157. Frases; salame; emprego; liberdade; pobres; pandeiro; direita; caminho; sensações; true news; descrença; normalidade; meritocracia; premium; vingança
Também não gosto de incels.
Frases imortais de gente idem. Frida Kahlo:
— Dejá que lo pateo yo.
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Falei semana passada de uma loja que só vende salames. Errei: vende mais coisas, embora seu nome, senão sua especialidade – salumeria – dê a entender que seu core business seja salame. O nome em português desse tipo de comércio (salumeria é italiano) é charcutaria, ou, nas partes afrancesadas da terra, charcuteria. De casas tais espera-se que fabriquem (hoje se diz “façam artesanalmente”) os próprios salames, as próprias linguiças, chouriços e morcilhas; a casa em questão, entretanto, não os faz, e vende os de marcas grandes. E dá almoços, faz salmoura de azeitonas e palmitos, faz picles, vende cachaça, enfim, diversifica. Que aqui quem dança uma dança só morre de fome.
Vendo a casa, lembrei que um xingamento que meu pai usava conosco, eu e meu irmão, era “salame”, que ele usava como o vulgo usa “banana”: no sentido de bobalhão, ocasionalmente de frouxo ou incompetente.
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Aliás, faz tempo que não como um bom chouriço, uma boa morcilha. Comida vedada a islâmicos, bem sei.
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Meu primeiro emprego, emprego aliás ruim, foi como office boy numa financeira que, até onde sei, não existe mais. Foi em 1982; quem me indicou foi o amigo Pedro Dias, que lá exercia a mesma função e que, mais esperto do que eu, saiu logo para fazer a mesma coisa em financeira maior, por um salário também maior (mas não muito). Eu tinha 14 para 15 anos e não sabia nada da vida; aprendi muito ali, the hard way, como se diz, e como muita vez foi comigo.
Sempre que vejo as jovens estrelas da música nacional – essas pessoas como a Anitta, Jojô Toddynho, Joelma (tá, essa não é tão jovem, creio) – me lembro desse meu primeiro emprego. Era cheio de gente como elas, o que inclui, por óbvio, os rapazes. E ali descobri que nunca saberia lidar, como de fato ainda não sei, com explosões súbitas de temperamento, com irracionalidades, com má educação que se disfarça mal de “sinceridade”, com a ignorância orgulhosa de si mesma.
Troquei de emprego como hoje troco de canal de TV, estação de rádio, etc., rápida e displicentemente. Foi o melhor que fiz.
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O desejo de ser amado é a última ilusão. Desista dele, e você será livre.
Vi a frase nas redes sociais, atribuída a Margaret Atwood, senhora que escreveu uns livros a respeito de uma aia e de uma distopia na qual a religião nega todo o consolo e aporta todas as desgraças (se é que entendi bem o negócio).
“Eu não quero saber desse negócio de ser amado”, disse o homem incrivelmente livre, disse a mulher cujo espírito sobrevoava, altaneiro, o rebanho dos escravizados.
Eu estou rindo porque, para essa mulherzinha imbecil, o auge da liberdade é o auge da infelicidade.
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Margaret, non Margareth. Na lição do Ivan Lessa, as Margareth são pobres pra cacete.
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Você vê um brasileiro com um pandeiro em Hamburgo e conclui que ser típico é uma especialização.
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O cara deixa de ter nome, RG, gostos comuns ou esquisitos, família, caligrafia, roupas gastas, hábitos normais ou excêntricos, e passa a ser apenas A DIREITA.
Ai, porque A DIREITA isso, A DIREITA aquilo, e é só o Zé.
Tá faltando banho frio.
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Voltando ao primeiro emprego: quando comecei a trabalhar, em abril de 1982, eu morava no Brás, mais precisamente na Rua Almirante Barroso, 180, casa 1 de uma vila com outras três. Dou o endereço despreocupado porque ele não existe mais: a vila foi incorporada a um dos dois imóveis ao seu lado, não sei qual, há mais de dez anos. Ficava de frente para o colégio Eduardo Prado (homem que escreveu os “Fastos da ditadura militar no Brasil”, livro que o amigo deve ler assim que puder – “fastos” e não “faustos”, sendo a ditadura em questão a de Deodoro, de 1889).
Meu emprego era na Avenida Ipiranga, 952, prédio que ainda existe, na esquina da avenida com a Rua do Boticário, que vai dar no Largo do Paiçandu (ou Paissandu, ou Payçandu, ninguém sabe bem). Do outro lado da Rua do Boticário ainda funcionava o Cine Windsor, nome da casa real inglesa, que fechou em 2012, em 82 já com os dois pés plantados no pornô.
