14. Xingar personalidades por diversão - dinheiro inútil - Minas Gerais - o exílio de Saturno - Gore Vidal responde a Rousseau
As crianças da cidade estão para as galinhas do interior como os cães da cidades estão para os carros de qualquer lugar (hoje acordei complicado)
Uma das distrações da minha saudosa mãe nos últimos oito ou dez anos de sua vida era xingar gente que aparecia na televisão. Seus alvos prediletos eram o Pelé e o Fernando Henrique Cardoso. “Olha esse marmota! Odeio esse homem!”, dizia toda vez que a telinha mostrava o sorrisinho meio safadinho do FHC. “Por que não prendem esse safado? Eu, se pudesse, matava!”, bradava ela toda vez que Edson Arantes dava tchauzinho para alguma câmera.
Oh, mas ela odiava mesmo? Não. Matava? Nada. Só se distraía vomitando essas cobrinhas e lagartixas. Eram maus sentimentos de estimação. Havia outros fora esses.
Lembro da velha sempre que vejo gente nas redes sociais falando, a respeito do ministro tal, que o que mais queria era poder agredi-lo; que queria abater a tiros o senador fulano ou o juiz sicrano; que queria ir pro ringue com o jogador tal do seu time; que lamenta que seu desafeto da vida pública não tenha sido assassinado; e outras reptilidades que tais. Mas oh: agrediriam? Atirariam? Iriam pro boxe? Chorariam o homicídio falhado? Duvido.
Se fazem de maus para tentar mostrar que, no fundo, são bonzinhos. Dou a isso o nome de bonzinhice, que é um jeito mais fácil de falar virtue signalling.
E pensar que minha mãe valsou no baile desse zeitgeist.
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Antes que a inflação acabasse com a vida civilizada no Brasil, as mamães que eram também donas de casa (a maioria) costumavam ter um esconderijo para guardar os caraminguás que lhes sobravam das despesas da casa: troco da quitanda, do mercadinho, da padaria, do armarinho, da conta da Light (eu sou do tempo da Light, sim, senhor, da qual minha mãe, aliás, não era sócia). O da minha mãe era embaixo do pote de arroz. Ela achava que eu não sabia; para sorte de nós dois, demorou para eu ter uso pro dinheiro – quando comecei a ter, o hábito já era.
Havia também o pote – de biscoito, de alfinetes – das notas e moedas velhas, que não foram gastas antes de sair de circulação. Cruzeiros velhos impressos na Inglaterra por Thomas de la Rue com as caras do Tamandaré, do Caxias, do Getúlho, de Pedro I et caterva. Várias delas com carimbos de Cr$ para NCr$ para Cz$ e assim por diante.
As moedas: de dez tostões, de um vintém (20 réis), de cem e duzentos réis, o inevitável peso argentino, cinquenta liras, centavos e cruzeiros leves de latão, algum xelim ou sixpence ou cent imprevisto. E um alfinete de cabeça colorida, um dedal, um anel amassado. Lá pelas quatro da tarde eu pagava a lata, abria e ficava olhando as cédulas e moedas. Pela janela podia entrar um raio de sol iluminando aqueles fiapos que atendem pelo coletivo de poeira.
E era assim que, numa tarde morta de sol baço, o moleque aprendia que, como dizia o Fiori Gigliotti, o tempo passa.
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Minha mãe nasceu em Minas Gerais, numa cidade que teve o nome algo inadequado de Água Limpa e depois se chamou (e ainda se chama) Serrania. É dessas cidades de interior em que se passa da urbe à roça atravessando uma rua, e em que os bancos da praça levam os nomes dos que os doaram: oferta de Alfredo Maranese, doa a família Capadinho, offerecimento da Pharmácia da Luz.
Íamos para lá todos os anos em janeiro, nas férias da escola e do meu pai. O clima era de alterosas: ardente de dia, gelado de noite. A pensão era a casa da minha avó, que ficava numa rua plana entre duas ladeiras. Era de esquina, de onde descia uma rua cujo nome eu nunca soube. E sabia, mas de modo tão tênue que esqueci, o nome da rua em que a casa ficava. Até hoje o pensar que as ruas pudessem ter nomes me deixa um pouco surpreso.
Minha mãe dizia que aquela casa tinha cento e cinquenta anos. Talvez não fosse verdade. Não tinha porão; o declive da rua era compensado provavelmente com terra, e suas paredes seriam também muro de contenção. O banheiro ficava do lado de fora: chegava-se a ele saindo pela cozinha e descendo um degrau. Depois, mais degraus e a passagem sob um arco até chegar ao quintal, onde havia galinhas e patos, e uma casinhola fechada que indicava a fossa. À esquerda, um tanque, cujo reservatório era aberto: sobre a água quase sempre havia libélulas e pernilongos. Uma vez vi uma aranha amarela caminhando sem pressa por ali. Os patos não o alcançavam; uma vez pus um pequeno lá dentro: ele nadou, e minha mãe ficou furiosa. Eu corria atrás das galinhas por horas. Impossível saber quem era mais bobo, eu ou elas.
