164. Norte; perigo; queijo; vintém; AMAS; olimpíadas; tocha; moonlight; mindfulness; meditação; exame; músicas; qui habitat; Copa; paródia; link
O norte do debate fica ao sul da minha paciência.
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Só vamos correr perigo de verdade no dia em que ensinarem a Inteligência Artificial a entender piadas. Até lá, ela vai continuar bem burrinha.
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Alguém disse ou escreveu, e é verdade: nenhum queijo apodrece; ele se transforma em outro queijo.
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Gosto da expressão sem vintém, que quer dizer sem dinheiro nenhum, durango à vera. Isto vem do fato de que o vintém era uma moeda de valor baixo: equivalia a 20 réis, tanto no Brasil quanto em Portugal, o que significa que, quando da introdução do cruzeiro, em 1942, valeria (se circulasse; já não circulava mais) 2 centavos.
Ainda era o dobro dos dez réis que compravam uma quantidade tão irrisória de mel coado que equivalem até hoje a mixaria, a merreca. Não consegui descobrir se o fato do mel ser coado piora ou não a situação.
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Leio num jornal desses de internet que está em vigor uma anomalia magnética, a qual anomalia vem afetando os vôos de avião. Aliás, a anomalia tem sigla e nome: AMAS, Anomalia Magnética do Atlântico Sul, e está bem em cima do nosso Brasil brasileiro, brejeiro, inzoneiro, cavorteiro e agora anomalamente magnético.
Fui ler, de curioso, o artigo. Do pouco que entendi, parece que a anomalia é coisa de somenos: o campo só deu uma enfraquecida. Como o caráter e a competência do país. Para sua própria sorte, o campo magnético se restaura. O Brasil, saberá Deus.
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Jogos Olímpicos: efeméride que se repete a cada quatro anos, na qual a gente finge que se orgulha de um brasileiro eliminado nas quartas de final de algum esporte que ninguém nem sabia que existia, tipo curling ornamental.
Não só nos orgulharemos do nosso oitavo colocado na canoagem sobre patins, o sr. Miriedson de Souza (filho da d. Mirian com o sr. Edson): ficaremos revoltados com a falta de apoio a esse esporte tão esquisito, que nosso representante praticou praticamente sozinho no próprio quintal, sem patrocínio nem dinheiro do governo que lhe pague seus patins e suas canoas, sem reconhecimento da imprensa, sem torcida paga por banco estatal, sem menção nas mesas redondas. Nós, os sempre atentos, os grandes incentivadores dos esportistas nacionais.
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Outra coisa que acontece a cada quatro anos é uma espécie de ritual ou, melhor dizendo, cerimônia em que umas belas mulheres gregas, vestidas à maneira de sacerdotisas de Héstia, acendem a tocha olímpica. A cerimônia ou ritual ou lá o que seja acontece em Olímpia, nos restos do templo de Hera. Neste ano, o papel de sacerdotisa acendedora foi bancado pela bela Mary Mina, que é atriz lá pelas plagas da Hélade.
Mary deve ser nome artístico. Conheci três mulheres gregas, e seus nomes eram, como direi, diferentes: Belagia, Stavroula e Sagoula (a primeira era mãe da segunda, a segunda não era irmã da terceira, nem sequer parente aliás). Todas tinham o temperamento tempestuoso de sua deusa-mãe, e eram, Sagoula e Stavroula, muito apresentáveis: fariam belo papel acendendo tochas, bem ajeitadinhas naqueles peplos tomara-que-caia.
Enfim, a tocha costuma ser acesa pela luz do sol, mediante seu reflexo concentrado por um espelho côncavo (ou será convexo? Eu me embanano com essas coisas). Neste ano não havia sol, e devem ter usado um isqueiro. O que importa é que o fogo pegou no breu, e a tocha está correndo o mundo até chegar, como Rick Blaine e Ilsa Lund, a Paris, onde tem visto para duas semanas.
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Ilsa Lund foi, mais que vivida, feita ícone por Ingrid Bergman, a qual foi mãe, com a ajuda nada relutante de Roberto Rossellini, da ainda mais bonita Isabella Rossellini.
