“Há algo no ar além dos aviões de carreira.”
Sempre que lia essa frase, me perguntava o que eram os “aviões de carreira”. Lembro de haver ficado espantado quando descobri que um dos sentidos de “carreira” era corrida, correria. Daí eu achar que os aviões de carreira eram aviões que disputavam uma corrida. Levei um tempinho para descobrir que eram os aviões das companhias aéreas, os aviões de passageiros.
Mas a frase quer dizer o quê? Há no ar muito mais coisas além de aviões, de carreira ou não: há helicópteros, pipas, balões, passarinhos, morcegos, fumaça, gases, peidos. Tá cheio de coisa no ar.
É como dizer: há algo na água além de coliformes fecais. Ou: há algo na terra além de cadáveres. Ou: há algo no fogo além da cor vermelha.
Ar, água, terra, fogo. Paro antes que alguém me acuse de gnóstico.
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Em castelhano, também conhecido como espanhol, morcego se diz murciélago. Agora diga o amigo murciélago em voz alta e veja se não soa a coisa mais horrível do que um mero, um pobre morcego. Se não soa a algo como um morcego zumbi, ou ao próprio Conde Drácula pelado, roxo e amarelo, com dentes pontudos e olheiras.
Tem palavras assim, em que o som sugere a imagem. Como sugere Borges com as palavras unheimlich (alemã) e eerie e uncanny (escocesas), palavras que remetem ao sobrenatural já na maneira como soam. Ou como, para mim pelo menos, quase toda a língua romena.
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É famosa a história de Graciliano Ramos revisando um texto de jornal e riscando a palavra “outrossim” enquanto dizia:
— Outrossim é a puta que o pariu.
Jorge Luís Borges achava feios todos os derivados de leche: lechoso, lechal. Aliás, no castelhano, leche é feminino. Sangre também. E as cidades são tratadas no masculino: meu Buenos Aires. Ainda que ciudad seja, como no português, feminino.
Bem, imagino que ter que ler outrossim vinte vezes por dia encha alguém de amargura. Eu tento não ter raiva nem bronca das palavras, mas sim de seu mau uso. O uso indiscriminado acaba sendo errado, e por isso é mau.
Não há palavra, por feia que seja – e há sim palavras feias – que não seja também útil.
Não se criam palavras à toa. E nem em número suficiente.
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É incrível, mas Roberto Campos foi, no seu tempo de ministro, e bem depois até, mais odiado pela imprensa canhota do que o Paulo Guedes. Considerando que os dois homens fizeram muito mais bem do que mal, avalie-se por aí a inteligência da imprensa canhota brasileira (hoje, 90% dela; na época do Roberto Campos, uns 75%).
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Na caixa de som aqui diante do laptop Joe Pass dá a entrada em “Stompin’ at the Savoy”. Tinha swing o velhinho Passalacqua, que tocou e gravou com Ella Fitzgerald e Oscar Peterson. Sentada em cima da mesa, uma das minhas gatas sente o tal swing e requebra duas, três vezes. Depois começa a tomar banho.
Não faltam gatos ao Brasil, nem discos do Joe Pass. Mas talvez nos tenha faltado, na época certa, um hotel chamado Savoy.
A gravação que eu e a minha gata ouvimos está num disco de uma série de Pass chamada “Virtuoso”: 3 LPs de estúdio e um ao vivo. Todos muito recomendados. Aliás, não estranhe o amigo eu escrever LP: quer dizer long playing, um disco que toca por mais tempo do que um compacto. Todo CD é um LP. Às vezes até dois, tão long pode ser seu playing.
Eu devo ter ainda uns cem LPs de vinil guardados em caixas no depósito. Tenho também alguns compactos simples. Não tenho onde ouvi-los: não tenho toca-discos há muito tempo, e tenho receio de comprar os que estão à venda por aí hoje: tenho contra eles todos os preconceitos de audiófilo dos anos 80 – contrapeso, anti-skating, controle visual de velocidade e de rumble (tem que ser de correia, nada de encaixe direto), qualidade da cápsula e da agulha. Em todo caso, tenho a maioria deles em mp3 num HD externo, de modo que tudo bem. Pois é, eu aturo o mp3, mas não aturo uma pick-up ruim. Incoerência. Humano, moderadamente humano.