Para chegar lá, saindo do Brás, eu tinha dois caminhos: o ônibus das Estações, final 46, que eu pegava na Maria Marcolina, e que parava no ponto de frente ao trabalho; ou o metrô. Naquele abril de 82 a estação República estava recém-inaugurada, e as catracas ficaram livres por um mês; aproveitei, pois, o metrô. Eu saltava na Bresser e de lá caminhava umas doze ou treze quadras até a Almirante Barroso, trajeto de vinte minutos. De manhã, claro, fazia a volta. Em 1986, mudei de emprego, mas, enquanto morei no Brás, até 1991, esse era o meu caminho preferido.
Conto tudo isto porque agora moro de novo perto da Bresser, ainda que, tendo a Radial Leste por baliza, em direção oposta, e tenho evitado usá-la como ponto de saída. Pela (para mim) boa razão de que retornar à plataforma do metrô nas manhãs, especialmente nas manhãs frias que finalmente resolveram aparecer, vai me pôr de volta num ambiente em que me sentirei mergulhado de volta em coisas, lugares, pessoas que não existem mais; vou me sentir devolvido no tempo, mas devolvido sem ter para onde ir. Vou me sentir melancólico.
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Talvez caiba eu explicar que são as sensações que despertam as memórias. O amigo, se leu Proust, sabe: uma sensação qualquer – um sabor, um perfume, a friagem úmida da manhã – te invade, e com ela vêm as memórias que com ela têm qualquer relação, arbitrária que seja, dada pelas voltas da existência.
Assim, uma manhã fria na plataforma da estação Bresser pode me levar de volta a 1986, a uma casa que não mais existe, a uma cozinha que idem, a uma caneca de café que também desapareceu, que bebo enquanto ouço sem ouvir a rotineira expulsão de casa matinal que minha mãe promovia – “Nem precisa mais voltar!” - e dali a caminhada ventosa pelas ruas Mendes Júnior, Sampson, Joli (nome que antigamente se dava aos cachorros), Carlos Botelho e Bresser. E depois a uma bancada, na qual passaria horas a fio conferindo números de contratos e fitas-detalhe de balancetes, serviço tedioso, e depois um almoço que consistia num sanduíche de frios sortidos numa lanchonete podrona nas Grandes Galerias, e por fim a noite terminada nas casas de dois amigos que já morreram.
Traiçoeiras as sensações. A gente as evita como deve evitar ex-namoradas, ex-mulheres, todas as coisas que se tornaram ex.
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Se, como diz o Governo, as “fake news” são responsáveis pela sua imagem ruim, ele que agradeça aos céus: só os céus sabem a devastação que seria para a imagem dele a divulgação de “true news”.
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Ouvindo o Live at the Capitol Theatre, último ou um dos últimos discos que David Crosby lançou em vida. Lá pelo fim ele diz à plateia: “If we could come here every night, we would”. Pensei nas pessoas que pagaram pelo show e para ouvir essa mentira boba: se sentiram chateadas? Ou puseram esse engano na conta da caridade, perdoando Crosby, a banda, os tempos, a si mesmas dizer e acreditar numa bobagem inofensiva?
Às vezes a vida da gente se resume a isso: vamos suspender a descrença, vamos acreditar por meia hora, por duas horas, por um dia, por um final de semana. Não cai pedaço.
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No entrementes vou, do meu lado, aprendendo a ser normal: um normal total, na normalidade real. Porque assim eu pareço maluco pros malucos que estão por aí agora tomando conta de tudo.
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Breve diálogo inconclusivo contra a meritocracia.
— Qual a diferença entre o Messi e o Janjão Enxadada? Os dois não têm duas pernas?
— E qual a diferença entre o Einstein e uma barata? Os dois não têm cabeça?
— E qual a diferença entre o Miles Davis e um boi? Os dois não têm beiços?
— E qual a diferença entre uma melancia e o Monstro do Pântano? Os dois não são vegetais?
— E qual a diferença entre você e seu colega de trabalho totalmente incompetente? Vocês dois não são cidadãos?
— Calma lá. Aí é diferente.
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O prêmio que te dão as coisas premium: custar mais caro.
Se você criar suas próprias galinhas, vai ter frango e ovo premium.
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Se algum dia o amigo me ferir, me ofender, me fizer raiva ou desgosto, eu, como forma de vingança, lhe desejarei duas coisas. Uma: que você tenha que serrar um parafuso tendo como único apoio o parapeito de uma janela. Duas: que você tenha que colocar pés num sofá, armado apenas com testosterona e uma chave de fenda muito curta e muito fina.
Mas você não fez nada disso, amigo, não me feriu nem me magoou, de sorte que lhe desejo tudo de bom. E aproveite o feriado. Nos vemos de novo na semana que vem.
Meu pai, na sua infância em Portugal, na primeira década do século passado, tinha como vizinho um cachorro chamado Joli. Que vendeu inocentemente a um estranho, achando que voltaria para casa. Faleceu aos 89 anos com esse “remorso”.