162. A lua e Pirituba; mundos; cachorro; selos; relógios; correios; a hora certa; cebolão; velho feio; link
If you get caught between the moon and Pirituba, the best that you can do is run away.
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A gente nem se dá conta de quantos mundos existem por aí que estão fechados para nós; mundos de cuja magia ou prazeres ou belezas ou paisagens ou ares ou aromas e tudo o mais que neles haja jamais desfrutaremos, já porque não os percebemos, já porque os notamos mas não queremos mesmo saber deles.
Penso no mundo da filatelia, por exemplo. Nunca terei o prazer, sem dúvida intenso, de achar, num livro comprado num sebo, um cartão postal enviado da Burgúndia em 1912 tendo ainda colado um selo raríssimo com a cara sofrida do então Rei da Burgúndia, Burgúndio XIII ou XIV (os Burgúndios, como os Aurelianos Buendía, me confundem), que vale hoje doze dólares e setenta e cinco cents nas boas casas do ramo filatélico (que não são as agências dos correios; as agências dos correios não são boas casas de nada).
Ou então penso no mundo da moda. Nunca terei o prazer, decerto capaz de arrancar gritinhos, de ter uma sunga Gonourry, ou uma pastinha 007 design Tetê Porpetta, ou um par de sapatos Franceschini, ou uma gravata Mercuriès – ou, caso os tenha, acho que nem perceberei o que são e pois não me arrancarão gritinhos, e acabarão pegando aquele cheiro de armário das roupas que passam anos sem ver a luz do sol, até que um dia uma visita enxerida abra meu guarda-roupas e comece ela a dar gritinhos: um Gonourry! Uma Tetê Porpetta! Um Franceschini! Uma Mercuriès! Bem, talvez eu fique um pouco envaidecido, e me gabe de um bom gosto que eu nem sabia que tinha.
Ou o mundo da pescaria. Caniços, samburás (sei lá se pescador ainda usa samburá; usa?), linhas, anzóis, horas e horas num barquinho ou na beira do rio, toda uma indústria de chapéus e de coletes grossos de lona ou de nylon, e devem até ter um tipo de música específica, ou rádios de pescaria, e toda a poesia de um baiacu rabeando no tombadilho: tudo tão fechado para mim quanto o coração de uma beldade de Hollywood.
Ou o mundo dos fãs de reality shows. Acompanhá-los. Resolver torcer por um dos participantes, seja cozinheiro, seja uma marombeira que come claras de ovos, seja um trans que vem da periferia, e bater boca com pessoas que torcem por outros participantes. Comentar os fatos interessantíssimos acontecidos onde quer que estejam enjaulados, e as coisas interessantíssimas ditas pelos enjaulados. Tudo muito impenetrável a este que vos escreve.
Ou o mundo da literatura engajada. Da literatura soco no estômago. Da literatura navalhada no olho, punhalada nas tripas, pé de cabra no escroto. Da literatura que te perturba tanto que te lança na estrada sem volta dos tranquilizantes. Desse mundo nada cogito, não sei nada, e nada quero saber ou cogitar.
Ou o mundo da marcha atlética. Começo a imaginar a quantidade de pessoas envolvidas com a marcha atlética, e penso nos treinadores de marcha atlética, e desisto, simplesmente desisto da vastidão do Universo e da infinidade dos orbes: fico, como o poeta, à beira do rio sujo e fedido da minha aldeia – esse que não tem a memória das naus mas terá, talvez, a das jangadas, das pirogas e das lavadeiras.
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Eu já tive um cachorro chamado Porpetta. Era mestiço de husky com vira-latas, tinha um olho de cada cor, e me amava com uma espécie de tranquilidade destruidora: arrancava calhas de ferro e sifões de pia com os dentes e devastava o reboco da edícula com as unhas enquanto me olhava com o ar mais sereno do mundo, confiante quer na minha estima, quer na minha cumplicidade (e ele as tinha, o canalha). Mais de uma vez pensei em prendê-lo nos varais de uma charretinha e sair pelo mundo puxado por ele, que, meio husky, devia ter alguma saudade ancestral, atávica, de puxar trenó. Só não fiz isso por medo de ser preso. E porque não é fácil arranjar uma charrete.