Rick Blaine foi também feito ícone por Humphrey Bogart. Rick não gostava de ouvir Sam (Dooley Wilson) cantando
You must remember this:
a kiss is still a kiss,
a sigh is just a sigh.
The fundamental things apply
as time goes by.
Isso o fazia lembrar de Ilse, e todos sabemos que os durões o são só por fora: por dentro, são mais sentimentais do que bluesmen quando acordam de manhã. E choram para dentro: entornam uísque em vez de verter lágrimas. É verdade que os corações de Sam Spade, derretido por Brigid O’Shaughnessy, e o de Philip Marlowe, supliciado por Vivian Rutledge, não os impediram de fazer o certo, mas podemos imaginar os dois homens vivendo depois o verso do Lupicínio: chorando e bebendo na mesa de um bar.
Por isso o bom Sam continuava sua canção fazendo constar que moonlight and love songs are never out of date.
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Descubro que, no Brasil, a tal mindfulness leva o nome de atenção plena. Seu artigo na Wikipedia define o troço como “um estado mental que se caracteriza pela autorregulação da atenção para a experiência presente, numa atitude aberta, de curiosidade, ampla e tolerante, dirigida a todos os fenômenos que se manifestam na mente consciente – ou seja, todo tipo de pensamentos, fantasias, recordações, sensações e emoções percebidas no campo de atenção são percebidas e aceitas como elas são”.
Parece muita coisa, e tudo isso está decerto além da minha capacidade de atenção, de concentração, de autorregulação, enfim, do pacote todo. Eu devo ser bom mesmo é em desatenção plena. Vou chamar a coisa de mindemptiness. Quem sabe eu venda um curso.
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Já tentei meditar, e não deu certo. Eu me sentava, respirava fundo, fechava os olhos, às vezes procurava ambiente bom (arejado, iluminado, não muito fedido), mas, mal dava início, começava a pensar em outras coisas – mulher, música, os problemas da hora – e tentava tirá-las da cabeça, achando-as material impróprio. Mas nunca conseguia esvaziar a cuca, ou trazer a ela os assuntos sublimesinvocados, suponho, pela meditação, e acabava como aquelas crianças chatas nas viagens que ficam perguntando “Falta muito?”; apenas, eu me perguntava “E aí, já estou meditando?”.
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Fiz um exame de consciência quando de um retiro prévio ao meu crisma, e foi muito diferente. Não foi uma meditação: foi o primeiro exercício de auto-sinceridade que pratiquei na vida, já aos 45 anos de idade, e saí dele arrasado, me sentindo o pior dos desgraçados. Chorei, no dizer do delicado poeta Verlaine, como uma vaca.
(Aliás, por que falam em “chorar como uma vaca”? Vaca chora muito?)
Voltei ao mosteiro pensando que era o fim de tudo, mas depois tive a prova suficiente de que Cristo é perdão. Ainda bem.
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No curso que fiz para o crisma, os catequistas falaram de uma prática cristã de meditação, inspirada em práticas ascéticas de uma outra religião, suponho que budista, oriental em todo caso, e que se fazia acompanhar de cantos de indígenas americanos e sons de gongos ou coisa parecida.
Eu tinha, no meu telefone, uns mp3 com a música polifônica renascentista: Palestrina, Monteverdi e outros tais. Os catequistas não deram muita bola. Não os culpo: o mundo hoje é pop e alternativo, e os “saberes ancestrais” estão em voga. Espero que, com o tempo, as tenham descoberto. Em todo caso, nunca entrei, ao ouvi-las, em qualquer estado que possa ser considerado meditativo, contemplativo; sinto antes, ao ouvir essas músicas, um tipo de emoção majestosa, que frequentemente me leva às lágrimas. Sugiro ao amigo a audição de uma coisa simples, o Kyrie número VIII, ou o Qui habitat, de Josquin Desprez. A melhor versão é esta, com o Huelgas Ensemble: só pode ser isso o que os anjos cantam.
