155. Área de atuação; ramo; -anço; lista; fuga; anos; fascismo; trash; luva; resistência; G; brasileiro; ONU; sonhos
The plain people of Pindorama.
O amigo tem “área de atuação”? Com isto quero saber se o amigo tem emprego, e de que tipo. Vi a expressão usada outro dia pelo técnico da seleção brasileira e pensei: caramba, se até os boleiros estão falando assim, é que a coisa pegou. Pensei que Myles se divertiria muito perguntando ao plain people of Pindorama suas áreas de atuação.
— Resgate de pendências – diz o cara que faz cobranças para agiotas.
— Alimentação – dizem tanto o padeiro quanto a mocinha de touca do balcão e o cara que varre a fábrica da Perdigão.
— Trading – diz a vendedora da loja de roupas do Brás.
— Realocação de bens – diz o ladrão.
— Entretenimento – dizem o funkeiro, a borrachuda do Only Fans e o traficante.
— Consultoria – diz aquele teu primo lá que ninguém sabe bem o que faz.
— Geração de conteúdo – diz aquela tua prima de cabelo verde que nunca sai do quarto.
— Comunicação – dizem o travesti, a tiquetóquer, o iutúber e toda aquela gente que é paga para defender o governo e se disfarça de jornalista.
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No meu tempo, “área de atuação” era chamada de “ramo”. “Não é do ramo” ainda é uma maneira que a gente da minha geração tem de se referir a quem é ruim no trabalho. E, claro, persiste o uso, hoje meio irônico, de se referir às “melhores casas do ramo”.
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O sufixo “anço” nunca augura nada de bom, mas “desamiganço” é uma palavra ótima para traduzir o desenxabido, amarrotado e relatorial unfriend. Se a língua tem uma palavra que unfrienda mais do que essa, que semelha uma voadora no peito e, ao mesmo tempo, uma baforada poderosa de cecê, não conheço.
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A lista a seguir circula por aí como sendo de autoria de Jorge Luís Borges, e reúne, de modo numerado, conselhos para leitores. Sei lá se é dele mesmo (se bem que não duvido: o estilo é bem o dele, e uma certa modéstia falsa também); ponho aqui porque concordo com praticamente tudo:
Se um livro te aborrece, largue. Não foi escrito para você.
O único jeito de ler é procurando prazer pessoal, alegria pessoal.
A leitura deve ser uma das formas da felicidade.
Cada leitura de um livro, cada releitura, cada lembrança dessa releitura renovam o texto.
Acho que o que li é muito mais importante do que o que escrevi.
A gente lê o que quiser, mas não escreve o que quer, e sim o que consegue.
A felicidade do leitor é maior do que a do escritor, já que o leitor não tem por que sentir preocupações ou angústia: só aspira à felicidade.
Não sei se sou bom escritor, mas sou sim bom leitor, o que é mais importante.
Todo livro é sagrado se chegar ao leitor para quem foi escrito.
Acho que quem tocar cada um dos meus livros tocará o homem. O leitor saberá que, quando a noite chegar, estaremos os dois sozinhos.
Nossos nadas diferem pouco; é banal e fortuita a circunstância de que você seja o leitor destes exercícios, e eu o redator.
Sou leitor hedonista: nunca permiti que o sentimento do dever interferisse numa disposição tão pessoal como é a aquisição de livros.
Que o leitor não invalide com razões humanas a fé momentânea que a arte exige de nós.
Um livro é uma coisa entre outras coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o universo indiferente, até que dê com seu leitor, com o homem destinado aos seus símbolos.
Sou leitor agradecido e eclético.
Que outros se vangloriem das páginas que escreveram; eu me orgulho das que li.
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As pessoas que reclamam de que leitura (ou outras formas de entretenimento) são “uma fuga” esperam de nós o quê? Que saiamos correndo para abraçar o que está aí?
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Em Portugal sei que ainda se usa; no Brasil me parece que anda raro se referir a aniversário como “fazer anos”. Ou “natalício”. Essa última, é verdade, judia do pobre, mas “fazer anos” era usado por todas essas cozinheiras que havia na TV – no tempo em que cozinhar era serviço de gente comum e não de artistas angustiados, roqueiros frustrados ou assistentes sociais de porcos e galinhas.
Bom, também tem o problema de “fazer ânus” e não passar no teste da leitura em voz alta. Até entre os pobres.
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Jornalista que aparece falando em “luta contra o fascismo” está falando, na verdade, em luta contra o Bolsonaro e contra quem votou nele. Quanto ao Bolsonaro: se quiserem cobri-lo de piche e de penas, vão em frente. O que me bodeia é a conversa-fiada: podiam ter mais coragem de mandar a real, “nosso negócio é atacar o Bôrso e pronto”. E os caras nem sabem que cazzo é fascismo: se soubessem, aplicariam a palavra imediatamente a Fidel Castro, ao Kim Bung-Bong da hora na Coreia do Norte, ou ao Maduro.
