159. Humanos; malucos; otimismo; Girondino; quarteirão; João Brícola; ruas do centro; MCT; vereador; dieta; Jean Guitton; pão & jornal; tombo; 1000
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Na nossa frente, na fila do caixa do supermercado, um casal já idoso se desentendia quanto às compras. Ele reclamava de alguma coisa, ela retrucava; se acotovelavam em torno do carrinho, chega pra cá, chega pra lá. Então o homem viu, no fundo do carrinho, um maço de velas. Com brusquidão, o tirou do carrinho e o pôs em cima de uma prateleira de doces.
Os dois continuaram se acotovelando, inamistosos. Eis que ela viu as velas desprezadas. Pegou-as de volta e as passou junto com as compras. Como desforra, ele deixou no carrinho um pacote de pó de café.
Eu acho muito sensato ter velas em casa. Café também, café mais ainda. Velas e café, eis, senão tudo, muito. E fiquei pensando que, para uns tantos luminares de redes sociais, esses velhos às turras são uma prova de que as famílias não prestam – quando é exatamente o contrário: filhos, filhas e netos contarão histórias engraçadas sobre aquelas turras que podiam bem ser a cara maldormida da ternura.
Quem tira suas ideias de humanidade dos jornais e dos filmes quase nunca percebe essas coisas.
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Vi a mulher de meia-idade duas ou três vezes. Ela ficava no canteiro central da Paulista, diante do Center 3, vestida na moda dos anos 60, com um guarda-chuva. Andava de um lado pro outro vociferando à fumaça, indignando-se (como é a praxe da indignação) com sujeitos imaginários e fazendo gestos extravagantes.
Doidinha. Sumiu.
Hoje lembrei dela e pensei: eis que em boa parte da minha vida li e ouvi que aquilo que ela fazia é mil vezes preferível à mediocridade.
Mas não é, ouviu? Não é. É melhor não fazer nada com o seu nariz do que mal saber que ele existe ou onde ele está.
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Otimista por natureza, chamo de “estudante” qualquer um que pareça estar matriculado em alguma coisa.
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Se o amigo não for de São Paulo, e se aliás não for um tipo meio raro de paulistano, o tipo cinquentão ou sessentão que frequenta o Centro Velho e o conhece como à palma da mão (como eu e como outros poucos que conheço), não se sentirá triste por saber que o Café Girondino, esquina da São Bento com a Boa Vista, fechou as portas.
Eu, é claro, me sinto triste, e lembro com saudades das xícaras de cappuccino, nos domingos de tardezinha, à espera da missa tridentina no Mosteiro de São Bento, ou de cafés à tarde com Mme. Tosetto num passeio qualquer. Não é que a gente tenha perdido um lugar de comer, tantos são os que há em São Paulo: perdemos um lugar agradável numa área, cada vez mais, de barbárie.
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Circule comigo um pouquinho por aquele quarteirão onde o Café estava instalado. Digamos que saímos do falecido Girondino pela Rua Boa Vista (ele tinha uma outra saída que dava para o acesso à estação de metrô São Bento), que era, junto com a XV de Novembro, a rua dos bancos de São Paulo, e a tomamos no sentido do Páteo do Collegio. A esquina é a da Rua João Brícola. Entramos por ela, cujo lado esquerdo é todo tomado pelo imenso edifício Altino Arantes, que foi sede do Banespa e hoje pertence, creio eu, ao Banco Santander. Ela segue adiante até morrer na XV de Novembro, mas nós estamos contornando o quarteirão, por isso viramos à direita na próxima esquina e descobrimos, meio espantados, que entramos no começo da Avenida São João, que ali se confunde com a Praça Antônio Prado. Se seguirmos reto a avenida, vamos dar na lateral do Edifício Martinelli (esquina com a São Bento), cruzaremos a Líbero Badaró e sairemos no Vale do Anhangabaú, quase diante do ponto em que, antigamente, ficava o Buraco do Ademar (ou Adhemar; o agá sempre complicou os nomes dos brasileiros). Mas a gente não vai; a gente passa diante do prédio da Bolsa de Valores e, à direita de novo, entra pela Rua São Bento, no lugar onde funcionava a Casa Mathilde, também infelizmente fechada, de cuja sobreloja se tinha uma vista quase civilizada da cidade. Seguiremos na direção do Largo, e estaremos de novo, na esquina, passando pela entrada do metrô, diante das portas agora fechadas do Girondino.