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Qui habitat, a propósito, é o começo do Salmo 91: qui habitat in adjutorio Altissimi, in protectione Dei cæli commorabitur. Dicet Domino: Susceptor meus es tu, et refugium meum; Deus meus, sperabo in eum.
Qualquer Bíblia lhe dará a tradução (na numeração moderna, é o Salmo 90). Boa desculpa para abrir uma. É antigo o costume de se ter, no quarto ou noutro cômodo da casa, uma Bíblia aberta nesse salmo como proteção contra diabos, espectros e espíritos maus.
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A Copa do Mundo de 2002 foi minha companheira matinal quando me mudei para a casa de onde saí há pouco. Eu estava desempregado e acordava cedo para pôr minha filha na perua escolar; sem mais nada para fazer, assistia aos jogos da manhãzinha (noitinha no Japão e Coréia). Ia à padaria lá perto, que fechou e reabriu várias vezes, sempre com donos diferentes, e na época pertencia a um português velho e a seus filhos não tão moços; lá eu comprava um croissant ou um tipo de pão muito parecido, recheado com presunto de verdade e não apresuntado, e tomava meu café vendo, digamos, Eslovênia vs. Paraguai, Costa Rica vs. Turquia ou Equador vs. Croácia. Durante a Copa saiu no Diário Oficial a minha nomeação; quando da final eu estava esperando definirem a data da posse, de modo que foi um tempo feliz. Depois disso, parei de dar bola para Copas do Mundo.
Um dos problemas com torcer para um time é atrelar felicidade a um resultado que, por mais que se queira lógico, é sim muito aleatório. Nick Hornby tem uma passagem, em seu livro “Fever pitch” (aqui saiu com o nome de “Febre de bola”), na qual rememora seus tempos de arquibancada, sofrido torcedor que foi de uma das piores fases do Arsenal F. C., onde contesta com alguma veemência a ideia de que as pessoas vão a um jogo para se divertir. Segundo diz ele, com palavras melhores, não havia na arquibancada um único homem que não estivesse se sentido ou infeliz, ou puto, ou as duas coisas. Era quase uma forma de masoquismo. Tendo torcido pelo Palmeiras a vida toda, compreendo muito bem o que ele quer dizer (a fase atual não me engana, nunca vai me enganar). Mas a velhice nos cansa de tantas coisas, e uma delas é a idiotice de torcer desse modo, à espera de um gol para me fazer mais feliz do que eu era um minuto antes dele.
Essa idiotice cansa, sim. E, no entanto, basta o Palmeiras fazer um gol para eu ficar idiota de novo.
Mas Copa do Mundo… essa não me engana, essa nunca mais vai me enganar.
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Só porque o amigo Badé Correa reclamou do bairrismo futebolístico carioca, parodio com times de São Paulo um trecho de uma crônica do querido Paulo Mendes Campos (e ele, Badé, que a parodie com times do Paraná, supondo haver futebol no Paraná):
“Miguel Ângelo é Santos, Leonardo é Palmeiras, Rafael é São Paulo; Stendhal é Palmeiras, Balzac é Corinthians, Flaubert é São Paulo; Bach é Santos, Beethoven é Corinthians, Mozart é São Paulo (Verdi, acrescento eu, é Palmeiras); Sem desfazer nos outros, é com eles que eu fico: Leonardo, Henrique, José. Dostoievski é tanto Palmeiras quanto Corinthians, Tolstoi é Santos (na literatura russa não há São Paulo, mas Gógol é Portuguesa); Baudelaire é Corinthians, Verlaine é São Paulo, Rimbaud é Palmeiras; Camões não é Portuguesa, é Palmeiras; Garrett é São Paulo, Fernando Pessoa é todos os times, inclusive o Juventus e o Nacional. Sim, Machado de Assis é São Paulo, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Perdizes!”
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É o fim? Talvez não. Enquanto o destino delibera, vá o amigo ler minha crônica nova na Crusoé e, a seguir, veremos.
Recebi da livraria do Bezos um livro do Fabre d'Olivet. Quando abro quem é o tradutor? O senhor Tosetto. Grata surpresa.
Maravilhoso!