165. TV aberta; crítica; expletivos; dias de luta; Enéas; Azevedos; Moóca; gaita; Wolfgang; jogos olímpicos; esportes de mocinhas; cancelamentos
De vez em quando a gente é surpreendido por ladrão, por temporal, por cachorro louco ou por TV ligada em canal aberto. Noutro dia vi uma apresentadora de TV, senhora de idade, comendo porpetta e dançando. Antigamente isso levava o nome de “prestação de serviços”; hoje, creio, é “influenciação”. Ou “entretenimento”.
Mas também pode ser história: quando jovens enfermeiros cracudos estiverem cuidando de mim, senil, e perguntarem como era a TV do meu tempo, responderei: era ótima, tinha umas velhas dançando e comendo porpetta.
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Vendo TV aberta na sala de espera.
— Hoje é dia do amigo? De novo?
— Todo dia é dia de alguém ou de alguma coisa.
Pausa.
— Quando é o dia do sanduíche de pernil?
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O jornalista cultural:
— O que você acha da sintaxe do célebre escritor Y?
O crítico sincerão:
— Parece uma pole dancer com uma infestação de oxiúros.
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Na sintaxe do inglês falado hoje pela fina-flor da classe artística britânica e americana, as pausas correspondentes a algumas pontuações – vírgula, ponto e vírgula, dois pontos – são preenchidas com a interjeição ou expletivo fucking. Do mesmo modo, a jeunesse dorée da periferia paulistana usa, para a mesma função, a interjeição ou expletivo caraio.
Direitista pobre, e portanto pessoa ridícula, vinha eu hoje no trem com meus fones de ouvido, e os brados de caraio!, caraio! dos garbosos rapazes e das mimosas moças penetrava, como tiros de fuzil num prato de farofa, o death metal que eu, por razões puramente defensivas, ouvia.
Uma vez, em 1979, meu tio Oswaldo me levou para ver um jogo do Palmeiras no Pacaembu. O Palmeiras perdeu. Lá pelas tantas, antena raivosa do futuro, soltei um caraio! Meu tio, escravo dos costumes e do idioma do passado, me repreendeu duramente. Falar daquele jeito, em público, perto dele? Não, senhor. Comporte-se! Modos!
Os avanços sociais se dão assim, não é? Aos solavancos.
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Foram jantar na casa da professora. Amaram a sopa.
— De que é? –, perguntaram.
— Da história de sofrimento e luta do meu povo –, disse, tranquila, diante dos comensais.
Ela também fazia artesanato e costurava e vendia umas roupas femininas. Quiseram saber o material.
— São feitas da história de sofrimento e luta do meu povo –, disse, tranquila, tirando com a mão um amassadinho de uma bata.
Por fim, admiraram a casa. Colorida, arejada, perfumada. Aquele cheirinho bom era alecrim? Ou era erva-doce?
— É o cheiro da história de sofrimento e luta do meu povo –, disse, tranquila, respirando fundo com as mãos cruzadas sobre o peito.
Indo embora, acenaram para ela da porteira da entrada. Ela, tranquila na soleira da porta, ergueu um punho, símbolo da história de sofrimento e luta do seu povo.
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Trago há anos na cabeça uma frase atribuída por algum amigo ao Dr. Enéas Carneiro:
— O eleitorado é microcéfalo e apedeuta!
A exclamação está aí para que o amigo relembre o tom inesquecível das falas do doutor. Os mecanismos de busca não confirmam a frase, não a encontram transcrita em lugar nenhum. Indicam vídeos de mais de uma hora de duração onde essa boutade talvez esteja, talvez não. Vídeos que eu não verei: minhas horas sobre a terra são cada vez menos e eu as gasto com cada vez mais parcimônia. Mas era, se verdadeira, dura a opinião do doutor a respeito dos que, esperava ele, lhe dariam votos.
Microcéfalo, o primeiro adjetivo, tem raízes gregas e designa o infeliz que padece de uma condição clínica chamada microcefalia, na qual a cabeça e portanto o cérebro do indivíduo são menores – às vezes muito menores – do que o normal. Dessa condição deriva o sentido figurado de imbecil, idiota, retardado.