Nesse quarteirão semi-morto (nele já houve um teatro e um cinema) e nos quarteirões vizinhos já ferveu a vida da cidade outrora mais rebelde do Brasil. Hoje a vida ferve doutros jeitos, noutros cantos. Ferve, eu disse? Coze em banho-maria.
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João Brícola se chamava, na verdade, Giovanni Bricola, e foi banqueiro e milionário. Nada mais justo que uma rua que é o paredão de um banco leve seu nome (que batiza também, essa eu soube só agora, o edifício onde funcionou, por décadas, o Mappin).
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Nos meus tempos de office-boy era, segundo o termo muito usado por Gil Vicente, mandatório a gente conhecer aquele centro todo. O Girondino não estava lá em 82 – acho que era uma loja de sapatos ou de roupas o que havia ali. O lugar era movimentado, entretanto, como hoje não é mais: ainda era a cidade. Inconcebível o estafeta não conhecer a Rua da Quitanda, a Rua do Comércio e o Largo do Café, a Rua do Carmo, a Rua Irmã Simpliciana, a Barão de Paranapiacaba, Venceslau Brás, Bittencourt Rodrigues, Fernão Sales, Hércules Florence ou a Ladeira General Carneiro. Era a cidade; era where it’s at. Talvez os trajetos fossem até objeto de prova oral.
Hoje esses nomes são logradouros de Boletins de Ocorrência. Ou endereços de comércios picaretas.
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Maria da Conceição Tavares era interessante como é interessante aquela amiga meio maluca da mãe da gente – amiga fumante, chegada no marafo e faladora de palavrões –, que às vezes vai em casa e cuja conversa na cozinha nos faz rir lá na sala.
Deus, que aguenta tudo, a tenha.
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Ia o bom Oriney despreocupado pela rua Augusta quando, por acaso e com um susto, percebeu que estava sendo seguido por um vereador.
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Já desisti de uma dieta porque, no dia em que a comecei, o ônibus em que eu estava bateu. Achei que era mau augúrio.
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É bom que um livro seja antigo o suficiente para que ele não se ligue de qualquer modo aos nossos pensamentos sobre o presente e nos faça sentir que aquilo que, neste momento, nos emociona é provisório.
Jean Guitton, O trabalho intelectual, p. 90.
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Volto da padaria com meus saquinhos de pão francês e outros insumos do sobrepeso (bom nome pro disco que nunca vou lançar: pão francês & outros insumos do sobrepeso) e vejo, caído no jardim depois do portão, um saquinho com o exemplar dominical do Estadão. Pego o saquinho e o levo até o balcão da portaria, gesto que entendo gentil e demonstrador de boa vontade; enquanto o levo, entretanto, me ocorre que talvez o dono ou dona do exemplar esteja habituado a procurá-lo entre as plantas e, não o achando, entenda ter sido tungado. Penso isso e prometo não mais recolhê-lo no futuro.
O embrulho vai leve, levíssimo, na minha mão. Me pergunto se a alcunha no aumentativo ainda se justifica: pelo peso, o Estadão virou Estadinho. Parece até que recentemente aderiu ao tamanho, ou formato, sei lá, de tabloide.
Por mais de cem anos o Estadão não circulou às segundas-feiras; passou a fazer isso nos anos 80, quando começou a ficar para trás na briga com a Folha pelo posto de primeiro jornal de São Paulo. Talvez um pouco antes tenha aberto mão do hábito antigo de não dar noticiário nacional na primeira página, reservada, civilizadamente, ao chamado “mundo lá fora”. Mais tardiamente ainda, introduziu as cores em suas edições, que eram cem por cento preto e branco; fez isso trocando a cor de seu logotipo para o azul e introduzindo aqueles gráficos – infográficos era o nome oficial – que eram motivo de riso quando o QI nacional ainda estava um pouco acima dos 90 pontos.
