132. Deputados; plebiscito; espelhos; sotaque perdido; influência; Dica; batuque; funeral; Botafogo; bancas de jornal; uma entrevista; o tempo
A infância é superestimada.
Não sei você, amigo, mas eu, quando vejo deputados saindo no braço uns com os outros, me sinto meio recompensado.
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Fiz um plebiscito aqui em casa, e estou autorizado a anexar a ilha de Capri.
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Acho que o medo que os antigos tinham dos espelhos se devia à pouca luz e ao muito silêncio. Hoje a claridade e o ruído são tantos que os espelhos são quase tediosos.
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Furtebó. Água verva. Forfe. Borso. Barde. Árco. Tárco. Frecha. Adiscurpa. O Arnesto, cum cujo quá nóis fumo e vortêmo. Ê, muié.
O sotaque da minha São Paulo já era.
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— Por que você está comendo/bebendo/falando/fazendo/cantando/dançando esse negócio aí?
— É que eu vi uma moça cheia de tatuagens gritando muito na internet e ela me influenciou.
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A gente escreve “fica a dica” e eu me lembro da Dica. Era filha da Jovenita, prima da minha mãe, e um ano mais velha do que eu – prima minha, portanto, em sei lá eu que grau. Tinha um defeito de nascença, uma perna atrofiada que a fazia andar num passo meio bamboleado, meio saltado que a maldade humana chamou de “deixa que eu chuto” ou de “caminhão de feira”. Para me arreliar – eu moleque de cinco ou seis anos – diziam que eu ia me casar com ela. Eu chegava a chorar; ela me dava algum medo, como se fosse um grilo ou um louva-a-Deus com forma humana que pudesse me ferir ou me envenenar.
“Dica” era, obviamente, apelido, mas lhe esqueci o nome, se é que cheguei a sabê-lo. Era menina feia e alegre. Quando vinha a Folia de Reis, metia-se num vestido cor-de-rosa com um laço grosso de fita cingindo-lhe a cintura, como se estivesse embrulhada para presente ou se fantasiasse de bombom de marca B, e, de havaianas – o calçado universal daquele lugar e daqueles tempos –, juntava-se aos que esperavam o Bastião. Talvez até dançasse.
(Eu também tinha medo do Bastião. Achava que quem usava aquela máscara era algum louco.)
Não sei que fim levou. Se casou, hoje já será avó. E, espero, avó feliz. Não tenho por que lhe guardar pena ou dizer “pobre Dica”: não terá ficado nem mais feia nem mais zoada do que eu mesmo fiquei feio e zoado.
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“Bater palma para louco dançar” é a expressão que define o brasileiro. Se o amigo duvida, veja o tanto que se batuca nesta terra.
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Em 1970, no dia 16 de junho, morreu em Alfenas, Minas Gerais, minha tia Fia. “Fia” é apelido; curiosamente, não sei qual era o nome dela, Maria de quê (eram todas Marias, minha mãe e suas irmãs: Maria Nazaré, Maria Antônia, Maria Aparecida, Maria Margarida). Eu tinha três anos e não me lembro da cara dela. Lembro que as Marias restantes culpavam o cunhado pela morte: por artes dele ela teria morrido de tristeza. Mas tristeza pelo quê? Ninguém dizia às crianças – talvez nem houvesse o que dizer: as raivas surgem em famílias como a da minha mãe um pouco como o mato que brota nas calçadas – e virei adulto esquecido do assunto.
Lembrei disso porque no dia seguinte, 17 de junho, saiu o féretro dela na mesma Alfenas para o enterro, e isto bem na hora em que jogavam Brasil e Uruguai pela copa. Minha mãe contava que o cortejo ia acompanhado da festa e do foguetório que repercutiam os gols da seleção, e que ela sentia que aquela festa tinha algo de zombaria, de caçoada da dor deles.
Eu estava lá e não lembro de nada, mas imagino essa cena como de filme italiano. Pessoas andando adiante do rabecão, as mulheres em grupinho fingindo rezar o terço e maldizendo o cunhado, talvez um coroinha balançando o incensório, o padre segurando o barrete, cantochão e ladainha. E gente gritando gol, e vai, Jairzinho!, e um rádio tocando o “noventa milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção”.
Bento é o esquecimento.
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Eu sempre tive a maior simpatia pelo Botafogo FR. Há dois culpados por isso: Ivan Lessa e Paulo Mendes Campos. Três, se contarmos o escudo mais bonito do Brasil, com a estrela solitária. Não tenho a menor dúvida de que se tivesse nascido carioca, seria Botafogo. Mas não nasci e não sou Botafogo, sou paulistano e Parmêra.
Agora as redes estão cheias de memes caçoando de torcedores do Botafogo – uns simpáticos, outros malas – em acessos de esbórnia arrogante quando o time estava nas alturas. Ora, eu não rio deles, eu não caçôo deles. Eu sei o que sentiram, e sei o que estão passando: lembro do Parmêra 1977-1992, e depois 2001-2014, lembro especialmente de 2009, e entendo o que é gramar, e a loucura que vem quando parece que o pasto, finalmente, se acabou. Sei o que é, lembro de tudo, e perdôo-lhes tudo. Been there, done that, etc.
E digo mais.
Esse tipo de derrocada, nestes tempos ruins em que se torce por um time pelo que o time ganha e não por aquilo que ele é (ou se torna) dentro de nós, é fatal. Ora, eu me fiz torcedor num tempo em que a dor era indissociável de torcer: sofredor foi, por exemplo, a definição do corintiano, que já foi tão fiel à dor quanto ao time.
