161. Gatos e privadas; vinho; minúcias; espionagem; Updike e Barthes; diálogo filosófico; fila; eia, sus; o vós; estilo; garoa
Há uma chance de que um gato ache muito interessantes algumas coisas que você faz – mesmo que você não seja um humano muito interessante.
Por exemplo: dar a descarga. Sempre que eu faço isso, dois ou três dos meus gatos vêm correndo examinar o fenômeno, que acompanham com a maior atenção, até mesmo um frisson. Quando o fenômeno acaba, eu, claro, perco qualquer importância. Não só eu: a privada, o banheiro, as luzes acesas.
Os gatos são, de certo modo, a opinião pública.
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Meu pai, brasileiro no RG e no idioma, era entretanto italiano em muitas coisas; em tantas mesmo que podia ser quase um carcamano no desterro. Uma delas era a exasperação à flor da pele que muitas vezes se confunde, até para os próprios italianos, com intransigência, mas não passa de uma certa demora nervosa na compreensão das coisas, uma lerdeza para entrar, não digo nos aspectos sutis, mas sim nos mais óbvios de alguma coisa. Eu padeço do mesmo mal; ao contrário do velho, me dou o trabalho de tentar disfarçá-lo.
Meu pai nunca me falou na mística do vinho. Porque, para ele, essa mística não existia. Dele recebi a lição simples do bebedor de vinho pobre do Vêneto do século XIX. E é esta: só existe um tipo lícito de vinho – tinto e seco. Vinho tinto que seja doce ou suave, ou vinho rosé, é vinho de mulher ou de criança, e é inutilmente caro; vinho branco é vinho de efeminado (ele dizia “vinho de fresco”); vinho verde pode ser, na ausência de vinho lícito, mas não se acostume, não faça dele um hábito.
E quanto ao bouquet, às notas frutadas ou defumadas? E quanto ao retrogosto? Jamais mencionou essas coisas, e aposto que nunca ouviu falar nelas. O vinho tinha que ser tinto e seco, e tinha que ser bebido em copo de vidro – nada de caneca de louça, copo de plástico, essas bossas. E o copo tinha que ficar sujo. Por fim: à temperatura ambiente. Vinho gelado é “coisa de fresco”.
Tenho seguido essa regra, para a qual o vinho vagabundo e barato é tão bom quanto o caro e renomado. Desde que vinho, e tinto, e seco. Que era o vinho dos pobres na velha Itália de onde lhe vieram os pais, meus avós. Por incrível que pareça, não era o vinho dos sofisticados, dos enólogos como parece ser hoje.
Eu cá só sou sofisticado na arte fácil de vadiar.
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É claro, no entanto, que há minúcias pelas quais me interesso. Mas são cada vez mais as que estão comigo há tempos; não me interesso por minúcias novas, não quero saber de ir além da marca da minha nacionalidade – os três primeiros minutos de cada assunto novo.
Sou cada vez mais curioso, sim, mas não quero molhar mais do que as canelas no grande rio das sabenças novas.
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Talvez o governo me espione, talvez não. Se espionar, tenho dó dele: deve morrer de tédio com os meus assuntos, minhas conversas, minha vida.
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O assunto do vinho me veio à cabeça lendo um ensaio de John Updike a respeito de Roland Barthes. Chama-se simplesmente “Roland Barthes” e é, na verdade, uma resenha das edições americanas dos livros S/Z e The pleasure of the text. Está no volume que saiu aqui com o título de Bem perto da costa, às páginas 157-163.
Eis, em resumo, o que Updike tinha a dizer de S/Z:
é um livro sobre a leitura praticamente ilegível, um lento rastejar de duzentas páginas (…) o leitor desponta aqui lexicamente enriquecido porém dilacerado; não me lembro de outro livro em inglês que tenha me dado tanto trabalho para ler.
E isto, que é um resumo perfeito de Barthes:
Barthes, em outra obra, afirma acerca da boa prosa que “ela range, ela corta”; seu vocabulário é mesmo uma mistura rilhante e faiscante de grego (“anastomose”, “tmese”, “sintagmático”, “proairético”), de termos tomados da lingüística moderna (“closure”, “significante”, “semema”) e de palavras comuns (“código”, “mito”) recunhadas com um significado específico mas difícil de apreender.
“Palavras comuns recunhadas com um significado específico mas difícil de compreender.” A palavra que conhecemos com um significado passa a significar outra coisa, mas não sabemos bem que outra coisa é essa, que significado é exatamente esse significado novo, e nem por que diabos ele lhe foi atribuído.
Esse hábito ruim não era, claro, só do Barthes: era talvez de toda a intelectualidade meio de esquerda da França pós-45 – ou, pelo menos, daquela intelectualidade meio de esquerda da França que começou a fazer sucesso nas universidades americanas a partir dos anos 80 (deve ter havido, e haver ainda, franceses muito lúcidos e muito legíveis). Aquilo lá: obscuridade pedregosa, legibilidade árdua, jargão pseudopreciso e psicodélico. Maurice Blanchot era talvez o pior de todos com isso. Há aliás um livro muito interessante, que saiu no Brasil e tem até edição barata, popular, chamado “Imposturas intelectuais”, escrito por Jean Bricmont e Alan Sokal, matemáticos, ridicularizando esse conversê alucinatório desses caras: recomendo e muito ao amigo.
