166. Oitava arte; tatuagens; espera; fúcsia; categoria; Ross MacDonald; Marlowes; cacófato; hiato; vícios; ritmo e rimas; link
Parei de contar as artes quando cheguei ao cinema, que era, segundo outros matemáticos, a sétima.
Agora, parece, tem uma turma no Governo do Brasil transformando o cinismo na oitava.
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“A vida é curta demais para não se tatuar”, diz o cartaz no meu caminho pro trabalho.
Portanto, o cidadão peludo e másculo tem, segundo o IBGE, apenas 76,2 anos para terminar de desenhar a Hello Kitty na nádega esquerda. Ou um ideograma chinês, cujo significado ele não conhece, na batata da perna direita.
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De uns tempos para cá, tenho visto que algumas linhas do metrô de São Paulo – a amarela e a verde – vêm anunciando aos passageiros que esperam quanto tempo falta para chegar o próximo trem. A novidade começou na linha amarela, privada, e chegou à verde, estatal, de onde é certo que vai se espalhar para as demais estatais (vermelha, azul, fúcsia, que sei).
Me pergunto se é coisa originária dos grandes centros metroviários mundiais – Londres, Hong Kong, La Paz, São Cristóvão da Havana – ou se é coisa típica de São Paulo e de suas correrias. Se é uma forma de conter as pessoas que, depois de trinta segundos que um trem partiu, começam a bater o pé, impacientes, na plataforma, xingando “a demora desse metrô de merda”. São muitas, acredite.
Esta é a cidade em que, nas estações em que o metrô permite baldeações, sempre umas dez pessoas saem correndo à toda de cada trem que pára. Compreende-se que, depois do esforço quase sempre inútil – porque quase sempre terminam alcançadas pelos que não correm e ficam todos à espera de uma composição que, temem eles, nunca chegará –, mereçam o consolo de saber que o próximo trem chega em dois minutos e quarenta e sete segundos.
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Eu não sei que cor é o fúcsia. Não adianta me mostrar uma paleta e pedir para procurar, não vou saber nem em que direção começar a espiar.
Me parece que a palavra podia batizar algum carro. Chevrolé Fúcsia. Motor 1.0 turbo, considerado o melhor de sua categoria.
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“O melhor de sua categoria” é um dos elogios mais dúbios que pode haver. E exige, para ser compreendido, muita informação prévia: qual é a tal categoria, quais são os outros que estão nela, quem o elegeu o melhor e por quais razões, etc.
Mais dúbio ainda seria “um dos melhores da sua categoria”. Aí a gente ainda precisa olhar o ranking.
É como eu elogiando um dos meus gatos que sobe na mesa para me atrapalhar: “você é o melhor gato em cima desta mesa”. Ele deve achar bom, porque faz ronrom e esfrega a cabeça na minha mão.
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Jorge Luís Borges não gostava dos detetives americanos linha hard-boiled. Não gostava de tiro, porrada, perseguição, femmes tentando ser (e às vezes sendo mesmo) fatales. Preferia o mundo dos policiais ingleses, dedutivo, com violência muito restrita e tramas criativas, pouco importando se plausíveis ou não. Ele achava que esse tipo de mistério ajudava a aumentar a inteligência do leitor, e exigia muito da imaginação do escritor, que precisava criar um problema interessante. O detetive que Borges criou junto com seu amigo Adolfo Bioy Casares, Don Isidro Parodi (que beleza de sobrenome), era nessa linha: tão dedutivo, tão inimigo da ação, e tão inteligente, que resolvia seus casos preso numa cela de penitenciária.
Gosto é gosto, para cunhar uma frase, e se bem eu goste muito dos dedutivos, no meu coração há muito lugar para os detetives americanos durões e seus puzzles muitas vezes mais engenhosos, e mais críveis, do que os ingleses. Talvez o grande problema do hard-boiled é que seus clichês são mais fáceis de identificar e cansam mais do que os clichês do crime intelectual. Por outro lado, suas paródias são mais divertidas: se o amigo duvida, assista o filme “Cliente morto não paga”, do Steve Martin.
