141. Império; Brasil; pobreza; documentário; patrocínio; botão; fortes; relicário; celebridade; sequer; paixão; frases; inibição; exemplar; funerais d'outrora; gravata marrom; viuvez
De novo, mais falação que razão.
Vivemos sob o império da lei. Ou de quem por ela fala.
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Quando, certa manhã, Matilde Manizales acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se numa cozinha desconhecida, diante de um sujeito vestido só com uma toalha e chinelos de dedo que cantava “Você tem medo do meu apogeeeeeu” enquanto passava margarina num pão murcho e coava o café direto na boca da garrafa térmica, e percebeu que tinha vindo parar numa dessas favelas muito felizes do Brasil.
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Vou chamar minha pobreza de não-milionarismo.
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Uma vez fui, na companhia de amigos d’outrora, assistir a um documentário de Eduardo Coutinho. A internet me ajuda a lembrar-lhe o nome: “O fim e o princípio”. Era a respeito da, ou acompanhava a, vida diária de umas famílias no interior de um dos estados pobres do Nordeste, talvez o Piauí. As pessoas iam e vinham entre casas perdidas na zona rural, pequenos sítios ou chácaras: plantavam roças, iam à cidade, conversavam à mesa do almoço ou do café. Não entendi que cazzo o documentário documentava, não sei se foi afinal demonstrado o que se queria demonstrar; o que sei é que cochilei no meio da exibição, e essa cochilada talvez tenha ajudado a enfraquecer aquelas (boas) amizades, que, com o tempo, se foram de vez.
Fica, portanto, o alerta ao amigo: não me chame para ver documentários nacionais no cinema. Se eu prezar muito a sua amizade, vou dar a famosa desculpa de ter que ir buscar minha avó na musculação.
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Patrocínio da FUFOMA, Fundação Para o Fomento da Amolação.
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Antes da flor vem o botão da idade.
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A pane da semana passada na linha vermelha do metrô de São Paulo me concedeu o privilégio de caminhar ao longo da parte da via que vai do Brás à Bresser na companhia de alguns outros milhares de compatriotas ruidosos e, uns mais, outros menos, furiosos e exasperados. Eu me exaspero também, mas, no geral, só por dentro; naquele então estava calmo, quase me divertindo.
Para quem não conhece a cidade, ou, conhecendo-a, não conhece a topografia do metrô, esclareço que entre o Brás e a Bresser a via não é subterrânea. Na verdade, é aérea: um par de elevados faz o leva e traz, começando alto no Brás e descendo até a Bresser. O vagão em que eu estava empacou no fim da descida, de modo que o trajeto a pé até a Bresser era curto.
A via termina numa escadinha que dá para uma área aberta, ampla, que há antes da estação. De lá, se anda lado a lado com os trilhos até a plataforma. É um espaço agradável, até bonito, apesar do brutalismo arquitetônico com que todas essas estações são concebidas e erguidas: o céu estava meio enevoado, não fazia calor, havia ainda alguma luz. Evitei, prudente, senão mesmo covarde, os trilhos vivos (naquele então, bem mortos) em que outros pisavam sem susto ao atravessar a linha para poder subir à plataforma da estação. Considerei que os cinco reais da passagem foram bem gastos nessa espécie de passeio turístico.
Ainda muito longe de casa, longe de estação de trem urbano e nada propenso a me unir à maré de gente que esperava ônibus na Radial Leste, me sentei num bar para jantar e ler meu Le Carré no kindle. Lá pelas 21:30, com tudo mais calmo, peguei um ônibus sossegado.
Moral da história: São Paulo não é para os fortes, é para os foda-ses.
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Leio por aí que a reforma do ensino médio fez surgir nas escolas públicas do Rio de Janeiro uma matéria chamada “relicário de lembranças”. Vai o raro, o quase inacreditável pai moderno sabatinar o filho:
— O que foi que você aprendeu nesse negócio de relicário de heranças?
— Aprendi o que é relicário.
— E o que é relicário?
— É tipo um realejo.
— E o que é um realejo?
— É tipo um relógio.
— Ah, que massa!
— É massa, é.
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Fábula ex-moderna (pensando em Patti Smith).
Nova York, 1974. Morre uma celebridade. Fã doente entra na casa da celebridade e descobre que a estrela não tinha mobília ou eletrodomésticos, nem tevê, nem som, nem discos: só poeira, mofo, pratos e copos sujos, um colchão, um rádio velho e livros. O rádio não pega e todos os livros são escritos por homens de prenome Richard. O muquifo cheira a azedo e a podre. A polícia vem e prende o fã.
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Uma vez – faz anos – fui o dono impassível de um exemplar do “Manual de redação e estilo” do jornal O Estado de São Paulo (manual que era bem melhor do que o da Folha de São Paulo). Não é livro que se leia de ponta a ponta, é antes obra de consulta, e acho que não cheguei a consultá-lo demais. Hoje, que o perdi, sei que o consultaria bem mais. Uma das coisas que li nele, entretanto, nunca mais esqueci: o alerta quanto ao “sequer”.
