158. ONU; X-Men; bar; gata; café; artesania; quermesse; cannolo e curau; margarina; festa junina; pamonha; pilhar; Kafka; loucos; tempos; aprendizado; link
Quermesse vem da língua de flandres, kerk (Igreja) e messe (feira): feira de Igreja. E cê nem me paga nada, hein.
E se, em vez de aborto, a ONU pedisse ao governo menos imposto?
* * *
X-Men é o que tem nas hamburguerias dos canibais.
* * *
A crase mal usada, o asterístico e a Kéthleyn entram num bar.
* * *
Uma das minhas gatas está tão gorda que já, já, vai aparecer com o pelo azul.
* * *
No rádio (os portugueses dizem, como se dizia antes por aqui, na rádio), propaganda de uma rede de cafeterias artesanais.
Rede.
Artesanais.
* * *
Aliás, entro na loja renomada de chocolates, que fabrica os seus mas ao menos não se autointitula artesanal, e compro (não adquiro; se você adquire em vez de comprar, você escreve relatórios comerciais demais) um chocolate. A mocinha cobra, me dá a nota e me deseja “um feliz hoje”.
Fico com vontade de perguntar se pela loja, ou por ela, meu amanhã pode ser uma piscina ou lagoa de infelicidade, em suma, uma bosta. Fico com vontade, mas não pergunto. Primeiro porque é criar caso com bobagem. E segundo porque vai que ela responde que sim.
* * *
Levei um rola na quermesse. A frase soa feia, eu sei, e me apresso a esclarecer que não fui sodomizado atrás de uma barraca: atenção por favor ao fato de que o artigo indefinido é masculino. Na gíria de Itaquera, de onde venho – e quem sabe na gíria de toda a periferia de São Paulo – levar um rola (pronuncia-se róla) é simplesmente levar um tombo, aliás mais que um tombo, um tombaço, desses, justamente, de dar com o peito em terra e de rolar no chão.
Pois levei um desses, e na quermesse. Pisei com o pé bambo, o esquerdo, num buraco da rua e, qual Teresinha de Jesus, de tal queda fui ao chão, tendo na mão esquerda um copo quase vazio de vinho quente e na direita uma sacolinha com um potinho de caldo de feijão para viagem, a ser entregue à minha consorte, que gosta muito de caldo de feijão mas detesta quermesses. Perdi o resto de vinho e todo o caldinho de feijão, que tornou-se uma maçaroca dentro da sacolinha (milagrosamente – artes de São Rafael, padroeiro da Igreja e da quermesse – não vazou).
Abençoados os jovens e os adultos que, saindo da missa e vendo um senhor gordo e de bigodes grisalhos esparramado no chão, com um braço sujo e grudento de vinho quente e uma sacolinha xexelenta de caldo derramado, ante a filha aflita, acorreram para ajudá-lo. De novo, qual Teresinha, me acudiram três cavalheiros, todos três com suas comidas, copos e pratinhos de plástico na mão. Abençoados sejam todos.
* * *
Foi a primeira quermesse a que fui nos últimos vinte e tantos anos: a última tinha sido na capela de Santa Rita, na Rua Reverendo Alcides Franco, Itaquera. Talvez o tombo tenha sido o castigo pela ausência prolongada. Se for, bah, mereci. Enfim, bairro novo, quermesse perto, tudo contribuiu para a aventura e seus sucessos (e insucessos).
Uma quermesse da Moóca terá de tradicional o bingo (num salão, não numa barraca), barraca de quentão e vinho quente, barraca de comidas à base de milho (pamonha, curau, milho cozido, bolo de fubá, pipoca), e uma de carnes e churrascos. De próprio seu terá (e tinha) uma de pizza, uma de fogaças, uma de doces variados (com cannoli), uma de especialidades portuguesas (caldo verde, alheira, bolinho de bacalhau), e outra de especialidades mineiras (caldinho de feijão e de mandioca, sanduíche de pernil, pão de queijo e queijo fresco, se chegar na hora certa um torresminho). E terá a modernidade do cartão de quermesse: você carrega um cartão lá deles com dinheiro e faz com ele seus gastos nas barracas. Talvez mais perto do dia de São João ponham para tocar aquelas musiquinhas de festa caipira; a conferir.
Em desforra do meu tombo, e em homenagem aos meus ascendentes ítalo-mineiros, comi um cannolo e um curau. Mancando mesmo. Era meu direito de homem ferido e humilhado. Sábado vórto lá, quem sabe para mais tombo, decerto para mais cannoli.
* * *
Minha filha ficou impressionada de ver que o milho cozido vinha com margarina de marca boa. “No da praia”, diz ela, “os caras até escondem o pote”. Ficou mais impressionada de saber que tudo o que se vende na quermesse é doado: “Nossa, doam coisa boa!”.
O diabo é que margarina, seja de que marca for, é uma bosta.
* * *
Venho falando de quermesse, e acho que festa junina é aquilo que chamam de assunto correlato. Pois bem. Há algum tempo, coisa de uns dois ou três anos, surgiu por aí uma dessas polêmicas de rede social segundo a qual São Paulo não poderia, ou não deveria, ter festa junina. O argumento, se é que o nome cabe, era o de que os paulistas, sendo brasileiros, mas menos brasileiros que os demais brasileiros, não deveriam poder fazer uma festa que é típica de brasileiros mais brasileiros do que eles. Aliás, não é só que não deveriam: ao fazê-lo, estavam cometendo um crime. E crime doloso, porque deliberado. Apropriação cultural, deboche de caipiras ou qualquer outra coisa tão pavorosa quanto.
Parece que o assunto caiu no esquecimento nos anos seguintes. Ou reconheceram uma dose, um teor aceitável de brasilidade em São Paulo (improvável), ou (mais improvável ainda) acharam o que fazer.