Os primeiros LPs que comprei foram a coletânea 62/66 e Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e o Led Zeppelin IV – o que tem Stairway to heaven (starin’ to heavy na pronúncia brasileira). Discos que até hoje conheço de cor e que estão lá, em estado excelente, no meu depósito. Custaram no total quatro mil e oitocentos cruzeiros em maio de 1982, pagos com um presente de aniversário de cinco mil cruzeiros dados pelo meu padrinho. Era quase meio salário mínimo da época, o que mostra que o salário mínimo de então, equivalente a dez LPs, era baixo mesmo.
Hoje deve estar quase tão baixo quanto antes, a julgar pelo mercado de vinis. Leio que os discos de vinil andam custando duzentos reais em média. É verdade que, pelo que se alega, hoje são melhores do que os de então – pelo menos a gramatura do vinil é bem mais alta (duvido que os dos anos 80 chegassem aos 75 gramas, por exemplo). E as capas devem ser de papel grosso – ainda tenho uns (por exemplo, o Under a blood red sky, do U2, ou Tea for the tillerman, do Cat Stevens) cujas capas são de papel fino como sulfite.
Essa era aliás a diferença entre discos nacionais e importados: capas boas, vinil de gramatura alta, prensagem cuidadosa e, claro, som muito melhor. Descobri isso quando achei, por merreca, um LP americano usado de Texas flood, do Stevie Ray Vaughan. Quando o comparei com a minha edição nacional, fiquei triste com a diferença de som – não só na clareza, na qualidade, mas até no volume.
Por isso comprei um tocador de CDs assim que pude: pela esperança de ter o mesmo som dos discos importados. Veja o amigo que isso foi antes da onda de remasterizações, de faixas bônus e o escambau. E eis que o som do CD era melhor mesmo. Abandonei de vez o vinil quando ouvi a primeira remasterização de Disraeli gears, do Cream: aquela limpidez, aquele poder, aquela impressão de quase poder ver os caras tocando na minha frente.
Não sei como estará o som do vinil hoje. Não estou morrendo de curiosidade para saber. A única saudade que me resta é das capas grandes e dos encartes.
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Em janeiro de 1978, minha prima Marli, segurando uma revista com uma fotografia do Sidney Magal, disse para mim e para meu primo Ubirani, na porta da casa da minha avó, em Minas Gerais:
— Isto é que é hômi!
Nós rimos. Todo cantor era bicha, verdadeira ou honorária. Se, ao ato condenável de cantar, agregasse o condenabilíssimo ato de rebolar, então pronto, não cabia qualquer dúvida. E não era pouca coisa o que o Magal rebolava. Portanto, segundo os critérios rigorosos do tempo, que eu e o primo seguíamos de modo muito escrupuloso, nem hômi o Sidney Magal era. Como seria hômi, hômi, mais hômi do que eu e o primo? Mas a prima, já naquele tempo, sabia muito mais do que nós. Ela tinha 14 ou 15 anos; Ubirani, seus 16; eu, com 11, era o mais novo e o mais bobo dos três.
Naquele verão curioso alguém apareceu com um compacto do Elvis Presley cantando Kiss me quick. Parecia uma novidade estrondosa, mas era uma gravação (eu soube depois) de 1964, mais velha do que quase todos os primos e primas que lá estavam – e eram muitos. O compacto levava o selo da RCA, que o amigo, mesmo se for muito novo, há de conhecer: aquele do cachorrinho ouvindo o gramofone. Sei, porque descobri muitos anos depois, que o lado B tinha Suspicion, mas só se ouvia a Kiss me quick. Nem sei de quem era a vitrola. Eu sabia inglês suficiente para entender kiss me, me beija; mas não sabia o que era quick, e deduzi que fosse o nome da moça (ou do rapaz, já que ele era bicha) que ele queria que o beijasse. Passei cerca de dois anos, pois, achando que quick era apelido de mulher americana. Bem, talvez fosse, de uma ou outra.