Apedeuta é termo que também vem do grego e serve para definir a pessoa ignorante, sem instrução. Todos nascemos apedeutas e vamos nos desapedeutando, uns mais, outros quase nada, à medida que aprendemos as coisas da vida e ganhamos, por fora, alguma instrução.
Portanto, o sentido da frase é o de que o eleitorado nacional é idiota e ignorante. Duro, como eu disse, mas é difícil discordar. Temos provas de sua verdade toda santa vez em que entramos em alguma rede social ou sintonizamos, penitentes, algum canal de notícias.
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Apedeuta, aliás, era a alcunha com que, antes de se converter, um jornalista famoso se referia ao Deus atual de sua classe.
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Em tempo: o amigo Kovács descobriu que a frase não é do Dr. Enéas, mas sim de uma zoeira dos saudosos Sobrinhos do Ataíde com ele. Mea culpa, meu vexame. Eis a verdade:
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Anos trinta. Uma campanha nacional contra a saúva e os Azevedos. Ou acabam as saúvas e os Azevedos, ou acaba o Brasil. “Combate os Azevedos pela honra da tua terra!”, diz, num cartaz, um soldado com rosácea apontando um dedo para quem lê.
Mas é como dizia o Rubem Braga: continua havendo saúvas e Azevedos, e continua – continua? – havendo Brasil.
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Sentado com amigos num boteco da Javari, tarde de sábado invernal mas com sol, me convenço, outra vez, de que Buenos Aires é só uma Moóca mais arrumadinha.
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A harmônica – aquela gaita que os bluesmen tiram do bolso do pente e tocam com graus variados de habilidade e selvageria – tem, em Portugal, o nome de gaita de beiços, e entre nós o de gaita de boca. Ou só gaita, como eu já usei aí em cima. Funciona à base de fluxo de ar, soprado ou aspirado, através palhetas, lâminas metálicas que vibram à passagem do ar. A palavra árabe para palheta, a propósito, é alghaita, e daí teria saído o étimo desse nome pro instrumento em português (mas o Uáis diz que a origem do termo é controversa, então não ponhamos a mão no fogo por essa).
Segundo explica o Mestre Carlão, do Quinto Elemento, antes de virar instrumento a gaita era usada como diapasão na afinação de pianos. As mais comuns são as de base em ré, que será a primeira nota aspirada à esquerda. E aí está a primeira coisa diferentona da gaita: como há nela menos furos que notas, algumas notas são obtidas com o sopro, outras com a sucção. E os acidentes (os bemóis e sustenidos, as teclas pretas do piano) soarão a partir de bendings, modificações do fluxo de ar durante o sopro ou a aspiração feitas das maneiras mais criativas e difíceis de descrever - é preciso que o amigo as veja.
Como todo e qualquer instrumento musical, é menos fácil de tocar do que parece. Para nós, que nos criamos com música pop e rock, a gaita chega via os bluesmen. Os grandes nomes são Sonny Boy Williamson, Little Walter, Junior Wells, Charlie Musselwhite, Paul Butterfield, Buddy Greene, James Cotton. Tudo fácil de achar e de baixar. E eu, claro, recomendo.
E pensar que o blues e o rock podiam ter saído completamente diferentes se, em vez da gaita, os caras tivessem pilhado umas ocarinas.
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A gíria gaita para dinheiro talvez tenha origem no lunfardo (esse inevitável lunfardo), que diz guita para falar da mesma coisa.
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Atualizando as traduções televisivas do Millôr Fernandes:
Wolfgang = alcatéia.
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Talvez depois de amanhã, sexta-feira, eu e o amigo estejamos irmanados diante da TV, eu no meu canto, você no seu, assistindo à abertura dos jogos olímpicos. Digo “talvez” porque não sou como o amigo, que é, com todo o respeito, vagabundo: tenho emprego. Mas pode ser que eu fique doente e acabe em casa de molho, e aí me irmane a ti espiando o festão.
