Em vez disso saiu em turnê no começo dos anos 90 e filmou tudo, as simulações todas (a película se chamou, cá no Brasil, “Na cama com Madonna”). Naquela época ela tinha banda, mas ninguém aparecia, e nem sei se lhes davam os nomes nos créditos. O core business dela é musical só no embrulho. Meteu-se a atriz, e virou ioiô nas mãos de todos os competentes com quem contracenou (Rosanna Arquette, Warren Beatty, etc.).
Durante esse tempo todo, no entanto, ela se parecia com um ser humano. Uma mulher normal: no lugar da boca, uma boca; no lugar das bochechas, bochechas; no lugar das sobrancelhas, sobrancelhas. Daí sumiu por uns tempos e voltou transformada numa espécie de pato de borracha, esse mesmo pato que veio libertar o Rio de Janeiro de horrores conservadores totalmente imaginários com sua arte, mediante o preço módico de que falei. Se filmasse hoje “Na banheira com Madonna”, ela apareceria flutuando. Quiçá grasnando o que um fã confundiria com uma canção de ninar.
À beira dos 57, posso dizer que sou velho o suficiente para lembrar do tempo em que as celebridades tinham pelo menos cara de gente.
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Não vi o show. Li descrições, vi umas fotos. Amigos que viram disseram que foi uma espécie de ritual satânico. Não duvido, mas também não levo a sério demais: se a coisa teve algo a ver com diabos, deve ter sido com o baixo clero. O próprio Satã é como a Nike ou a Coca-Cola, só se envolve com garotos-propaganda menos datados.
A menos, é claro, que a ideia seja manter gays e cinquentões deslumbrados, achando que a visão de uma velhota pendurada nas ancas de um travesti lhes outorgue algum tipo qualquer de alforria. Pelo que li nos “portais de notícias”, a impressão que deixou foi essa mesmo.
Bom, o diabo deve fazer lá suas pesquisas de opinião.
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Ainda com relação ao show (dá vontade de escrever chôu) da Madonna, li gente se referindo a quem não gostou ou não deu bola como “caretas”. Eu sou velho o suficiente para ter conhecido essa gíria, que é um pouco mais nova do que eu – deve ter surgido ali entre 1970 e 1972 –, no seu sentido original, que era o do sujeito que não ia na onda mucholôca da rapaziada, e até a criticava. Depois de algum tempo, essa gíria começou a ser aplicada ao cigarro comum, de tabaco, em oposição ao de maconha: vou fumar um careta, dizia-se (talvez se diga ainda) para falar lá do seu Camel. Agora, com relação ao chôu, parece que deram à gíria um significado novo: não-homossexual.
Por mim, tudo bem.
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Se, entretanto, em matéria de dar publicidade excessiva a excessos fabricados poucos rivalizam com a senhorinha do chôu, o fato é que ela é biriba ante os excessos verdadeiros de músicos idem. E nem falo dos caras do rock, veja bem. Li uma vez uma entrevista do Miles Davis, dada perto do fim da vida, em que o entrevistador perguntava se ele tinha saudades do ambiente do jazz dos anos 50, birth of the cool e tal. Ele respondeu mais ou menos o seguinte:
— De jeito nenhum. Era a maior merda. Você queria gravar e tinha que adiar a sessão em cima da hora porque o baixista tinha posto o baixo no prego para comprar heroína, o saxofonista estava em cana porque tentou esfaquear a mulher, o baterista se mandou para tocar num cassino pelo dobro da grana, o pianista queria desistir de tudo e virar vendedor da Sear’s. Você tinha que refazer a banda praticamente toda semana.
Sugiro ainda ao amigo que leia, se e quando quiser, biografias da Billie Holiday (há uma, muito boa e resumida, em Saudades do século XX, do Ruy Castro), do Chet Baker e do Nelson Ned (que não era do jazz, mas também não era do rock). Para começar.
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A diferença entre backing track e playback é que, no primeiro, a pessoa canta sobre uma gravação quase completa, apenas sem a voz principal, e, no segundo, a pessoa faz mímica sobre uma gravação completa, com a voz já posta. É essa a diferença musical que há entre um show da Madonna e um show de travestis ou um videoclipe.
Diferença, asseguram por aí, fundamental.
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Pode ser que a Madonna, no estado atual de pato de borracha, ainda seja diva dos gays, mas a verdade é que qualquer show grátis na praia (ou na praça, na avenida, em qualquer lugar público) é uma diva dos ladrões.
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Entrevista com um especialista em extrema-direita.
O repórter:
— A extrema-direita costuma fazer algum tipo de pintura corporal quando parte para a guerra?
O estudioso da extrema-direita, calçando um sandalhão de couro cru, vestindo um abadá de 36 cores e tentando afinar o couro de uma cuíca:
— Depende da tribo. Alguns já fizeram isto, mas a maioria prefere se disfarçar do que chamam de “gente de bem”, coisa que aliás sabemos que não existe, nunca existiu. Só é “de bem” quem assume que é do mal.
— A extrema-direita já conhece a agricultura?
— Embora aleguem que sim, para defender o nefasto agronegócio, a verdade é que nenhum deles tem em casa um vaso com um pezinho de maconha que seja, nem cuida de nenhuma horta comunitária. Portanto, não conhecem, não sabem nada.
— E eles já sabem cozer seus alimentos?
