Ao contrário de outros vícios, como o do jogo, o da bebida, o das drogas, o vício da leitura não deixa marcas visíveis em suas vítimas (a possível exceção são os óculos). Você olha uma senhora cinquentona, gordinha, meio malvestida, com o ar sonolento de quem teve de pegar condução às cinco da manhã numa periferia distante, e nem desconfia de que ela tenha lido todos os russos importantes, ou toda a poesia beat, ou seja muito versada na geração de 45. Ela pode ser tudo isto, mas você só verá a senhorinha com ar de nascida para o anonimato proletário.
Imagine, amigo, quantos mistérios passam pela rua ao seu lado.
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A feira de domingo perto de casa tem barraca vendendo pamonha. Não ficam no isopor, não são resfriadas. Imagina nessa lata de 34 Celsius: se forem legítimas, isto é, sem fubá, já estarão azedas às dez da manhã. Não comprei. Mas o diabo é que decerto têm fubá – outra razão para não comprar.
Pamonha é igual molho de tomate, é negócio sério.
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Há alguns anos, quando minha filha estava na graduação de fonoaudiologia, fiz um exame fonoaudiológico (não sei se o nome é esse mesmo) com ela e outras alunas da turma dela. A menina tinha cismado que eu não estava mais ouvindo direito, e, na condição de cobaia das graduandas, o exame sairia de graça, e de forma bem mais acurada, porque era afinal também uma aula para elas. Topei.
Entrei numa cabine, botei fones de ouvido, e tudo o que eu precisava fazer era erguer a mão direita ou esquerda conforme aparecesse, no lado respectivo dos fones, algum som. As condições não eram ideais: o isolamento acústico da cabine era precário, e cada resposta minha era objeto e causa de debates, alguns meio acalorados. Mas o resultado saiu na hora, e foi bom: minha audição, naquele então, era excelente, quase de maestro. Já não ia tão bem era a minha capacidade de processar os sons: eu ouvia, mas nem sempre compreendia ou identificava corretamente o que ouvia. Minha filha estava meio confusa.
— Eu achava que você estava ficando surdo, porque, lá em casa...
Ela achou que era surdez o mero homem em modo avião.
O problema do processamento, no entanto, é real. Ele faz de mim mau músico, porque me traz dificuldades com a harmonia, pois a mistura de sons me confunde e os distingo mal, e faz de mim mau ouvinte de inglês, que entendo muito melhor escrito do que falado (na verdade, isso me acontece até com o português).
Ultimamente, porém, venho padecendo da chamada fadiga auditiva. Não perco em audição, não, mas ela está cansada. Tenho fugido de volume alto, e restringido até o hard rock de que sempre gostei tanto: ouço em volume baixo, o que tira um bocado do prazer da pauleira. Hoje anda pelos meus fones de ouvido muita música acústica: violão, piano, pouca bateria, ou bateria macia. Cool jazz. E música new age não muito bobalhona.
E o modo avião também fica cada vez mais frequente.
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Sou do tempo em que os pets não tinham tutores nem pais, e sim donos. E não se chamavam pets, mas sim animais de estimação. O nome é mais comprido, e judia um pouco dos pobres de hoje (mas não judiava dos de antigamente), porém é também mais acurado: animais pelos quais se tem estima.
Os tempos, entretanto, rolam como os pneus que voam dos carros acidentados, e no seu rolar trouxeram primeiro a importação pet, depois a troca do dono pelo tutor (como se o bicho fosse um humano inimputável), e depois a troca do tutor por pai (como se gente parisse cães e gatos e porquinhos da Índia). Tudo ruim, mas a gente, é verdade, também se acostuma a tudo. E o amor inegável ao bicho de estimação torna toleráveis, em parte ao menos, essas exagerações.
Bem: noutro dia, espiando no tutubas um show de Art Pepper (saxofonista brilhante, homem de vida meio bandida, dono de um disco que o amigo, se gostar de jazz, precisa ouvir: Art Pepper meets the rhythm section), a hoje inevitável propaganda indesejada interrompeu a apresentação para falar de uma empresa muito bacana, muito humana, tão humana que tem entre seus clientes os “pais de plantas”. Não jardineiros, não floristas: pais de plantas. Como se seres humanos gerassem e parissem samambaias, orquídeas, baobás.
Por outro lado, a verdade manda reconhecer que o mundo tem cada vez mais gente difícil de distinguir de samambaias.
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Quando eu tinha três anos de idade, fui mordido por um cachorro de rua. Era 1970, e ainda existiam cachorros loucos, englishmen e carrocinhas, todos na rua ao meio-dia. O cachorro fugiu. Por causa disso, o meu pediatra, Dr. Quintino, receitou injeções anti-rábicas: dezoito doses, mais três de reforço. Vinte e uma injeções. Na barriga.
Obviamente não me lembro da mordida, nem do quão machucado fiquei, e nem das injeções. Sei é que as agulhadas deviam doer, porque, segundo minha mãe me contou, levantavam bolhas, e eu fazia na farmácia um escarcéu digno de pregação de pastor neopentecostal, talvez até com o mesmo espalhafato, as mesmas sezões. Desse sofrimento esquecido me veio o medo meio irracional de cachorros, o qual perdurou por toda a minha infância e começo da adolescência. Por todo esse tempo eu, tal qual os bandidos com os camburões, não podia ver cachorro sem entrar em pânico e fugir, sair correndo. Os animais, sentindo meu medo, me perseguiam, me hostilizavam, quase tripudiavam de mim.