A mistura dos dois estilos, rara, é entretanto feliz: Rex Stout fez com sua dupla Nero Wolfe (o dedutivo) e Archie Goodwin (o durão, o homem de ação) uma série de livros muito boa e muito divertida de se ler: o durão ironiza o dedutivo, o dedutivo emprega a energia sem fim do durão. E é tudo na linguagem hard-boiled, primeira pessoa, cinismo, porradas, revólveres, cupês e candura. Outra paródia excelente que mistura os dois estilos é o filme “Assassinato por morte”, que eu recomendo ao amigo com aquela veemência dos que te pegam pelo colarinho e cobrem a sua cara de perdigotos.
A santíssima trindade dos hard-boileds é formada por dois: Dashiel Hammett e Raymond Chandler. Pro meu gosto, Chandler é muito melhor do que Hammett, ainda que menos cínico (Chandler era um sujeito complicado). Cada um tinha seu detetive: Hammett e Sam Spade, Chandler e Philip Marlowe. Mas eu quero falar ao amigo de um terceiro que devia formar uma trindade verdadeira com esses dois: Ross MacDonald e seu detetive durão, Lew Archer.
MacDonald é quase tão bom escritor quanto Chandler, e fica até melhor do que ele no fim da carreira. Leva-lhe vantagem também pelo fato de que escreveu mais e por mais tempo, e com isso foi depurando seu estilo de maneira notável. Archer é, como Marlowe, um coração esperançoso enterrado numa carapaça de pedra. Como bom ex-policial, finge que não acredita em nada nem em ninguém, e confia desconfiando. Como o leitor, demora um pouco a entender o que está acontecendo, mas, como deve ser nesses romances, entende antes e melhor do que quem lê. E é generoso ao explicar tudo. Não há livro em que não leve pelo menos uma boa surra. Não há livro em que não morra alguém. Tudo parece que se passa nos anos 40, até mesmo as histórias dos anos 60: você imagina que todos os carros são Lincolns, Packards, Pontiacs. E, ainda que nunca se mencione, você imagina um fedora e cigarros em fila indiana. Todo o mundo sempre compra os seus blefes. A trilha sonora é sempre How deep is the ocean, nesta versão aqui:
Felizmente para o amigo, ele teve muita coisa traduzida no Brasil. Quase tudo está restrito aos sebos, mas a sorte do amigo continua: romance policial sai sempre barato. Eis a lista: “O alvo móvel”, “A piscina mortal”, “A morte me persegue” e “O sorriso de marfim”, todos da L± “O inimigo imediato”, “Também se morre assim”, “Dinheiro sujo” e “A tragédia Blackwell”, todos da Companhia das Letras; “Procura-se uma vítima”, “Cidade corrompida” e “O homem sob a terra”, todos da Record; “Um retrato fatal”, da Abril Cultural; “O olhar de despedida”, da antiga Artenova. Se o amigo se interessar, aproveite.
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O detetive Philip Marlowe talvez fosse descendente remoto de Christopher Marlowe, o dramaturgo inglês que antecedeu Shakespeare como o bam-bam-bam dos teatrólogos ingleses. Aliás, entre as correntes de criaturas estranhas que negam ou a existência real, ou o talento de Shakespeare, há os que dizem que Marlowe era ele. Ajuda os malucos o fato de que Marlowe pode ter falsificado seu assassinato numa briga de boteco em 1593 para virar, hum, agente secreto a serviço de Sir Walsingham.
Raymond Chandler viveu na Inglaterra dos oito aos vinte e quatro anos de idade, e, nos tempos em que foi aluno do Dulwich College, sua “casa” naquele colégio era a Marlowe House (talvez a Sonserina de lá). A homenagem do detetive durão ao dramaturgo-espião dá uma graça adicional aos livros que escreveu.
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Tempo houve em que se usava elidir o m no artigo indefinido uma: grafava-se u’a. O propósito disso era evitar o vício de linguagem chamado cacófato ou cacofonia, que consiste, segundo o dicionário, em “palavra ou expressão obscena, ridícula ou fora de contexto, formada pela sílaba final de uma palavra e pela inicial da seguinte”. Temos exemplo famoso em Camões, com a “alma minha gentil que te partiste” do Soneto XIII de suas “Rimas”, e só podemos chorar com o poeta a maminha partida. A tradução mais comum de Sófocles, “Édipo Rei”, é outro exemplo célebre. E os de tiozão: “vou-me já”, “a boca dela”, “as flores no cume cheiram” (se bem que este exemplo não se encaixa bem na definição, mas os tiozões não estão nem aí).
