173. Políticos; vermes; ranho; V de Vingança; aforismos; AIDS; apocalipse; soul budismo; Nick Drake
Navegando à toa na internet, me deu na telha ir ao Google, e lá achei uma notícia, já meio antiga, segundo a qual “Zé Curuca apóia Binho Galinha para deputado”. Não sei quem são ou foram Zé Curuca e Binho Galinha, nem em que estado ou cidade se deu tal apoio, nem qual o resultado; só dou a manchete.
Estar no Google, sabemos, é como estar de namorico: uma coisa leva a outra, como se diz, e acabei por descobrir também que mais de um Zé Galinha andou disputando deputagens e vereanças pela terra de Santa Cruz. De novo: não sei bem onde, nem quantos venceram, nem quais predicados têm ou quais avanços vêm promovendo. Só trombeteio a nova.
Em todo caso, assim é o Brasil, amigo: não tente inventar nada. Só procure. Você acha.
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Uma vez, num uber, o motorista me “explicou” a relação entre diabetes e vermes. “Esclareceu” ainda que os tais vermes não aparecem nos exames porque são microscópicos. E meio temperamentais. Fiquei impressionado e saí do carro pensando: “puxa, a gente tem que saber tanto quanto um barbeiro para ser uber”.
Mas a verdade é que o uber, por ser profissão nova, ainda é irregular nessas coisas de “eu sei tudo”. Como a juventude o usa muito mais do que usa táxis, e como a juventude de hoje é muito ranheta, muito fácil de alarmar, magoar e ofender, os ubers (eu quase ia escrevendo os úberes; calma, juventude), para não desagradá-la demais, muitas vezes ficam quietos. Talvez sejam esses os que manjam mesmo das coisas. Para lembrar um ditado esquecido: a palavra é de prata, o silêncio é de ouro.
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Segunda-feira, 16 de setembro: volta a chover em São Paulo. Agora, quando assôo o nariz, sai a porcariada normal, tradicional, verde-acinzentada, e não a massa formada por crostas pisadas de sangue seco típica do clima desértico anterior.
Não é coisa bonita de se contar, admito, mas o alívio, ah, esse é tremendo.
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Revi por esses dias o filme V de Vingança e lembrei que Stephen Fry, bom ator, cara engraçado, faz nele um papel que não existe no gibi: o de um apresentador de TV gay (como gay é o próprio Fry) que mantém bem escondido no porão de sua casa um exemplar do Alcorão. A jovem careca Evey, ajudante do V, vê o livro e leva um susto. O doce personagem de Fry explica a ela que mantém o livro porque acha “a poesia muito bonita”. Somos levados a supor que ele leia em árabe (porque em árabe o livro está, segundo mostra um close), o que, no contexto da história, é de embasbacar: ele vive numa sociedade distópica fascista, conservadora, homofóbica, racista e prenhe de todos os horrores do cristianismo exacerbado, e que só pode ter professores de árabe se eles forem muito clandestinos. Mas o filme vai em frente como se nada disso contasse e, lá pelas tantas, o personagem faz uma cagada que o expõe a uma retaliação muito bruta do, hum, do sistema; e, saberemos depois, o castigo que teria sido uma mera surra seguida de cadeia se torna pena de morte por causa daquele Alcorão.
Ora bem. Digamos que o senso estético do personagem de Fry lhe permita admirar as qualidades de uma poesia que expressa uma doutrina cuja essência prega o seu extermínio mas, paradoxalmente, esse mesmo senso estético, e talvez o moral junto com ele, façam com que abomine a sociedade em que vive – cuja essência prega o seu extermínio. Curioso. O resultado é que o personagem de Fry é exterminado por dar guarida a um livro cujos preceitos, se postos em prática no lugar daqueles sob os quais vive, também resultariam no seu extermínio.
É o que eu chamo de um beco sem saída.