A rua só ganhou calçamento quando eu já era quase adulto – hexágonos de cimento ou de concreto mal sapados (a grama crescia livre em seus vãos). Quando eu era menino, tudo era terra, tudo era de terra.
Eu me esbaldava num barro claro com muita mistura de areia. Em janeiro a água das chuvas corria muito limpa sobre a sílica que faiscava nessa lama clara. Eu ficava até os tornozelos naquilo, cavando, esperando achar uma moeda romana, um osso de dinossauro, o baú de um pirata. Eu era como Alice: solitário e fervilhante.
À tardinha, cansado, me sentava no alpendre e via procissões de mulheres negras que falavam alto e riam muito. Se uma me sorrisse, eu abaixava a cabeça, envergonhado; às vezes, tinha vontade de fugir.
Na torre da igreja havia um alto-falante que, às seis da tarde em ponto, todo sábado, tocava o “Tema de Lara”. Fazia calor; um silêncio se esticava como elástico até que as pessoas começassem a sair de suas casas e fossem à praça. Eu entrava para jantar vendo um céu imenso pelo janelão da cozinha.
No ano passado, ou no retrasado, a casa foi ao chão. Vazia depois da morte da avó, ficou sem manutenção e ameaçava desabar, de modo que a desabaram à força. O tempo passa.
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Minas Gerais na minha infância era algumas coisas: doce de leite com pedacinhos de fruta-do-conde, que minha mãe chamava de marolo; picolés rosados de creme holandês; milho assado nas brasas de fogão a lenha; café recém-torrado; lâmpadas fracas e cheiros de pessoas.
Lembro da massa grossa do doce posta sobre um tabuleiro e os pedaços sendo cortados ainda quentes: era um doce consistente, não duro, não cremoso. Lembro de moer os grãos de café torrados numa máquina de manivela. Lembro dos picolés enrolados em papel azul, com o desenho de uma vaquinha – os batavos e suas vacas – e do milho macio, quente, aqui e ali preto do sapecado, na ponta de espetos tortos de ferro.
Pode ser que os cômodos da casa de minha avó fossem muito grandes e os tetos muito altos: assim me pareciam, mas eu era criança. Certo é que as lâmpadas não lhes bastavam: brilhavam amarelas e fracas, com um leve zumbido. E ocas: suas luzes não as preenchiam. Havia sombras sob as coisas e dos lados delas, sombras que eu não via aqui em São Paulo. Os batentes das portas eram grossos, as portas de folhas duplas eram encimadas por vidros coloridos. Havia ruídos. Era uma casa de sonhos.
E as pessoas tinham seus cheiros. Eu conhecia o cheiro de minha avó e de meu avô: ambos adocicados, ambos recendendo levemente ao tabaco com que faziam seus cigarros de palha, o dele mais forte, o dela mais denso. Não era cheiro de suor: eram os cheiros deles, que impregnavam suas roupas mas não pegavam em mim.
Eram cheiros de que eu gostava. Eu os reconheceria ainda hoje, décadas depois, mesmo com a civilização tão adiantada como, hum, como está.
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Depois de ouvir o podcast excelente chamado Exílio de Saturno, fiquei imaginando como seria se o teste de Turing se baseasse em perguntas meio insanas. Por exemplo, você perguntar ao bot como é que a mãe dele consegue tricotar com o umbigo, e se ela só consegue isso porque ele bot nasceu com três pernas.
Ou em insultos. Perguntar ao bot se ele é tonto daquele jeito porque a mãe dele comia carne estragada na gravidez. Bot polido ou sonso não passaria no teste. Porque eu desconfio que a programação deles é estruturalista: se a frase for S-V-O, necessariamente faz sentido. E quem quer que tenha ouvido a Bilma sabe que não, oh, que não, não e não.
Segundo eu entendia, Deckard fazia o teste de Turing com os replicantes, e era, pro meu gosto, comedido demais. Talvez porque os replicantes, ao contrário desses programas de IA, descessem o braço.
O amigo que queira ouvir o podcast pode procurar por ele indo ao perfil @exiliodesaturno no Twitter. Não se arrependerá.
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“O homem nasce livre e em todo lugar se encontra acorrentado”, disse Rousseau.
“O homem nasce bebê; e qual o bebê que já foi livre?”, respondeu, muito bem respondido, ainda que com quase duzentos anos de atraso, Gore Vidal.
Eu e o amigo nascemos bebês, sim (não é? Diga que é), mas somos pelo menos livres para nos despedir por aqui. Nos vemos semana que vem, se os que mandam na, digo, defendem a Liberdade continuarem a nos fazer mercê. Até lá.