* * *
Falei em ascendentes ítalo-mineiros. A falecida senhora minha mãe e suas irmãs, das quais só resta uma viva, se reuniam todos os janeiros para fazer pamonhas. No paiol da casa da minha avó, em Minas, acendiam um fogão de lenha, coziam os milhos verdes e depois se punham laboriosamente a ralá-los, peneirando as casquinhas dos grãos e recolhendo o caldo amarelo e cheiroso num tacho enorme. Juntada a quantidade necessária de caldo, que era aliás enorme, punham-se a engrossá-lo no fogo, serviço que levava horas, e no qual consumiam a quantidade de cerveja necessária a todo um campeonato de snooker. Enquanto engrossava, algumas pegavam a palha do milho e faziam os embrulhos, nos quais a mistura era despejada e acrescida, conforme o caso, de sal ou açúcar, de pedaços de queijo fresco ou marolo. Não punham canela: esta ia no curau (que faziam muito mais raramente). Sim, terminavam bêbadas e com um cento, mais ou menos, das melhores pamonhas que já houve na terra.
O cento não durava mais do que três ou quatro dias, devorado às pressas por todos, tios, primos, avó. Primeiro porque era uma delícia, e segundo porque não havia geladeira, e as pamonhas abençoadamente livres de fubá azedam muito depressa no calor. Eu sempre fui dos doces, mas pamonha eu preferia salgada e com queijo; minha mãe costumava esconder umas três ou quatro só para mim, em lugar só dela sabido. Eu comia na porta da casa da avó, de noitinha, ouvindo grilos e cigarras que só Deus sabe onde estavam, porque nunca os via.
Qualquer dia uma pamonha dessas – tão rara hoje em dia – me faz as vezes de madeleine. Se eu pilhar alguma. Du côté de chez Gonçalves, nome de née de minha mãe.
* * *
Pilhar com o significado de encontrar ou obter é palavra que morreu no Brasil. Em Portugal ainda vive, creio eu.
* * *
Leio que na segunda-feira, dia 3, se comemoraram os cem anos da morte de Franz Kafka. Ou se assinalaram, né, que parece meio feio comemorar a morte de alguém. Isto me fez lembrar que eu tenho quatro volumes pequenos, com as traduções que Modesto Carone fez há tempos, ainda com o selo da Brasiliense (acho que depois saíram pela Companhia das Letras). São Contemplação e O Foguista, Um artista da fome e A construção, Carta ao pai e Um médico rural.
Não consegui terminar a leitura de O foguista, nem de A construção, mas as narrativas curtíssimas de Contemplação li e reli diversas vezes, e quase todas me parecem encantadoras. Copio abaixo uma delas, da qual me lembrei quando comecei a ler O livro do desassossego, do Fernando Pessoa:
Decisões
Mesmo com deliberada energia deve ser fácil levantar-se de um estado miserável. Arranco-me da cadeira, ando às pressas em torno da mesa, ponho em movimento a cabeça e o pescoço, injeto fogo nos olhos, distendo os músculos ao seu redor. Trabalho contra qualquer sentimento, saúdo A. impetuosamente se ele vier agora, tolero B. amistosamente no meu quarto e, a despeito da dor e do esforço, em casa de C. engulo tudo o que é dito cm tragos largos.
Mas ainda que seja assim, a cada erro, que não pode faltar, tudo – o fácil e o difícil –vai ficar paralisado e eu precisarei girar de voltar ao ponto de partida.
Por isso o mais aconselhável de fato é aceitar tudo, comportar-se como massa inerte e no caso de se sentir atirado longe por um sopro, não se deixar seduzir por nenhum passo desnecessário, fitar o outro com olhos de animal, não sentir remorso, em suma: esmagar com a própria mão tudo o que na vida ainda resta de espectro, ou seja, aumentar a última calma sepulcral e não permitir que mais nada exista fora dela.
Um movimento característico desse estado é passar o dedo mínimo por cima das sobrancelhas.
Já Um médico rural me parece um conto de terror. Às vezes imagino Kafka como um desses meninos que sofreram muito no tempo de escola.
* * *
De outra Contemplação:
Como é que os loucos poderiam ficar cansados?
* * *
É verdade, amigo, os loucos não dormem nem descansam. Toda vez que você acordar de madrugada – seja para urinar, seja porque o sono lhe fugiu, o ar lhe faltou, o peito lhe pesou, alguém gritou na rua lá fora, passou uma moto ou um amante do funk entendeu de espalhar a beleza pela noite –, saiba que nela um louco, como todos os muitos loucos, não pregou o olho nem por um segundo, e se você e ele estivessem juntos no escuro, os olhos dele talvez brilhassem com aquela luz da qual todos queremos fugir.
* * *
O melhor é falar do desatino dos tempos como se fala dos de um tio meio louco ou meio canalha.
* * *
Falei ali em cima do Livro do desassossego, do Fernando Pessoa. Deixo aqui suas duas últimas frases (segundo a edição da Editora Brasiliense):
Os homens só aprendem para uso de seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
É 50% verdade, e 100% bonito.
* * *
Antes de ir, clique o amigo no link para a minha nova coluna na Crusoé.
E também assine e leia a newsletter do poeta maior João Filho (não é só porque ele me cita com enorme, e por mim imerecida, gentileza – é porque ele é um poeta maior mesmo).
E, se estiver em São Paulo, não falte ao lançamento oficial do Feérico Luar no Copacabana Palace (eu vou, a gente se vê lá – se você for, claro), do Alexandre Soares Silva. Será amanhã.
passei mal de rir, daí qua-chorei de saudade da fazeção de pamonha. muito gradicida :-)
Muitíssimo obrigado, meu amigo.