Sem dúvida o u’a evitava os cacófatos de “uma madeira”, “uma mão” e “uma madame”. Se bem o vi escrito, especialmente nos livros editados até o começo dos anos cinquenta, jamais entretanto o vi pronunciado. Ninguém falava u’a, nem para imitar índio com a língua presa: u’a bu’a.
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Em tempo: há quem considere o hiato um vício de linguagem.
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Não sei se nas escolas ainda se ensinam os vícios de linguagem (sei lá se ainda se ensina português), entre os quais os mais inesperados são os estrangeirismos: o galicismo, que já foi muito popular (termos vindos da França), o hoje reinante anglicismo (da língua inglesa), os espanholismos, etc.
Uma amiga que foi fazer seu mestrado em Portugal falou ou escreveu câncer e recebeu, para sua surpresa, reprimenda de um professor:
— Câncer é galicismo. Diga e escreva cancro.
Ela o fez, não sem algum incômodo espantado.
Um exemplo de espanholismo é monastério: em português, dizemos e escrevemos mosteiro. Já exemplos de anglicismo, ora, o amigo os colha aqui mesmo, nesta newsletter. Ou em verbos novos, como escanear. Ou em termos absurdos como mandatório. Ou em todas as vezes em que um nome próprio conhecido em português aparece como no inglês (Odoacro, por exemplo, já vi legendado como Odoacer; Boécio aparece nos livros como Boetius, Píndaro vem como Pindar, etc.).
Você hoje vai ler um livro traduzido, ou simples legendas de filmes, e descobre que a anglicização já ultrapassou muito a linguagem corrente e vem entrando firme na nossa sintaxe. Exemplo disso é o tanto de vezes em que o adjetivo toma a frente do substantivo nas frases escritas em português, como regra e não como a exceção que servia para dar destaque à qualidade sobre seu portador.
Mas um idioma é tanto o léxico, as palavras que usa, quanto a sintaxe, o modo como as usa. Ter a sintaxe modificada, alterada, corrompida em suma, é começar a ter outro idioma. Acho que estamos entrando nessa fase.
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A primeira edição das “Rimas” de Camões, de 1595 (creio eu), grafava rimas como rhythmas. Se o amigo se lembrou do termo inglês rhythm (aqui não é anglicismo), ou simplesmente de ritmo, se lembrou bem, se lembrou certo. Tudo vem do grego rhythmós, que significa “movimento regular”.
Não há poesia sem ritmo, que é dado pelas assonâncias (entre as quais está a rima), pelo jogo entre sílabas fortes e fracas (cadência) e pela própria quantidade de sílabas e sua posição no verso (métrica). É o ritmo que ajuda a decorar e a declamar.
As rimas são rítmicas, sim, senhor.
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Camões dividiu suas “Rimas” em cinco partes, e dedicou todas as cinco ao muito ilustre senhor Dom Gonçalo Coutinho. O impressor foi Manoel de Lira, às expensas do mercador de livros, que nós chamaríamos hoje de editor, Estêvão Lopes. Ontem nas enciclopédias e nos quem-é-quem, hoje na internet, podemos descobrir quem foram Gonçalo, Manoel e Estêvão, caso neles tenhamos algum interesse. Já quem foi Camões, aprendíamos (felizardos) na escola. Que, se não era muito risonha e quase nada franca, ainda nos dava os grandes nomes e as grandes datas, ensinava os vícios de linguagem e a decorar a tabuada.
Eu sofri muito com a tabuada de multiplicação, amigo, especialmente a do 7, mas afinal a decorei. Vem-me sendo útil vida afora, me ajudando principalmente a não ser enganado no troco da padaria. Já é alguma coisa.
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Antes de ir, não deixe de dar uma espiada na minha crônica nova na Crusoé. Isto feito, aí sim, tome o amigo seu chapéu, e nos vemos de novo em sete dias, se sete dias nos restarem. Até lá.
Chique no "úRtimo"
https://youtu.be/PHRCTWkIykk?si=_mvx33NAQTbCSFM-
Fico contente que Borges nunca tenha feito roteiros para a tira do Dick Tracy.