Evidentemente, uma personagem pode sofrer desse tipo de esquizofrenia intelectual (nisso o filme reflete bem a sociedade moderna, aliás). No filme, essa esquizofrenia poderia ser alegórica e funcionar como um breve em favor do ateísmo (qualquer religião vai te matar) e um alerta para os gays (todas as religiões querem exterminar os gays). Mas eu acho que os diretores, os irmãos Wachowski (péra, parece que agora são irmãs – fluíram), quiseram mesmo foi deixar clara sua crença, cada vez mais popular aqui no próprio Ocidente, de que o cristianismo é um dos lados do fascismo, e pois é uma religião de bestas exterminadoras, e que o Islã, coitadinho, se junta aos gays entre seus milhões de vítimas.
Bem dizia Paulo Francis: cineastas são idiotas.
Aliás, V de Vingança, o gibi, não é melhor que o filme. A história quer nos fazer acreditar que um cidadão física e mentalmente deformado, vestido com uma capa e uma máscara de Guy Fawkes, seja capaz de derrubar um governo, mais seu segundo e terceiro escalões, mais suas instituições, e lançar um país inteiro na anarquia, apenas com a ajuda de uma menina careca. Esse argumento absurdo se apóia nos belos desenhos de David Lloyd (melhores no original em preto e branco que na versão colorizada que saiu por aqui há uns trinta anos) e no joguinho de “adivinhe a citação” do roteirista Alan Moore – sujeito muito superestimado.
Do sr. Moore é melhor ficar com O monstro do pântano, que também tem sua cota de idiotices mas pelo menos é história de monstro, não é fábula política adolescente.
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Aforismos:
“Tudo de camarões sólidos, amarelos, cósmicos; inspiro as ventilações surdas, as varizes épicas, a toalha rente, a empada covarde. Mexericas na pacuera.” Surrealismo é fácil; difícil é cortar as unhas dos pés.
Eu sou um ítalo-luso-franco-brasileiro de ascendência semítico-germano-tupi. Sou o garoto cadinho de raças que o Roberto (qual Roberto?) falou.
Eu achava que trolagem tinha a ver com sexo e falta de banho.
Imagine filhos de hippies, gente com nome tipo Sri Vashti Hortelã, sendo assassinos seriais. Ia ser engraçado.
Primeiro o ethos, depois o pathos, agora os chathos.
Eu tenho um personal magro morando dentro do meu corpo. Pensando bem, mais de um.
Sempre que vejo propaganda com mulher olhando laptop e sorrindo com ar atento, fico achando que ela está no Youtube vendo um anão apanhar de chicote.
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— Feliz dia da luta contra a AIDS.
— Eu não luto contra a AIDS. Eu a evito, mudo de calçada. Ou fujo dela, saio correndo. Partir pra briga, jamais.
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O Apocalipse vai ser muito bem organizado. O cronograma, aliás, foi adiantado.
Dia desses eu estava esperando um farol fechar para atravessar a rua. Ao meu lado parou um homem velho e mal vestido. Sotaque nordestino e inesperados olhos azuis.
— Daqui cinco ano – disse ele, olhando para mim – vai discê um monte de gente lá de cima. Deus já avisô.
— Pois que sejam bem-vindos – respondi, sincero, atravessando a rua, farol já fechado.
— Deus já avisô! – gritou ele. Provavelmente querendo que sejam mal vindos.
Depois pensei: ah, ele deve estar falando de anjos. Eu tinha pensado em ETs.
De vez em quando me acontece de alguém olhar para mim e, nesse relance, entender meus erros e insuficiências, e vir caridosamente me dar avisos assim: para que eu me emende, para que eu tome tenência. Um amigo meu, já falecido, adepto das coisas do espiritismo, me avisou certa vez que gente que lê demais e vive de menos, quando chega ao além, se vê tristemente confinada em bibliotecas. O amigo achava que esse seria ou será o destino de minh’alma, porque leio demais; o destino da alma dele, obviamente, seria outro, melhor.
É quase sempre assim. Eu, claro, não me emendo. Continuo lendo muito e pensando que uma biblioteca do além bem pode ser minha ideia de paraíso.
