168. Neutralidade; break; arrastão; mais break; tema; blues; Tom Cruise; charges; idéias ruins; gravata borboleta; Fernando Sabino; cartas; mais cartas; lembrança; link
Redes sociais são lugares onde se pode ser histericamente neutro.
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Ri quando me disseram que a dança do break tinha virado esporte olímpico, mas o fato é que virou mesmo, ao menos nessa edição parisiense – Paris, a cidade dos croissants, de Rick Blaine e Ilsa Lund, e do break. Um histórico da valorização esportiva das atividades físicas de marginais e vagabundos que começou com o skate e chegou agora ao break deve considerar, no futuro próximo, o parkour e a pichação (vão chamar de graffiti) e, um pouquinho mais adiante, o dichavamento/bolação, a feira do rolo e o arrastão.
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Mas eu gosto de muitas músicas dos tempos primeiros do break. Faixas do Afrika Bambaataa como “Looking for the perfect beat”, “Frantic situation” ou “Renegades of funk”, especialmente os remixes instrumentais, ou ainda Planet Patrol e sua “Play at your own risk” ainda são muito ouvidas por aqui. Ouvidas e não dançadas, porque, se já me era impossível dançá-las em 1983, avalie o amigo como será agora. Não conseguiria nem sequer uma performance australiana.
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Em todo caso, ninguém nos tirará o ouro no arrastão – que nos amealhará, além dos seus próprios, vários ouros, pratas e bronzes alheios.
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Teimoso, fiz uma tentativa séria (40 segundos no total), mas descobri que minhas breakdance skills estão em nível infra-australiano.
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Em casa, vendo a natação artística.
— Qual é o tema delas?
— Pela magreza, deve ser a fome.
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“3 o’clock blues” é um blues, claro, de Lowell Fulson gravado em 1951 pelo B. B. King. Foi o primeiro sucesso do B. B., e nunca saiu do seu repertório de shows. A letra é aquilo lá: são três da manhã, não consigo pregar o olho porque sabe Deus onde minha baby está, onde minha baby foi parar, e, quer saber?, assim não dá, acho que vou me matar.
Sabemos que ele não se matou só pela quantidade de blues que começam com woke up this morning e continuam com just to see my baby’s gone. A amnésia que o faz redescobrir de manhã o pé na bunda que a baby lhe deu na madrugada sugere o sono do uísque – bourbon no caso dos bluesmen, cachaça no dos sambistas tristes, dos Lupicínios. Tradição também é isso.
O problema é menos a baby ter se mandado, dado que as babies vêm e vão (e sem baby que caiu fora não há afinal o blues), e mais a hora: três da manhã. É a chamada “hora do diabo”, hora em que o cramulhão tem mais força e que uma baby faz falta para proteger qualquer homem, bluesman ou não, do capeta e da parte mais escura da solidão. Sim, amigo, a baby te protege do capeta, se não acontecer do capeta ser você. Ou ela.
A Igreja ensina que as três da manhã são a hora do diabo porque este, inimigo e macaco de Deus, e seu inverso também, a escolheu para zombar da hora em que, segundo os Evangelhos, Cristo morreu: três da tarde. Às três da manhã o demônio tem mais poder, ou fica mais disposto a aprontar, e portanto vem atormentar os bluesmen e também a gente comum: rara é a noite em que eu não acordo lá pelas três, três e meia, premido pelo diabo da bexiga.
Se o amigo quiser ouvir duas boas versões de “3 o’clock blues” com o B. B. King, a primeira está no disco “Live at Cook County Jail”, disco de resto excelente e apropriadamente gravado num show dado numa cadeia (“se você nunca foi preso, você não sabe o que é o blues”), e a segunda está no disco que ele gravou com Eric Clapton, “Riding with the King”. Que também é muito bom, menos pelo King, já cansadão, e mais pelo God.
A versão com o dono Fulson, de 1948, pode ser encontrada na boa coletânea “Trouble trouble - The definitive early years collection”. É um nadinha mais acelerada e acústica.
Tanto Lowell quanto B. B. eram adeptos das guitarras Gibson 335. A do Fulson era vermelha; a do B. B., pretinha, tinha nome: Lucille.