Por que isso me trouxe vinho à cabeça? Não é porque Barthes me induza ao alcoolismo (sempre é possível a gente, em vez de se entregar à bebida, jogar um livro dele no lixo, ou dá-lo de presente a alguma jovenzinha de cabelos azuis e muita propensão a começar a gritar sem que, como Barthes atribui significados novos aos termos velhos, se saiba bem por quê); é que Updike diz que Barthes escreveu um artigo legível sobre “a mística do vinho”. Não li, não lerei, só acreditei porque o Updike disse. Certo é que meu pai provavelmente quebraria uma garrafa de chianti na cabeça do Barthes (vazia, claro; quem vai derramar chianti na cuca de um impostor?).
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Diálogo com um intelectual francês de esquerda, pós-45.
Um Cidadão Anônimo sai de uma livraria parisiense com um livro nas mãos. É abordado por um Intelectual Francês (em trajes típicos, encostado a um poste na calçada, com o ar de quem está ali, por acaso, há horas), o qual lhe pede que leia em voz alta a primeira frase do livro.
CIDADÃO ANÔNIMO (abrindo o livro e lendo): — “João escorregou e caiu.”
INTELECTUAL FRANCÊS: — Haha. “Caiu”, né? Tá bom.
CA: — É o que tá escrito.
IF: — Ah, nooooossa, é o que tá escrito. Pronto, acabaram-se os problemas, questão resolvida! Ô lá lá!
CA: — Uai, que problema, que questão tem aqui?
IF: — Ai, ai, ai, vamos lá. Em primeiro lugar, quem disse que esse João é mesmo João?
CA: — Bom... o escritor.
IF: — E daí? Quer dizer que só porque o escritor escreveu “João” o personagem é João e pronto? Você confia nele tanto assim, de jurar que João é João e não Fernando, Paulo ou Brigitte?
CA: — Não é tanto que eu confie nem jure; é que é meio idiota ele passar um livro inteiro chamando Fernando ou Paulo de João. Por que ele faria isso?
IF: — Porque ele é um escritor! Ele escreve. Daí a o que ele escreve ser verdade são outros quinhentos! E quem disse que ele caiu porque escorregou?
CA: — O escritor também, uai.
IF: — E você aceita passivamente, não é? Não questiona nada.
CA: — Mas por que que eu vou questionar, Santo Deus?
IF: — Pois eu, eu questiono! Não estou convencido de que João escorregou e caiu; por mim, pode muito bem ser que o Fernando caiu porque foi empurrado! Ou que a Brigitte caiu, se é que caiu, porque foi sequestrada!
CA: — Mas não é nada disso que está escrito.
IF: — Exatamente! Quem é esse escritorzinho que tenta me convencer, que quer que eu aceite que suas frases descrevem fatos?! Ele é escritor; ele, portanto, necessariamente distorce. Ele elude e ilude. Ele mente.
CA: — Mas por que ele mentiria quanto a isso?
IF: — Exatamente: por quê? Essa é a única pergunta que importa quando lemos um texto: qual a intenção do autor? Aonde ele quer nos levar? Que motivos tem para querer que acreditemos que João escorregou e caiu?
O Cidadão Anônimo mostra a capa do livro, que se chama “Joãozinho vai pro hospital”, texto de Goscinny, ilustrações de Hergé. O Cidadão Anônimo gosta muito dos dois.
CA: — Porque disso depende o resto da história, acho eu.
IF: — Ou disso depende a história em que ele quer que a gente acredite? A história que ele quer que a gente aceite? A história que ele quer nos empurrar? E se – por exemplo, um exemplo entre uma miríade de exemplos possíveis – Fernando tiver sido jogado no chão e esteja neste exato momento – enfatizo: NESTE EXATO MOMENTO – sendo estripado e privado de órgãos vitais, e tendo sua carne devorada por um americano gordo e canibal em pleno centro de Montmartre?
CA: — Cê tá louco!
IF: — Estou mesmo? Ou será que eu sou livre demais para você? Eu, eu recuso as rédeas que você tão prazerosamente, tão medrosamente aceita. Se o escritor pode dizer que João caiu, por que eu não posso dizer que Fernando é vítima do canibalismo ianque? Ou que a Brigitte virou pasta nas mãos dos italianos? Por que é que essa liberdade te mete tanto medo que você prefere ficar com a versão talvez mentirosa de um homem que você nem conhece?
CA: — Mas eu também não te conheço.
IF: — Ora, é verdade.
E estende a mão para o Cidadão Anônimo.
IF: — Prazer, Ferdinand Cochambrel. Me paga um café que eu continuo te mostrando o quanto você é imbecil.