— Se você chama os cadáveres de animais de “alimentos”, talvez saibam. Eu é que não vou entrar nas cozinhas deles para descobrir.
— Se alguém de extrema-direita me oferecer um docinho, um bombom... devo aceitá-lo?
— Jamais, jamais. O risco de estar envenenado com substâncias extremamente direitistas, tipo açúcar ou chocolate, é muito alto.
— Se alguém de extrema-direita me abordar na rua, na condução, numa praça, o que devo fazer?
— Grite, grite bem alto toda vez que ele tentar dizer alguma coisa. E saia correndo assim que puder. Proteja-se. E nunca chame a polícia, porque a polícia, todo mundo sabe, é o braço armado da extrema direita.
Etc., etc.
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Ainda na rubrica da velhice: o jogador ruim, que hoje chamam só de “bagre”, era chamado, nos tempos antigos e heróicos, de “cabeça de bagre”. O mais frequente, entretanto, é que o jogador ruim fosse chamado de “perna de pau”, expressão que ainda vige, mas não sei até quando: parece que o “bagre”, essa abreviação, veio para ficar.
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Escrevo no meio da canícula de maio, a onda de calor extemporânea que está estragando este mês querido de luz amarela, de tardinhas de vento gelado e do meu aniversário. Leio, num desses “portais de notícias”, um assessor de imprensa do governo, disfarçado de jornalista, dizendo que esse calorão todo é tema de eleição, e me pergunto se acreditaria num candidato – talvez um desses candidatos que o rapaz defende nos jornais – que prometesse o fim das ondas de calor se fosse eleito. Claro que não. Mas, se quiserem prometer, que prometam.
Suo e sofro no meio dos preparativos e dos leva-e-traz de uma mudança de casa para bairro distante vinte quilômetros. Carrego caixas – de livros, de roupas, de louças – sob o sol fervente e nada empático, suarento, unhas permanentemente sujas. Luto para achar carreto pagável (carretos impagáveis há de monte; tenho orçamentos absurdos no meu telefone), para fixar portas (o que se anda para achar dobradiças, meu Deus), para pintar batentes e limpar chão, fervo a moringa para ter uma ideia de como transportar seis bichos e como viver com eles em apartamento. O calor e a vecchiaia me dão tonturas.
Uma amiga diz: três mudanças equivalem a um incêndio, uma mudança para longe equivale a três incêndios. Bom, tá tudo pegando fogo mesmo. Dá vontade de cantar a marchinha do “tomara que chova três dias sem parar”, mas as últimas tragédias mostram que raro é lugar do país que aguenta, já nem digo três dias, mas três horas de toró. Vamos, pois, suando.
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Aliás, “portais de notícias”. Portal é uma palavra que remete a alguma coisa solene: tanto a porta principal de uma edificação quanto os ornamentos dela. Os portões monumentais de uma catedral são um portal; as portas magnificentes de um palácio, idem; o Érebo tinha o seu; a Muralha da China, quero crer, também; e até um buraco de alguns anos-luz de extensão, rodeado de galáxias no meio do cosmos, é um portal.
É difícil, portanto, aplicar a sério essa palavra para sites de internet que mancheteiam as preferências sexuais de estrelas de TV no ocaso quer da fama, quer da forma, ou que se dediquem à defesa contumaz do governo.
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Assim como Vinícius de Morais, acertadamente, apresentava sua última mulher como “minha viúva”, a casa para onde estou me mudando talvez seja minha última, e pois minha viúva. Minha casa viúva.
Se Vinícius, entretanto, era presunçoso de dizer com que mulher morreria, eu não sou de dizer em que imóvel morrerei. Pode ser num quarto de hospital, rodeado de gente e de máquinas de apitam de cinco em cinco segundos (se for assim, morrerei irritado). Pode ser no meio da rua, cômodo de infelizes. Pode ser no banheiro, cômodo incômodo. Pode ser no elevador ou no metrô, cômodos em movimento. Só é certo que em algum canto será, frase que é um cômodo acaciano.
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Nos meus tempos de faculdade tive um professor de literatura, homem de ironia e de esquerda, a quem desagradava a ideia da morte anódina num hospital. No entender dele, isso era ou parecia ser menos humano do que morrer em casa, na própria cama, rodeado pelos amados ou pelos odiados, segundo a praxe dos milênios que antecederam Florence Nightingale, os protocolos sanitários e os remédios veia adentro. Consta que esse professor, que era aliás muito bom, ainda está vivo, de sorte que sua humanidade ainda não foi, nesse aspecto ao menos, aviltada; me pergunto se a pandemia lhe mudou o pensamento.
O homem era, percebe-se, ateu. Ao sujeito religioso, onde e como se morre importa pouco – importa mais, muito mais, com que roupa, com que cara e com que currículo se vai chegar ao lado de lá. Porque disso depende seu futuro restante.
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Antes de ir, não se esqueça o amigo de clicar no link para a minha coluna nova na “Crusoé”.
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Não custa reforçar ao amigo: dê sua ajuda ao Sul assolado para entidades privadas ou pessoas generosas e capazes. O governo, todos os governos, quaisquer governos, são incompetentes, ladrões e só fazem bosta, só atrapalham. O povo é a melhor ajuda pro povo.
E não se esqueça jamais, amigo: sub sobrancelha est omnia canela.
Arrivederci.
Brilhante!
Acid newsletter but damn Good!