Elvis e Sidney se vestiam de maneira estranha, tinham trejeitos estranhos, cabelos esquisitos, roupas cheias de brilhos condenáveis e, Deus nos livres, até usavam sapatos de saltos altos. Eram bichas. Eu não estava ciente de que Elvis já tinha morrido no ano anterior – na verdade, devo tê-lo conhecido nesse verão, com essa música que tem, entre seus instrumentos, a irritante clave de rumba. Depois descobri sua morte, e, bem depois ainda, o disco das suas gravações fabulosas para a Sun records. Só aí eu comecei a levá-lo a sério.
As mulheres eram loucas por ele e pelo Magal, vide a afirmação peremptória da minha prima, aquilo é que era hômi. Também nos faltavam palavras para explicar o que víamos de errado com eles. “Brega”, palavra que usamos hoje para falar de coisa cafona, de mau-gosto, ainda não estava em voga em 1978. Também não dizíamos boko-moko: dizer boko-moko era ser boko-moko. Mas sabíamos que aquilo tudo era mal-ajambrado, era exagerado e feio, e resumíamos essa impressão, por falta de vocabulário, também no termo bicha.
Não que eu soubesse o que é que os bichas faziam. Um dia me explicaram:
— Eles dão a bunda.
— E ficam sem?
Eu era bobo o bastante para imaginar alguém que, tendo dado a sua, andasse por aí sem bunda. Mas a velocidade da infância supera as lerdezas da ingenuidade; logo aprendi que os bichas queriam ser meninas, e que davam o que as meninas davam também – e que as meninas tinham mais e melhores coisas a oferecer.
E, afinal de contas, o Elvis e o Magal mantinham as suas bundas. Que requebravam. Aprende-se também por observação e contradição.
Neste último domingo, o bairro da Moóca comemorou seus alegados 468 anos. Quer dizer: o bairro se diz apenas dois anos mais novo do que o Páteo do Collégio. Aceito: é estratégia de vida, a propósito, aceitar as coisas pelo valor de face. Comemorou-se a efeméride com uma corrida de carrinhos de rolimã (que é uma dessas tradições recentes, como as do samba e das torcidas organizadas) e com shows, entre os quais um do Paulo Miklos (não sei se ele fez sua imitação de Nair Belo disfarçada de Adoniran Barbosa) e outro do Sidney Magal. Que tem 74 anos – ou seja, é mais novo do que vários dos meus primos e primas – e está em melhor forma do que eu. E não é, claro, bicha. Como o Elvis também não era.
Vi o Magal e pensei: bah, a gente aprende com o tempo, e envelhecer não é tão ruim assim.
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Sim, as tradições do samba e das torcidas organizadas são tão recentes que não chegam mesmo a ser tradições. Acho que foi Eric Hobsbawm, que era mais marxista do que aquela mocinha de cabelos roxos sentada à sua frente no vagão lendo um livro da Chimamanda, quem falou em “invenção da tradição”: a antiguidade inventada, a pátina aplicada.
Daí que você pode rir tranquilamente da faixa de uma torcida organizada que fale em “Sangue, suor e tradição” – a menos que os torcedores chamem de tradicionais os atos de suar e de sangrar. Aí, nesse caso, é melhor não rir, pelo menos não na frente deles.
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Antes de ir, dê uma espiadinha na minha coluna nova na “Crusoé”, sim?
Depois disso, aí sim, até mais ler.
Ri demais com o negócio da bunda! Eu acrescentaria Michael Jackson aos rol dos bregas/bichas
Mais um episódio de hispanofobia, dom Orlando. Vou acionar a representação consular do Reino em São Paulo. Mas se murciélago soa assustador e tenebroso, o equivalente italiano, pipistrello, deixa o bicho, poveraccio, ridículo.
Existe um Parque Savoy City em São Paulo. Não é um hotel e muito me admira que more gente lá, mas existe. Era perto da casa materna. Os saboiardos (me recuso a usar saboiano) originais, se souberem do topônimo, chorarão de desgosto.