A esperança será a de ver francesas bonitas fazendo coisas que distraem: pulando, requebrando, sorrindo (francesas sorriem muito belamente), correndo para lá e para cá com pedaços de pano nas mãos ao som de... sei lá qual cantor, cantora ou simulacro que faça sucesso hoje na França. Quem eu conheço – Yves Montand, Patachou, aquela cabrita chata da Edith Piaf, Charles Aznavour – já morreu tudo. Mas darão um jeito, claro. Hoje o baticum é de lei. É certo que haverá alguma espécie de hip hop.
Bem, ver-se-á, veremos. Tenho a impressão de que vou adormecer; mas se eu adormecer com um tchauzinho da Marion Cotillard ou com uma piscadela da Léa Seydoux, tudo bem. E sei que serão bons os jogos. Não os verei, mas serei informado de tudo, inclusive dos sucessos inesperados de brasileiros(as) desconhecidos(as) em esportes esquisitos, pelas redes sociais.
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Mas é mentira que eu não acompanhe nada. Gosto daquele esporte em que mocinhas saltam de trampolins bem altos e caem na piscina em meio a muitos retorcimentos e piruetas. Gosto daquele esporte em que mocinhas, geralmente da Europa Oriental, rebolam e saltitam com bambolês, fitas e bolas. Gosto daquele esporte em que mocinhas de saiote ficam patinando. E eu gostava de mocinhas jogando vôlei, em quadra ou num areião, mas ultimamente elas vêm fazendo tanta questão de se mostrar “raçudas” e “determinadas” e “heróicas” que eu acabei enjoando.
Ah, sim, gosto bastante de rugby de 7.
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Esta newsletter circula todas as quartas-feiras, às 21h00. Ou, pelo menos, tem circulado. Quase invariavelmente, o primeiro e-mail de notificação do Substack é para informar o cancelamento de uma assinatura. Muitas vezes o segundo também. O assunto é inequívoco: “E-mail desativado para Silly talks”. É muito rápido: se a newsletter chega às 21:01, o cancelamento chega às 21:10, 21:15 no mais tardar.
Me dá sempre a impressão de que algo nela foi a gota d’água para aquele assinante. Imagino o cancelador lendo as primeiras linhas e dizendo “Bom, agora deu!”, ou “Não, isso não dá para engolir”, ou ainda “Caramba, como é que eu ainda aguento este negócio?”, e tomando a decisão de ir lá e cancelar os envios. Como se já viesse amolado com ela há tempos e aquele fosse o ensejo, a oportunidade. Ou como se a baboseira qualquer que leu fosse o raio de luz que lhe iluminou o entendimento e o fez ver que vinha perdendo tanto tempo com porcaria.
Não há, claro, nada que eu possa ou queira fazer quanto a isso. As pessoas vêm e vão. E, felizmente, o número dos abnegados assinantes sempre aumenta. Do mesmo modo, gostam e desgostam de tudo: música, gente, comida, trabalho, newsletters. Como e quando raros sabem, e mais raros antevêem. Em todo caso, quase nunca tenho ideia de qual possa ter sido a linha ou trecho “gota d’água”. Qual terá sido a parte a ofender ou enfadar definitivamente o desistente? Às vezes me ponho a reler a newsletter devagar, pensando “terá sido isto? É possível que tenha sido aquilo?”. Nunca atino, porque, na verdade, sempre acho tudo muito bom, e, fosse eu outra pessoa, a assinaria com gosto.
Com igual gosto, espantaria o anjinho da humildade soprando na minha orelha “É, bebé, mas toda semana tem gente que começa a achar isto aqui uma porcaria e vai-se embora”.
Não quero lições de humildade, quero é ser amado incondicionalmente. Meu coração é simples como o de uma empregadinha de Flaubert.
Ama-me, leitor, ou deixa-me. Não, calma, isso é com o Brasil. Não me deixa, não. Fica aí, vai. Prometo que pouco ou nada vai mudar. E até semana que vem.
Tenho uma surpresa para você, Orlando. A frase do Eneias não é dele, mas de um esquete de rádio dos Sobrinhos do Ataíde em que o imitam: https://www.youtube.com/watch?v=cnODXqS3wlE
Essa preciosa newsletter me remenda - como que um abraço consolador - em meio a ambiguidade das quartas-feiras, que não são fim nem começo… Até a próxima semana!