É por isso que os torcedores-sofredores olham para o torcedor que nunca caminhou nesse chão calcinado e crivado das ossadas das vacas, mais que magras, mortas, e sentem por ele um pontinha de piedade e outra de desprezo: “esse aí”, comentam entre si, apontando com o beiço o alegrão, o felizardo, “esse aí ainda vai aprender como é que é”. E, se der a sorte de ter esse azar, vai.
Porque essa é a dor que gera o amor desesperado que nunca mais sai de você. Quem se faz torcedor na dor se faz torcedor eterno, imutável, depositum fidei. Hoje, quem é Botafogo é Botafogo pra caralho, é Botafogo sem escapatória, sem remissão, sem alívio, é Botafogo até depois de morrer. É Botafogo sem quimioterapia nem prótese. O mundo ri disso, mas eu não: eu acho bonito. Como disse o cronista: a alma de quem é Botafogo é hoje um salão e um jardim abertos para a noite silenciosa.
Esta newsletter vai ao ar meia hora antes de começar o jogo que talvez dê ao meu Parmêra a taça que lhe escapou. Ô, Botafogo: eu tiro o meu sorriso do caminho para você passar com a sua dor.
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Atendendo à lembrança puxada pelo amigo Diogo Rosas G., conto que havia duas bancas de jornal que amenizaram a vida meio triste da minha infância.
Uma ficava diante da porta do prédio onde morávamos, na Maria Marcolina 656, do outro lado da rua. Era do sêo Antônio e era modesta: vendia basicamente jornal, gibi, uma ou outra das revistas semanais e cigarros sem filtro, das marcas Kent e Continental (que hoje anda por aí com o nome de Chesterfield). Com ele, entre 79 e 80, comprei muitas revistas Placar, onde lia as crônicas do Luís Fernando Veríssimo, e muitos gibis Disney – meus preferidos eram o do Tio Patinhas e os Almanaques Disney. Ele tinha duas fotos em papel cartão do Palmeiras campeão do Robertão de 1967, coloridas – o time de meiões brancos, Djalma Santos com cara de sério, Ferrari de lateral-esquerdo (eu queria que fosse o Geraldo Scotto, mas a vida é dura), Ademir, Tupãzinho. Na cara dura, lhe pedi uma. Ele me deu a mais empoeirada e amassada das duas. Notei, mas não me importei: é o que eu faria, e era sempre o Parmêra do meu ano.
A outra ficava “lá em cima”, na esquina da Maria Marcolina com a Oriente, e pertencia ao sêo Américo. Ele era gordinho e de bigode curto, um pouco como o querido professor Rodrigo Gurgel, e não me cobrava em cruzeiros, mas em merréis. A banca dele era mais variada tanto em artigos de tabacaria – isqueiros de pavio e fluido, fumo de cachimbo, palha para enrolar – quanto editoriais: ele vendia livros. Ali comprei os manuais Disney, que eu adorava, e os livros daquela coleção de clássicos da Abril que tinham, como número 1, o “Dom Quixote” traduzido pelos Viscondes, e como número 2 as “Histórias extraordinárias” do Poe. E com ele também colecionei enciclopédias em fascículos: Geografia Ilustrada, Os Bichos, Conhecer.
Havia também uma banca querida na antiga estação rodoviária, ou antes, havia a seção de gibis da Livraria La Selva, onde meu pai comprou para mim o primeiro de todos os gibis do Asterix (eu pronunciava com o acento à portuguesa, Astériques) que tive: Asterix na Hispânia. E também uma “acidental” revista de mulher pelada (Status) que, sei lá como (não sei? ah, sei), foi parar na sacola certa vez.
Eu era moleque demais pros jornais, que só vieram mais tarde, quando comecei a trabalhar. A única revista adulta que eu lia era a Manchete, em casa das tias Nenê e Guiomar – que as herdavam, depois de lidas, da tia rica, a Norma. Era cheia de fotos, e eu achava chata. O mundo adulto aliás me parecia muito chato: conversas incompreensíveis, bebidas intragáveis, o fedor dos cigarros, ter que trabalhar. Hoje, claro, não troco minha vida de adulto por aquela – mas com isso de trabalhar, bem, ainda não me conformo.
Nem me conformo com a morte lenta das bancas de jornal. Se bem que quando vou a alguma é para comprar palavras cruzadas e drops Hall’s.
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A propósito, não perca o amigo a entrevista do Diogo ao Selmo Cast:
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Santo Agostinho tem uma frase célebre, na qual diz que sabe o que é o tempo, desde que não lhe perguntem – se perguntarem, já não sabe. Ora, o tempo, que não é uma pessoa, não é um ente de consciência, passa irremediavelmente – ou foge irreparavelmente, como, antes de Agostinho, disse Virgílio –, quer a gente saiba o que ele é, quer não. Ninguém acorda mais moço, e os dias que se subtraem ao futuro são dias que não existem: ninguém acumula nada senão ontens. O último dos homens herdará os ontens de todos, mas não terá herdeiro para os seus.
Como não somos, amigo, nem eu nem você os últimos dos homens, deixemos – eu aqui, você aí – nossos ontens pros de amanhã. Amanhã, aliás, é quando voltamos a nos ver. Amanhã ou depois, ou depois ainda: sei lá o que é o tempo.
Top top bloody good an enjoyable!
Que bonito suas lembranças de bancas de jornais. Pra mim, quando criança, eram ambientes exóticos, e por isso, chamavam muita a minha atenção. Meu irmão entrou em uma, no final do ano passado, perguntando se ainda existia a revista PLACAR da COPA e o dono carrancudo quase lhe mandou ir para aquele canto q ele nao vendia mais "essas coisas".