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Uma vez, tentando imaginar nomes de revistas de cultura pop dos anos 90, pensei em Mondo trasho. Indo ao gúgli conferir o ineditismo do título, descobri que houve um filme com esse nome, do final dos anos 60, dirigido por John Waters e estrelado, se é que o termo cabe, pelo travesti Divine. Waters foi o cara que dirigiu Pink flamingos, também estrelado pela drag anteriormente mencionada, o que dá uma ideia do que Mondo trasho deve ser (não vi, né, nem vou).
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“Servir como uma luva” é um clichê muito falso. Se o amigo já se meteu a fazer serviço de pedreiro, de pintor ou de eletricista, ou de enfermeiro, sabe que rara é a luva que serve direitinho nas mãos da gente. Ou são apertadas demais em nossos dedos gordos, ou são curtas demais em nossas mãos compridas, ou rasgam à toa à pressão do nosso movimento. Nenhuma luva serve como uma luva.
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O salvamento de um cavalo (ou de uma égua; não entendi bem) das enchentes do Rio Grande do Sul foi assaz louvado por um prócer do Governo; e a própria estadia do cavalo (ou da égua) no lugar de onde o (a) tiraram foi descrita, pelo mesmo luminar democrático, como um “ato de resistência”.
A esquerda gosta tanto de falar em “resistência” que agora aplica a palavra até a cavalos (ou éguas) ilhados em telhados. Muito que bem, ainda que a frase pareça uma forma de resistência à inteligência.
Li também na imprensa, sempre incansável quando a tarefa é impedir que a bola do Governo caia demais, que esse cavalo (ou égua) no telhado teve o condão de perturbar o geralmente imperturbável e angelical sono do nosso grande timoneiro. Bom, resgataram o animal, então fico feliz de saber que agora ele está dormindo melhor.
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Grafo Governo sempre assim, com “G” maiúsculo, porque, vamos admitir, minúsculo sou eu, minúsculos somos nós.
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Se você quiser tomar as calças de um brasileiro, basta convencê-lo de que usá-las é coisa de bobo.
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Uma característica do audiovisual e da nova literatura brasileira é a crença firme, inabalável, na ONU.
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Às vezes sonho que ando por certas ruas, à noite, ruas que podem ser de um bairro movimentado mas que nem sempre estão cheias – ruas que têm bondes e carros e pessoas e em que tudo parece limpo, ruas que se parecem com a minha lembrança de ruas assim na minha infância –, em todo caso, ruas que não existem deste lado do onirismo, ou que, se existem, nunca percorri nem sei onde ficam. Às vezes elas viram uma ladeira; outras vezes estão escuras; quando claras, a luz é amarela. Raramente, no entanto, é dia.
Às vezes, sonho com casas, casas onde já vivi, a casa em que moro, e casas que misturam todas: cômodos de uma, quintal de outra. Com alguma frequência sonho que estou indo à casa da minha avó paterna. É noite, claro; já sou adulto e me surpreendo um tanto de que a casa ainda exista, e de que eu seja capaz de encontrar a porta. Entro entretanto como se a porta não existisse, nem as escadas: há luz nos cômodos, mas não encontro ninguém, nem sequer um fantasma.
Uma vez sonhei com meu pai. Ele não sabia que minha mãe tinha morrido (ele morreu quase trinta anos antes dela). Tirava um dinheiro do bolso da camisa e me dava, muito irritado com a minha recusa, meio débil, de aceitar. Iluminava a cena um vitrô imenso da sala de um apartamento que não existe mais.
Amigos místicos, que tive e tenho muitos na vida, costumavam dizer que sonhos são avisos, premonições ou diagnósticos. Nos avisam do que nos espera (geralmente se não mudarmos tal ou qual conduta); prevêem coisas que acontecerão; ou expõem coisas que se passam dentro de nós sem que as percebamos ou compreendamos.
Pode ser (se bem que na rubrica do “pode ser” entra tudo: pode ser que eu tenha nascido na Lua, pode ser que eu seja um cabrito louco achando que sou homem e faço coisas de homens). Cuido, entretanto, que sonho com coisas de que tenho saudades, postas em imagens que me confundem, que baralham essas saudades com outras cartas que não entendo e que me preocupam, me assustam, me deixam inquieto.
Não tento resolver nada. Nem sei se dá. Ando lidando com um tempo que não tenho para tanto a fazer; ando cansado e irritado, o que tem ficado claro nestas newsletters pouco leves (esta e a penúltima). Mas não estou “coringando”, gerúndio repelente de verbo repelente que lembra filme e personagem repelentes. Estou só precisando de remédio para dormir.
Dormir, talvez não sonhar.
Torça aí, amigo, para eu conseguir. E até mais ler.
Acabo de descobrir essa pérola,ótimo!
Gosto de cumprimetar as pessoas pela sua "efeméride natalícia". Não cozinho na tevê, mas vivo numa caixinha de música do século XVIII.