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Espiávamos entrecortadamente, porque coincidiu com o dia dos pais, a cerimônia interminável de encerramento dos Jogos Olímpicos quando vimos o Tom Cruise descendo no meio do estádio pendurado nuns cabos e depois caindo fora de moto com a bandeira olímpica. Ele entrou com moto, bandeira, operações plásticas e tudo na culatra de um avião militar e depois, sem esperar aeroporto, decerto por ansioso, pulou de pára-quedas com ela em Los Angeles, que sediará os próximos jogos. Lá ele a passou para uma turma que a levou até um show dos Red Hot Chili Peppers enquanto ele finalizava sua empreitada alterando o logotipo de Hollywood para ficar com os cinco aros coloridos dos jogos. Frenesi meio insensato de ação, a baboseira se tornou divertida porque o auge da festa parisiense foi uma orquestra fuleira tocando uns hooked on classics e um pernilongo humano dourado fazendo micagens rodeado de sujeitos sem rosto andando de quatro. Parecia o Natal do South Park.
Bom, Tom Cruise, cujo sobrenome é Mapother e não teve nada que ver com a chatice parisiense, é cinco anos mais velho do que eu (ele tem 62 anos), mas bons hábitos e melhor dinheiro fazem com que, postos eu e ele lado a lado, ele pareça ser meu irmão mais novo. Inimigo da proatividade, se, quando eu fizer 62 anos, me derem uma bandeira para levar a algum lugar, pode o amigo ter certeza de que ela vai enroladinha na minha mala, e eu vou enroladinho e adormecidinho na minha poltrona de avião (ou de trem, de ônibus, do que for).
É por isso, claro, que eu não tenho o nome que o Tom Cruise tem, nem ganho o que o Tom Cruise ganha. Por isso e porque sou feio, chato e sem talento nem presença. Paciência. Em tempo: eu gosto dos dois filmes que ele fez interpretando Jack Reacher.
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Delfim Netto colecionava as charges e os cartuns que o atacavam. Uma vez vi uma entrevista com um chargista, não lembro mais se o Laerte ou o Luiz Gê, que, em vez de achar graça do fato, ou de ver naquilo algum tipo de cavalheirismo de adversário, ficava bravo e dizia que era “coisa de doente”. Acho que é porque viu frustrada uma tentativa de ferir. Ou viu que Delfim Netto não dava muita importância nem à opinião, nem à arte dos cartunistas.
Deixar clara a alguém sua desimportância, sua insignificância, quase sempre é fazer um inimigo cruel.
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As pessoas não sabem diferenciar bem um argumento ruim de uma idéia ruim.
Quando digo “as pessoas”, me incluo. Pessoa sou também, ao menos até prova em contrário.
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Se você não é garçom, nem faz parte de um grupo de cantores formado até o meado dos anos 60, não use gravata borboleta.
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Ando lendo “O grande mentecapto”, do Fernando Sabino. Tem suas graças, e até momentos inesperados e surpreendentes de erudição. Algumas piadas pressupõem um leitor mais ilustrado do que os de hoje em dia – fiquei surpreso de saber que o livro é de 1979, e também com uma menção a Umberto Eco. Também espanta que a minha edição, comprada num sebo, seja a 71ª (de 2008): se pensarmos que cada edição nacional é de, na média, 2.000 exemplares, temos aí um senhor best seller que vendeu, em quase trinta anos, cerca de 140.000 exemplares. Fico pensando que deve ter figurado em currículo didático lá pelos anos 80/90.
O romance é picaresco, um pouco à maneira do Quixote ou do Lazarilho de Tormes – mais pro Quixote, dado que o protagonista é mais maluco do que ladino como o Lazarilho. Geraldo Viramundo vira menos o mundo do que as Minas Gerais, em data incerta mas que deve cobrir o período entre as décadas de 30 e 60, e vive as desventuras em que o põem sua doidice cheia de boas intenções e a maldade do mundo. Há menos um enredo do que uma sequência de cenas costuradas pelo deslocamento do personagem e por uma prosa esperta, talvez um pouco autoconsciente demais, prosa tão esperta que disfarça bem os clichês de certas situações.
Comprei esse livro enganado: o confundi com “O encontro marcado”, que é o que eu ainda quero ler. Amigos me dizem que seu livro de crônicas de viagens é precioso – e eu nem sei como esse livro se chama. Mas, percorrendo seus títulos, me interessei por outros dois ainda: “No fim dá certo” e “Lugares comuns”. Vejamos se terei tempo, dinheiro, paciência e futuro para os ler.