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A respeito de selos: por onde andam? Olho a correspondência que recebo: contas e mais contas, e o folheto ocasional de gente e entidades em apuros pedindo dinheiro. Nenhuma dessas correspondências leva selo. Os que me cobram ou solicitam – bancos, companhias telefônicas e “prestadores” de serviços – devem ter lá seus acordos com os correios, pois as chancelas já vêm impressas nos envelopes. Quem manda cartas comuns, quem põe selos?
Coisas de outro tempo, e pois de outro mundo.
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Tal como dar corda no relógio. Nós tínhamos um relógio de parede, cuja marca não me lembro mais qual era, muito velho, com pêndulo, que, como era o uso dos relógios antigos, tinha o mostrador em algarismos romanos. Aliás, as quatro horas eram indicadas por IIII e não por IV; havia uma explicação para isso, de que não me lembro mais.
Ver as horas em números romanos era legal e tornava o sistema inesquecível. Nosso jeito de falar as horas era contar os minutos da primeira meia-hora meio arredondando de cinco em cinco (seis e dez, nove e quinze, quase onze e vinte), até os trinta e cinco; depois, eram os minutos faltantes para a próxima hora cheia, também meio arredondando de cinco em cinco (vinte para as dez, quinze para as duas, quase cinco para as três). Nunca se dizia “vinte e cinco para as cinco”, nem – jamais! – “uma menos dez”. E jamais eram “as doze”: era meio-dia ou meia-noite.
Dava-se corda no relógio mediante uma chave, que ficava dentro da caixa do pêndulo. Era serviço exclusivo do meu pai: ai de mim ou do meu irmão se nos metêssemos a fazer isso. (Serviços que aprendi que são exclusivamente paternos: dar corda ao relógio da sala, dirigir, segurar a alça do caixão de parente morto indo à tumba.) Ele o fazia com muito cuidado, girando meia volta e soltando, quase como se a chave estivesse ardente. Dava duas, três voltas, ouvia alguma coisa que não éramos, os outros, capazes de ouvir, e fechava a porta de vidro da caixa. Um dia me explicou:
— Se você não dá corda com frequência, ele começa a atrasar. Mas, se der corda demais, a mola quebra.
— Mola? Não é uma corda?
— A “corda” é uma mola, burro.
Meu fidalgo pai. Enfim, gentileza é quase amor; aspereza também, por que não? Passaram-se uns anos até eu ver uma corda de relógio, que é mesmo uma mola, e lembrei da lição gentil.
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Uma vez, não há muitos anos, tive uso para os correios, e fui a uma agência que existe até hoje na rua Matias Aires. Enquanto esperava minha vez, sentadinho e com senha na mão, uma senhora que lá estava puxou assunto comigo. Reclamou do fato de que aquela agência era privada, creio que franqueada ou coisa parecida. Achava aquilo um absurdo, um plano maligno do Governo (era o Temer) para sucatear os excelentes correios e vendê-los a preço de banana para os amigos do peito. Eu disse a ela que havia outra agência ali perto, na Haddock Lobo, tão zoada e suja que evidentemente nada tinha de privado ou franqueado: que tal se ela fosse lá? Ela disse: ah, é muito longe. E ficou, sentadinha, senha na mão, comodamente abismada.
Se eu já não soubesse um monte de coisas sobre a esquerda e sobre gente que defende o estatismo, teria aprendido ali.
