171. Corisco; vultos; juízo; letra; carneiro; romance; domingo; Pasárgada; conformismo; Old Parr; inteligência; cachaça
171: o artigo certo pros dias de hoje.
Novo Teatro Corisco.
— O que diz a lei?
— Diz o que eu disser.
Risos.
Pano lento, sensual.
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Talvez o Ministro Sasha, quando se olhe no espelho, veja um grande vulto, um figurão histórico: um Espártaco, um Bolívar, quem sabe até um Moisés. Ou um herói lendário: Gilgamesh, Cuchulainn, Lancelot, Manco Cápac. Nunca saberemos, pois Deus é grande e nos poupa de ver o mundo e a nós mesmos como ele o vê e se vê.
Imagino que, ao proibir o acesso dos brasileiros ao X/Twitter, ele acredite ter fechado as portas de um país para um bilionário malvado, e não, na verdade, ter fechado uma das portas do mundo para um país.
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O grande provérbio de quem vive em regimes como o nosso é este: manda quem pode, obedece quem tem juízo.
No nosso caso, porém, até quem não tem juízo anda obedecendo também.
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Por falar em falta de juízo: seria engraçado se o Sasha perdesse o dele de vez e somasse o banimento de umas letras à criação de outras.
— De hoje em diante vocês são obrigados a botar esta letra nova aqui em todas as palavras que escreverem.
A multa por não usar a letra nova seria de 50 mil por palavra.
Ninguém mais conseguiria ler uma notícia.
Pensando bem…
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Lendo Olhai os lírios do campo, do Érico Veríssimo, descobri que a palavra “carneiro” também tem a acepção de “gaveta ou urna, nos cemitérios, onde se enterram cadáveres”. Isto segundo o Aurélio, dando por étimo o latim vulgar carnariu, que designava o lugar de guarda ou estoque de carne. Nessa acepção, -eiro é sufixo, igual e com a mesma função do de celeiro e pardieiro.
Nesse mesmo livro, Érico conjugou ainda o verbo “lucilar”, cujo sentido é fácil de apreender: luzir, brilhar, rebrilhar.
Nosso idioma não é a língua mendiga do dia a dia não, amigo. Ela sabe se vestir e se portar bem. A gente é que faz dela uma gata borralheira.
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Falando de latim vulgar: “romance” é uma palavra que, de origem, designava os diversos latins vulgares falados ao longo do Império Romano – esse no qual você e eu, bons meninos, pensamos todos os dias. O termo vem de romanice loqui ou falar romano, contraposto ao latine loqui ou falar latino. Os idiomas que iam se formando a partir dos diversos romanici eram chamados de romances ou romanches ou ainda romanços. Foi assim com todas as línguas ditas neolatinas.
Esta nossa última flor é, pois, além de inculta e bela, romântica. E românica.
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Domingo, seis da manhã.
Já em pé: os velhos.
Ainda em pé: os jovens.
Dormindo: as crianças e a turma na faixa 30-55.
Eu, é claro, já estava em pé. Sou jovem.
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Um dia depois do X/Twitter ter sido bloqueado no Brasil e o Ministro Sasha ter arbitrado multa de 50 mil reais por dia a quem acessar a rede via VPN ou por qualquer outro – na bela terminologia ministerial – subterfúgio, portais brasileiros de notícias, como o UOL, deram que políticos brasileiros de extrema-direita peitaram o ministrão e estavam postando naquela rede. E até copiaram os textos desafiadores.
Ora, se o ministrão proibiu o acesso, como os portais de notícias sabiam dessas postagens? Simples, amigo: foram avisados por seus correspondentes no estrangeiro. Você sabe: aqueles (e aquelas) jornalistas que foram pra Pasárgada e entram na rede que querem com o VPN que escolherem.
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Tem a piada do cara que defendia o comunismo dizendo “Bom, juntando o pouco que eu tenho com o pouco que vão me dar...”
Já agora (agora?) há gente no regime atual pensando – não dizendo: pensando – “Bom, tirando o pouco que eu ainda posso fazer do menos que eu ainda vou poder…”
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Tendo provado e gostado do uísque Grand Old Parr, fui um dia à internet aprender a respeito desse tal velho Parr. Velho ele era, por nome Thomas, apelido Tom, e morreu com 152 anos de idade (segundo a lenda). No ano de sua morte, 1635, o rei vigente na Inglaterra, Carlos I, chegou pro Parr e perguntou que coisa, numa vida tão longa, ele tinha feito mais do que os demais homens. Parr respondeu: penitência. Ultimamente ele andava penitente por ter estado de caso – aos 152 anos – com uma certa senhora de nome Catherine Milton.
O ar de antigamente era melhor para a saúde.
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Quando moleque, li em Monteiro Lobato a frase seguinte a respeito da inteligência, a qual nunca mais me saiu da cabeça: a inteligência verdadeira entende as coisas. Usei-a em proveito da minha preguiça de decorar as matérias da escola e me tornei aluno atento e, na medida da minha capacidade, entendedor. Isso fez de mim um aluno nota 7,5 a 8,5 – raramente um aluno nota 9, muito raramente um nota 10. A frase de Lobato talvez seja verdadeira; bem, admitamos, é verdadeira, mas não se aplicava a mim: se eu fosse tão inteligente quanto me achava, teria entendido os benefícios da decoreba e a aplicado mais na vida estudantil.
Mas eu me tornei aluno atento, como disse, e a atenção também tem benefícios. Um deles: estudar pouco ou nada para as provas. Outro: conservar na cabeça boa parte do que aprendia. Isso me bastou nos anos do primário e na quinta-série. Na sexta, com a chegada da álgebra, da física e da química, mais a parte chata da geografia, tudo ficou mais difícil; ainda assim eu, pouco inteligente, não mudei de método, e passei três anos no fio da navalha, ficando os três anos em recuperação em todas essas matérias.