(Os infográficos começaram, parece, com o U. S. A. Today. Lembro do Paulo Francis, nos estúdios da Globo de Nova York, mostrando um exemplar ainda lacrado, sobre uma mesa, e dizendo: Ninguém lê essa merda. Mas a Folha os adotou, e se orgulhava deles, ao menos no tempo em que eu ainda a lia.)
Lembro que houve época, nos anos 90, em que os jornais de domingo começavam a circular no sábado à tarde e eram enormes e pesados. Eu costumava passear com minha mulher pelo centro velho, ir ao cinema, digamos (ainda havia cinemas de rua frequentáveis por ali) e, na saída, comprar os dois jornalões, que lia em casa, à noite. Cadernos culturais e esportivos de 24 páginas cada, pletora de anúncios, muitos colunistas, muitas análises e perorações. A esquerda, claro, já era amplamente dominante, mas ainda havia muita coisa bem escrita. E classificados a dar com pau: era uma época em que ainda se comprava jornal para procurar emprego.
Certa vez a Folha começou a tirar um milhão, um milhão e cem mil exemplares aos domingos, depois de transformar em notícia uma de suas tantas reformas ou perfumarias gráficas; o Estado ficava perto, com seus oitocentos e tantos mil. Acho que o Globo andou comemorando números parecidos (o Jornal do Brasil já tinha começado a morrer); idem, nos seus limites, o Zero Hora. Era pouco, se a gente pensasse que cada jornaleco dominical inglês tirava três ou quatro milhões e que o Clarín, aqui do lado, na Argentina, tirava mais de dois milhões. Mas era o auge da imprensa nacional, um auge típico dos que acontecem à beira da derrocada.
Pouco antes, ou pouco depois, começaram a encartar revistas impressas em papel bom, destinadas a durar um pouco mais. E vieram promoções de livros, discos, DVDs, às quais até revistas de circulação grande, como a VEJA (que tirava uns oitocentos mil exemplares por semana) logo aderiram também. Foi um tempo bom, pré-internet ou coetâneo do surgimento dela. Imagine o amigo de menos de quarenta anos o quão influente era a imprensa nesse tempo.
Neste domingo último o jornal pesava menos do que o meu saquinho de pão. Não perdeu só o peso físico, páginas físicas: perdeu peso no mundo, na vida, e vem perdendo poder. Por isso bajula tanto o Poder, principalmente o Poder que quer lhe devolver poder.
Devolver, eu disse? Não: emprestar. Ceder em comodato, em consignação. Medite o amigo no seguinte: mesmo quem parece ceder o poder pela própria vontade o teve, na verdade, tomado por algum meio. A imprensa não tem mais como recuperar aquele poder que teve no tempo dos milhões de exemplares, e sabe disso. Por tal razão, hoje fecha com quem lhe pode e promete ceder algum, tentando dar à sabujice o ar mais altaneiro que conseguir.
Enquanto isso, eu, tu, eles vamos nos informando em outros cantos, vamos lendo outras coisas, vamos descobrindo os colunistas e escritores que nos interessam em outros lugares, seguimos com nossos carroções por este far west das redes. Você se sente mais aventureiro? Eu, geralmente, sim.
Deixei o jornal raquítico na portaria e subi com meu pão & demais insumos, que consumi espiando, no celular, o que me interessava, enquanto a água levantava fervura para eu fazer o café.
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Levei outro róla. Desta feita, na feira. Descobri que gente com sacola e carrinho é menos prestativa do que gente que sai da missa e vai beber quentão; mesmo assim, tive ajuda. Mas chega, melhor parar antes que isto se transforme no rol tedioso dos meus tombos. Até que venha o tombo final.
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Na semana passada recebi o aviso desta rede de que esta newsletter passou pela primeira vez o número de mil assinantes. Você que me lê é um deles: muito obrigado, pois. Tomara que, enquanto nós dois tivermos pernas, continuemos juntos por aqui.
Café Girondino :-(
Fui só uma vez ao Café Girondino, eu achei muito caro e não voltei. Mas vou sentir a sua falta.
Orlando, seus tombos têm algo a ver com as ruas da Mooca? São de paralelepípedos? (Não me lembro)