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Uma coisa que havia no tempo dos velhos relógios de corda, e, a falar a verdade, até no dos digitais antes da internet, era a imprecisão de uns minutinhos. No meu reloginho de pulso seriam 10:00 (a hora em que escrevo); no cebolão do vovô, sem corda, 07:45; no de ponto do meu trabalho, 09:54; no despertador da minha mulher, 10:07 (despertador deliberadamente adiantado era quase uma regra); no da parede da cozinha, 10:01; nos dos chamados “logradouros públicos”, todo o quase infinito espectro entre 09:57 e 10:02.
Com o advento da internet e dos telefones celulares, que – cito – “atualizam o horário via sistema”, acabou essa variação. Seja lá qual ou o que for esse tal sistema, repare o amigo (se quiser, claro, ter esse trabalho meio bobo) que tanto seu celular quanto o computador ou a televisão estão sempre marcando a mesma hora e minuto. Enquanto escrevo, por exemplo, são 10:14 tanto no meu computador quanto no meu celular. E os dois mudaram juntos para 10:15.
Você vai achar que aderi à direita delirante se eu lhe disser que, pra mim, isso é coisa do diabo?
Vai, né?
Mas eu acho.
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“No meu reloginho de pulso.” Eu não uso relógio de pulso. Não suporto nada pendurado em mim. Foi o diabo para eu me acostumar a usar aliança e, anos depois, um crucifixo.
Eu teria, entretanto, um cebolão. Mas para isso teria que andar por aí ou de colete ou com aquelas calças folgadas que já não se fazem mais, duas coisas que me deixariam parecido com um desses sujeitos da nova direita (eu sou da velha). Melhor não.
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O lugar do velho feio no mundo.
Acontecia às vezes de eu estar andando na rua, ou no périplo pelas estações de metrô, e ver alguma mulher à minha frente voltando periodicamente a cabeça na minha direção. Eu me perguntava, meio incrédulo, se aquilo queria dizer que elas estavam flertando ou, como dizia Tales de Mileto em algum tratado perdido, “me dando condição”, e, presumindo que sim, ficava um pouco envaidecido: ora, quem diria, nesta idade e nesta forma, sim, senhor, vejam só. Logo percebi, entretanto, que na verdade eu as estava assustando, ou as deixando apreensivas, sei lá se por algo nos meus movimentos, se por algo na minha figura, ou se porque hoje em dia há mais e mais mulheres para as quais todo homem é visto como uma espécie de ameaça ambulante. Ora, eu sou pacato até aos bocejos e às lágrimas, e inofensivo como um banco de praça. A única ameaça que eu represento é à saúde financeira dos convênios médicos: sou um velhote de bigodes grisalhos, ar abatido ou sonolento, nada energético, gordote, hipertenso, e ando sempre com uma mochila pendurada às costas com canetas, chaves e livros – a figura de um senhorzinho pobre ou remediado esperando pela aposentadoria ou pela morte, o que vier primeiro, e não de um assediador ou agressor sexual.
Nada disso conta, é claro, ante o medo ou a inquietude das mulheres, com os quais não se argumenta. Na verdade, não se argumenta com as mulheres em hipótese alguma: é melhor começar a fumar. Passei a atrasar meu passo, já de si meio atrasado, para que elas se distanciassem de mim com a pressa que quisessem ter. Tem funcionado e sido bom para todo o mundo.
Esse misto de conformismo e cautela é o que usamos ultimamente com relação ao Governo e a seus watchmen, suas watchwomen, seus Dredds. Atrasamos o passo, não discutimos nada, vamos passando quietinhos torcendo muito para que nós e a ínfima ameaça que representamos não sejamos notados enquanto passam, céleres, os que ora mandam.
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E chega? Chega. Mas não se vá, amigo, sem clicar no link para a minha coluna nova na Crusoé. Isto feito, aí sim, chega, e até a semana que vem.
Seu texto me lembrou muito os do Herberto Sales em seu "Subsidiário", daqueles que a mera leitura é uma aula de estilo.
Splendid sweet memories! And why not a Little bit Acerbic nevertheless very accurate! Appreciate it.