Eu devia ter começado o colegial em 1982, mas tirei o ano para trabalhar e para fazer um cursinho preparatório para o exame da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, a EsPCEx, sita então, como ainda agora, em Campinas, cujo curso equivalia ao do colegial e, se aproveitado, dava depois vaga na Academia Militar das Agulhas Negras. Não passei nas provas, assim o início de 1983 me viu de volta à escola, para começar o colegial normal, dos civis, à noite. Ora, meu pai morreu dia 20 de junho daquele ano, e com isso meu ano letivo ficou aniquilado. Sumi da escola, abandonei-a. Quando voltei, em 1984, trazia já uma incapacidade que conservo até hoje: a de não conseguir prestar atenção em gente que fica falando por muito tempo. Pois é: perdi a atenção que antes tanto me ajudou. Passei a não suportar discurso, arenga, falação. Não vou a comícios, fujo de debates, tenho horror a escarcéu interminável de pastor, e mesmo nas missas as homilias compridas logo perdem a minha atenção. Como assistir aulas assim?
Abandonei o curso em 1984, depois de novo em 1985, mais uma vez em 1986, outra vez em 1987, e em 1988 nem sequer me matriculei. No final daquele ano fiquei sabendo de uma coisa muito boa: os exames supletivos. Eram provas das matérias básicas do colegial, nove no total. Bastava uma nota cinco em cada uma e voilà: eu teria um diploma de segundo grau.
Me inscrevi para as provas de 1989. Achei que passaria em português e inglês, e pegaria uma noção da dificuldade das outras provas. Bem, passei em oito, incluindo, espantosamente, química e física, e fiquei por um ponto em matemática: tirei 4. Ou seja: as provas eram moleza.
Naquele mesmo 1989, uns amigos alugaram uma loja nas Grandes Galerias, que atravessam da Rua 24 de Maio para o Largo do Payçandú, e ali abriram uma gibiteria. Sim, com esse nome cem por cento paulistano mesmo. Naquele finzinho dos anos 80, comecinho dos 90, havia no Brasil um boom de gibis; os tais amigos, fãs da coisa, resolveram aproveitar. Me tornei freguês e frequentador do lugar, e ali conheci o traficante deles, um sujeito de apelido Caju.
Pois bem: em 1990, na véspera da prova de matemática – era uma sexta-feira –, ganhei “uma presença” do Caju. “Uma presença” ou “uma présa” é uma porção grátis de droga. É como quando você ganha uma fatia de melancia na feira: experimenta, freguês, veja como é bom. A minha “présa” era um embrulhinho minúsculo de papel alumínio. Um grama de cocaína.
Eu não sabia usar nem lidar com aquilo, então procurei um amigo que sabia: o falecido Zé Roberto que morava perto dali, no Bixiga. Ele ficou muito feliz, menos com a minha presença do que com a presença que levei. Perguntou se eu tinha uma nota nova no bolso; tirei uma de seiscentos trilhões de Parangolés Novos (acho que era esse o nome do dinheiro). Ele pegou uma gilete e um espelho, e foi, todo jeitoso, batendo as carreiras. Eu estava espantado com a habilidade dele de fazer a coisa.
— Onde você aprendeu a fazer isso?
— Com a Maria Aparecida.
Era a irmã mais velha dele, tal era o naipe da família. Ele pegou a nota trilionária e me explicou o procedimento de inalação. Havia seis carreiras, três para cada um de nós.
— Não fica falando por cima, qualquer ventinho espalha tudo.
Não falei. Inalei. Durante a meia hora seguinte, o mundo foi outro, reluzente, esplendoroso. Eu me senti brilhante, poderoso, dionisíaco. Falava pelos cotovelos e pelas jarreteiras; bebia e não me embriagava; pensava as coisas mais tremendas e tinha certeza de ser capaz de tudo. Eu me sentia como o roqueiro de Quase famosos, um golden God.
Não dormi naquela noite: passei-a de olhos arregalados, fungando, transido na cama, meio alucinado. Na manhã seguinte, assoei o nariz: o papel higiênico ficou cheio de crostas secas de sangue. Percebi que tinha chegado à beira do abismo, e ele não só me olhou de volta como piscou o olho fundo, escuro, negro, e me chamou com voz doce: “vem, pula, você viu como aqui é bom”. Volto agora à frase do Lobato, pois tive mais atenção e inteligência do que fibra: torci o braço ao desejo de estender aquela meia hora para a vida toda, dei meia volta e nunca mais cheguei perto nem do Caju, nem de suas “presenças”, e nem portanto do abismo.
Mais tarde naquele dia fiz a prova. Passei com uma nota 6 e recebi um diploma de segundo grau perfeitamente válido: foi aceito no vestibular e no concurso público que prestei, ambos doze anos depois.
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Ainda um trechinho de Olhai os lírios do campo:
Eugênio observara que os ébrios, quando começam a fazer discursos, não sabem ou não querem acabar: palavra puxa palavra e eles se deixam ir num círculo vicioso de repetições, de redundâncias, mas continuam falando, e as suas palavras como que lhes aumentam a embriaguez, prolongando ainda mais o discurso.
Às vezes temo que esta newsletter não seja mais do que isso: um discurso redundante de bêbado. Com sorte, não será.
Nos vemos semana que vem, Deo calvusque volentes.
Como sempre, excelente. Mas o trecho da inteligência e da grama de pó tem a excelência das grandes crônicas que permanecem. Maravilha, Orlando.
Sua newsletter está longe de ser um discurso de cachaceiros. É ótima! Como escreveu o Sérgio de Souza: 'Como sempre, excelente '. Muito obrigado.