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Uma vez – foi em 2008 – fui apadrinhar o casamento de um amigo. Nessa qualidade de padrinho, precisava vestir um fraque, um tuxedo, um smoking enfim. Como essas roupas custam caro e só são usadas duas ou três vezes na vida, a solução era alugar um, o que fiz com a ajuda e intervenção do noivo (obrigado, aí pelas razões matrimoniais, a vestir um também). Fui à loja de aluguel, peguei o smoking, o vesti e saí pro lugar onde a cerimônia – budista – ia ter lugar: um templo no charmoso bairro da Aclimação.
Ora, eu não tenho nem nunca tive carro, e na verdade não sou nem sequer habilitado; o táxi de Itaquera para a Aclimação saía muito caro, e em 2008 ainda não havia Uber. O jeito foi ir de condução: metido no smoking, peguei a lotação até o metrô de Artur Alvim, e dali o metrô até a Sé, onde baldeei para a linha azul – as duas linhas lotadas no comecinho da noite de um sábado.
Foi uma das viagens mais divertidas da minha vida. Todo o mundo me olhava. Algumas pessoas olhavam em torno, talvez tentando surpreender alguma câmera, achando que podia ser uma pegadinha de TV. Outras erguiam as sobrancelhas, outras ainda sorriam para mim, me cumprimentavam, erguiam os polegares, diziam “Tu tá bacana, hein, irmão?”, ou “Aí sim!”, e até “Casamento ou enterro?”.
Dentro do templo, a trilha sonora da cerimônia tinha Tim Maia, Hyldon e Stevie Wonder, pelo que comecei a chamar a coisa de soul budismo, melhor, muito melhor do que o zen. A festa depois continuou à base de soul; suei no smoking e, felizmente, ganhei carona para casa.
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Alguém – provavelmente um jornalista adepto das frases de efeito – disse do cantor e compositor inglês Nick Drake o que Churchill disse certa vez da Rússia comunista: era uma charada embrulhada em mistério dentro de um enigma. Não era para tanto: Drake era um introspectivo que foi se enrolando igual a um tatuzinho. Na sua carreira muito curta, Drake lançou três discos que, juntos, venderam menos de quatro mil exemplares até 1979. Fumava muita maconha, talvez tenha tomado heroína; não dava entrevistas; não ia às rádios. Nas poucas vezes em que se apresentou ao vivo, em clubes dedicados à música folk, não se deu bem: não falava quase nada com a plateia, que não gostava nem dele, nem das performances ou das canções. Logo parou de se apresentar.
Era ansioso, depressivo e talvez esquizofrênico, uma espécie de Syd Barrett que deu ainda menos certo do que o Syd Barrett. Em 1972, desistiu da música e foi morar com os pais. Não tinha um tostão. Não falava muito. Ia à casa dos amigos, comia, bebia, ouvia música e dormia, quase sem conversar; depois, se mandava. Dizem que desistiu do mundo, ou era desses que já nascem fora dele e é só por acaso que o habitam. Em 1974, com 26 anos, tomou – acidentalmente ou de propósito, nunca se saberá – uma dose excessiva de antidepressivo e morreu.
Sua música é pouca e muito bonita. Gostava de usar afinações diferentes no seu violão, às vezes uma afinação diferente para cada canção. Os discos: Five Leaves Left, de 69; Bryter Layter, de 71; Pink Moon, de 72. Este último, só voz e violão, com um pianinho aqui e acolá, é o meu preferido, triste e melancólico que só.
Quando faz frio, dá prazer de se ouvir. Ouça-o, amigo, enquanto esperamos que venha a semana que vem pro nosso reencontro.
Embora não importe, registro que o conluio do Curuca (vereador) com o Galinha deu-se bem aqui de onde leio, Feira de Santana (BA). Revestiu-se depois de gravidade porque Galinha, eleito deputado estadual, foi alvo de mega operação que pôs mulher e filho na cadeia. O próprio, acusado de líder de milícia e bicheiro (e crimes correlatos) , escapou, como deputado imune. Seus colegas de Assembleia fogem do assunto e o Galinha segue a legislar.
Sua análise sobre V de Vingança me fez lembrar o porquê d'eu passar longe das histórias em quadrinhos "contemporâneas"(e seus derivados cinematográficos),isso desde que deixaram de ser entretenimento popular pra se tornarem munição pra conversa de nerd(progressista) pedante.