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Às vezes me pego acarinhando a ideia de escrever cartas à mão a alguns amigos. Tenho equipamento que preste, a saber: canetas boas (tinteiro, de gel, de tinta líquida), tintas boas, papéis adequados. E gosto de escrever à mão. Minha letra de mão (hoje as pessoas, meio bobamente, chamam de letra cursiva) é legível e, se eu resolver caprichar, até que bonitinha.
Mas não sei se é uma ideia que pegaria. Talvez funcionasse por algum tempo, mas a vida de hoje não facilita a ninguém sentar-se à mesa com papel e canetas, redigir, depois envelopar, endereçar, levar a carta ao correio e pagar o porte. E o correio ainda é aquilo que sabeis: morando num bairro central de São Paulo, quase sempre só recebo as contas (quando chego a recebê-las) dias depois de vencidas, o que me obriga a pedir boletos pela internet. Verdade que as cartas geralmente aguentam algum atraso, mas é certo que não se tornaria um hábito; com o tempo, curto, as pessoas desistiriam.
Paulo Francis diz em algum lugar que, no começo do século XX, o correio inglês tinha três entregas diárias, de modo que dois correspondentes podiam, filosoficamente, trocar tese, antítese e síntese entre o breakfast e o chá das cinco, e que não à toa essa foi a época mais civilizada do mundo. Ou da Inglaterra, que seja. Não duvido.
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Essa e outras épocas – todas as que tinham correio que funcionava – geraram volumes com coletâneas de cartas de vários escritores. Li alguns que me encantaram. “A life in letters”, de P. G. Wodehouse, é um; as “Cartas exemplares”, de Flaubert, é outro; as “Cartas a Théo”, de Vincent Van Gogh ao irmão, ainda outro; ou, para os fortes, o erotismo escatológico das cartas que James Joyce mandou a sua mulher, Nora, outro ainda.
O Brasil edita poucos livros desses, decerto porque o leitor nacional, que já não gosta de quase nada, não terá apreço pelo gênero. Mesmo assim, o país tem gostado de compilar as correspondências de Carlos Drummond de Andrade, de Mário de Andrade e de Clarice Lispector. E também há mais de um volume de cartas do Fernando Sabino de que falei aí em cima (eu tinha escrito “Mário Sabino”, e os amigos Marcel Novaes e Felipe Ortiz, delicados e atentos, apontaram o erro, que corrijo agora) – um deles, ora, de cartas trocadas com a Lispector. Ainda não li nenhum desses; tenho, certamente por preconceito bobo, o temor de que só tratem de picuinhas e mesquinharias. Tomara que eu esteja enganado.
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Noite de sábado, ano 2000. Minha filha tinha cinco anos. Voltávamos para casa vindos do cinema, talvez, e nosso ônibus empacou num congestionamento grande na Avenida Águia de Haia. Decidimos fazer o resto do caminho a pé. Saltamos. Na esquina da Campanella, vimos a razão do travamento: uma procissão, já não lembro se de Páscoa ou do quê. Segurei a mão da minha filha e disse:
— Quando abrir a gente corre pro outro lado e atravessa a procissão, tá?
— Tá!
Quer deixar criança feliz, basta correr com ela. Corremos. Estava frio. Ela ficou sorridente e rosadinha. Quando chegamos ao outro lado, ela soltou:
— Oba! Passamos pela prostituição!
Quer deixar pai feliz, acumule lembranças assim.
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Não se vá o amigo, entretanto, sem antes clicar e ler minha crônica nova na “Crusoé”. Isto feito, aí sim, nos despedimos até a semana que vem.
Curioso como chargistas(tipo o Laerte), que nos últimos anos viraram "alisadores de bagos" de políticos ficarem "putinhos" com o Delfim Netto. Ponto pro Delfim.
Em tempo, seria Geraldo Viramundo um Forest Gump mineiro?
A propósito, o Mário Sabino tem um romance interessante e bem escrito (O dia em que matei meu pai). Li também dele uma coletânea de contos — achei interessante um sobre um Papa ateu. Ele escreve muito bem, deveria escrever mais ficção inclusive.