Então, de um dia pro outro, o medo desapareceu. Foi assim mesmo: dormi medroso, acordei destemido. Talvez o sono me tenha mudado – sei de gente que dormiu inocente e acordou pervertida, e vice-versa; ou de gente que se deitou glabra e acordou com bigode; gente que dormiu cética e acordou crente, e vice-versa; gente que dormiu apaixonada e acordou seca, e vice-versa; gente que dormiu e não acordou mais; e assim por diante.
Depois dessa manhã perdida, passei a ter amor pelos cachorros, e eles, percebendo o homem novo, me têm retribuído. Hoje, raro é o cão que antipatiza comigo (se não for dessas raças pequenas que antipatizam até com os próprios donos): pode não ficar amigão, mas também não me mostra os dentes.
Ao contrário, claro, de tanta gente.
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Quando as pessoas falam “há muito ódio hoje em dia” estão falando – me parece – menos de ódio (que é um negócio terrível e existe, sim, mas é mais raro do que se pensa) do que de uma certa pressa de retrucar, uma certa urgência de revidar.
Escrevo isso como se não fosse muito afoito e nunca tivesse tido pressa de retrucar ou revidar. Sou, tive, tenho. Mas sei que a falta de serenidade não é ódio, e que às vezes é preciso deixar passar cinco segundos, quando não cinco meses ou cinco anos, antes de voltar a um assunto ou a uma opinião que fez o sangue ferver.
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Em matéria de política eu tenho lado: direita. Dentro desse lado, oscilo entre liberalismo e conservadorismo, conforme o caso, o dia, às vezes até o humor. Mas estou sempre do lado direito do espectro, e assim destro é também o meu parco liberalismo. Devo inclusive fazer parte da tal “nova direita”, apesar de velho, porque comecei a abandonar a centro-esquerda já com mais de 35 anos – ou seja, lá pelo começo dos anos 2000.
Há entre as pessoas ultimamente um certo bode da direita. Uma mania de achá-la brega, feia, burrona. Não posso compartilhar dessa mania, porque ela implicaria em eu me achar brega, feio, burrão, e minha humildade não tem corpo para tudo isso, mesmo eu reconhecendo que não há nada humano que não tenha um lado assim meio feio, meio brega, meio burrão. E outra: tem direitista sofisticado, bonito, inteligente. Tem, sim. Basta procurar.
Em todo caso, é lícito a gente sair do baile se não gostar de quem está na pista. Mas a política, e, mais do que ela, a vida, não é um baile, e nos espreme no bonde com quem já estiver por lá, sem deixar a gente escolher muito. E, de mais a mais, importa mais o destino do bonde do que a companhia com que a ele se vai. Se vai pra direita, vamos com os feios, os bregas, os burrões.
Eu, pelo menos, vou. E aviso à praça: sou isso que está aí.
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Eu gosto de gente opiniática, e gosto tanto mais quanto mais excêntricas sejam as opiniões. Passar um jantar inteiro ouvindo um camarada defender que Odair José seja superior, poeticamente falando, ao Caetano Veloso é um descanso para a minha alma, especialmente se a argumentação for, ao mesmo tempo, peremptória e disparatada:
— Quem prefere o Caetano tem lombrigas.
— Eu prefiro Odair José porque não sou vegano como vocês.
— Você gosta do Caetano porque tem shoyu nas veias.
Eu vou me embebedando e concordando cada vez mais, e sonhando escrever um ensaio que justifique tudo isso. Mas depois esqueço.
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Ryonosuke Akutagawa, escritor japonês, escreveu um conto, Yabu no naka (Dentro do bosque), muito imitado depois, no qual a mesma história era contada do ponto de vista de todas as pessoas que tiveram alguma participação nela. Cada pessoa contava, pois, uma história diferente, e cada uma dessas histórias se ligava tenuemente às outras por fatos que se assemelhavam, mas não eram exatamente os mesmos.
Assim no conto, assim conosco: se eu fosse contar o que sei da minha vida, o que pensei e penso, o que senti e o que acho que me aconteceu, surpreenderia até mesmo aqueles que jamais saíram de perto de mim; seria, em muitas coisas, irreconhecível para eles.
Essa é uma das matérias de que é feita a solidão.
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Antes de ir, amigo, clique e leia – se quiser, claro –, por favor, no link para a minha crônica nova na “Crusoé”.
Depois, se achar fácil em algum sebo, leia o conto do Akutagawa. Está num livro chamado Rashômon e outros contos. E até semana que vem.
Pamonha, fazemos aqui em casa, com a italianada toda.
Adoro meus dois cachorros, não sou mãe, sou dona!
Já havia lido seu artigo na Cruzoé 👏👏
Ótimo texto
Compartilhando...
Como você também me defino "direita",por pura praticidade, a conversa da esquerda não faz sentido pra mim ,daí a eu gostar dos políticos que se auto-intitulam "di direita " já são outros quinhentos. Sou liberal em relação ao que fazem na casa alheia e conservador em relação ao que se pode fazer na minha casa.