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Uma vez – minto: duas vezes – peguei fila aqui em São Paulo para dobrar a esquina da rua da Consolação e entrar na Avenida Paulista. Foi por volta das seis da tarde, hora do rush, inclusive do rush humano. Para reduzir um pouco o absurdo da situação, esclareço que a esquina é estreita, e que há multidões tanto indo no rumo da Paulista quanto multidões vindo dos lados da Paulista.
Ou havia, né, que isto de multidão parece coisa cada vez mais restrita ao postos médicos do SUS.
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Aliás, sus, a palavra, não o acrônimo, é uma interjeição de exortação, tal como o eia. Ela vem do latim – está, creio eu, no étimo da palavra italiana sù (acima, em cima, para cima) – e anda em baixa, mas já foi muito usada, principalmente na poesia, e até fez parte do hino nacional. Aquela partezinha tocada antes que entre o ouvirundum já teve letra, composta não pelo bom Osório Duque Estrada, mas sim, ou talvez, por um certo Américo de Moura, e é esta:
Espera o Brasil que todos cumprais o vosso dever.
Eia! Avante, brasileiros, sempre avante!
Gravai a buril nos pátrios anais o vosso poder.
Eia! Avante, brasileiros, sempre avante!
Servi o Brasil sem esmorecer, com ânimo audaz,
cumpri o dever na guerra e na paz,
à sombra da lei, à brisa gentil,
o lábaro erguei do belo Brasil,
eia! Sus, ó, sus!
Ei-los, eia e sus. Esse trecho é difícil de cantar, especialmente a parte que começa com “servi o Brasil”. Já nem falo de afinação: demanda é fôlego, porque a pausa para respirar antes de entrar o ouvirundum é curta. Tão difícil é cantar esse pedacinho, aliás, que acharam melhor deixá-lo pra lá quando tornaram o hino oficial, em 1922.
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Eu sei o que é um buril, e a velhice faz com que eu não ria mais dos pátrios anais a serem burilados. O lábaro é o mesmo que ostenta, estrelado, este nosso brasilzão. E audaz é o mesmo que audacioso ou atrevido. As novas gerações também podem saber o que as palavras incomuns querem dizer, se se dispuserem a olhar um dicionário, ainda que online. O que pega mesmo é o vós. Quantos meninos brasileiros de hoje entenderão o “servi” e o “cumpri” como o imperativo conjugado pelo vós e não como o pretérito perfeito conjugado pelo eu?
Daqui a pouco, só os neopentecostais, à força de tanto ler a Bíblia, entenderão e saberão usar o vós. Se é que não estou sendo otimista demais.
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Não se pode dizer que o brasileiro seja cuidadoso com o estilo, ainda que muitas vezes seja cuidadoso com as palavras. Mas quando eu era moleque as coisas eram um pouquinho diferentes.
Por exemplo: todo mundo te olhava torto de você saísse por aí falando em medicamento em vez de remédio; em quadro de vômito e sudorese em vez de vomitando e suando; em estabelecimento comercial em vez de loja, quitanda, boteco; em relacionamento em vez de namoro ou caso, e por aí vai. Ninguém desejava à namorada, no aniversário dela, a plena realização de todos os seus objetivos nem muito sucesso neste novo ciclo que se inicia. Ninguém falaria em reiniciar os processos em vez de refazer a vida. E por aí ia. E todo o mundo se entendia.
Hoje, bom, hoje o cara te dá bom dia como se estivesse escrevendo uma carta para um advogado.
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Há dois tipos de garoa, ou havia, houve um dia dois tipos de garoa em São Paulo: uma mais grossa, que cai verticalmente e é um pouquinho barulhenta quando dá nas coisas, e outra fina, bem fina e leve, cujas gotinhas às vezes flutuam e dão até piruetas para cima conforme haja vento. As duas têm porém uma coisa em comum: molham muito, e depressa. Você entra desprevenido na garoa por dez minutos e já sente as pontas dos cabelos pingando, e a blusa vai mostrando as manchas de umidade, e as lentes dos óculos começam a pedir limpadores de para-brisa ou algo assim.
Saí numa dessas, que andam raras, tão raras, na terça-feira de manhã, ressabiado, porque outra coisa que essas garoas fazem é prender o trânsito e atrasar trens e metrôs e tornar tudo muito cheio. Mas ela veio acompanhada de friozinho, que, por sua vez, atrasou muita gente na cama, então fui trabalhar tranquilo e meio molhado demais.
Parei para tomar um café, cômodo, a gosto na minha cidade. Sozinho, sem a questionadora companhia de M. Cochambrel.
Que o amigo esteja a gosto na sua. Até semana que vem.
Fantástico, Orlando! Sua newsletter é sempre um deleite, mas esta edição está demais!
Foi bom lembrar a suposta introdução ao Hino. Guardo afetividade por ela. Meu vô sabia-a de cor e ensinou-me a cantá-la quando eu ainda era criança. Ele também sabia empregar - corretamente - a tão rara segunda pessoa do plural. Falecido, foram-se com ele o vós, o vosso, o convosco... e a introdução ao Hino também...