Dizia o autor, jornalista com décadas naquela casa, que “sequer” tem o mesmo sentido de “ao menos”, e que não deve ser usado sem o acompanhamento de uma negativa: não, nem, nunca, etc. Se você disser que “Fulano sequer se deu o trabalho”, estará dizendo que o Fulano “ao menos” se deu o trabalho, que ele fez esse esforço mínimo; se, entretanto, o que você quer dizer é que ele não chegou a fazer isso, não tomou essa atitude pequenina, precisa dizer que ele “nem sequer” se deu o trabalho; que ele “não se deu sequer” o trabalho.
Tem que pôr sequer a negativa. Senão, na minha ditadura cruel, o amigo se candidatará a umas centenas de chibatadas. E ao amigo não se quer isso. Ou se quer?
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Com pelo menos três décadas de atraso comecei a ler “À sombra das chuteiras imortais”, livro de crônicas do Nelson Rodrigues sobre futebol selecionadas por Ruy Castro. O livro tem fama pelas razões Nelson e a era de ouro do futebol brasileiro, dois temas, dois assuntos hiperbólicos, e não sei por que está fora do prelo há tanto tempo (peguei o meu exemplar num sebo físico, por isso paguei barato). Ora, logo na primeira crônica, que trata do sexagésimo aniversário do Flamengo, em 1955, leio isto: “em 1911, ninguém bebia um copo d’água sem paixão”.
Hipérbole, sim, sim, mas me peguei imaginando alguém, em 1911 – digamos um sujeito com nome de 1911, Pantaleão Marcondes –, bebendo um copo d’água “com paixão”. Lá estão eles, Pantaleão Marcondes e o objeto de sua paixão, o copo d’água, dividindo a mesinha de vime. Pantaleão primeiro o fita com adoração: oh, o copo. Que não o fita de volta, copo que é. Então, com a mão boa (a destra, se destro; a sinistra, se etc.), Pantaleão o acaricia. Sorri, talvez o elogie: que bonito, você. O copo, se ouve, não dá pinta. Então Pantaleão o pega e o encosta ao rosto, suspirando: ohhh, o copo. Em seguida o cobre de beijos, beijinhos primeiro, beijões a seguir, os suspiros evoluindo em gemidos, talvez sussurrando palavras ternas: ooohhhh, o copo, o copo d’água. Nhunhinho, murmura Pantaleão; momoco, meu nhonho, uhmmm, meu copinho. Então, findas essas preliminares, ele se atira a beber a água, e o ato, cheio de paixão, é obsceno: mete a língua no copo, geme alto, lhe escapam palavras escandalosas – as palavras feias que o ato de paixão embeleza, poetiza. Beber o copo d’água com paixão é quase um intercurso entre Pantaleão e o copo – é um ato carnal.
Como está numa confeitaria em 1911, as mulheres, ante a cena, gritam e desmaiam, e a rapaziada o põe para fora depois de lhe dar uma surra. Espancado, Pantaleão termina beijando o asfalto. Ou os paralelepípedos de 1911. Porque em 1911, creio eu, nem asfalto, ou nem paralelepípedo se beijava sem paixão.
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Parece que eu estou sacaneando o Nelson, mas não: quem sou eu na fila desse pão? Hiperbólicas de montão, as crônicas são entretanto leves, engraçadas, algumas até proféticas. E as frases memoráveis se sucedem: “há na bola uma alma de cachorra”; um tapa é “mais importante que o suicídio, que o homicídio” (duvido que ele acreditasse mesmo nisso, mas a frase é boa); a virtude “exala um tédio homicida”; “como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém?”, perguntava, para desespero dos Quifurys e Laskombies; “não há morto canastrão”; o juiz é “um crucificado vitalício”; um jogador dá na bola uma “cusparada metafísica”; outro tinha “brancas hemorragias de suor”; terceiro, marcando um goleador, parecia “uma catedral perseguindo um coelhinho”; a alma brasileira é presa de “inibições convulsivas”; ao driblar seu marcador, Pelé “enxota, escorraça um plebeu ignaro e piolhento”; defende o gordo Vicente Feola (e, por tabela, este gordo que vos fala) dizendo que “todos os canalhas que conheci são, fatalmente, magros”; seu patriotismo é “digno de um granadeiro bigodudo”; Amarildo era o “possesso” e também um incrível “rútilo epilético”; e por aí vai.
O melhor: são, como eu disse, muito engraçadas. Rara é a que não me arranca pelo menos uma risada alta. Desfaz a ideia que eu tinha, e que decerto outros terão, de que Nelson Rodrigues era, como ele talvez dissesse, um tristonho tonitruante, um melancólico escandaloso. Não era, não.
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As “inibições convulsivas” me fizeram imaginar outra historinha: a do moço tão tímido que, quando falavam com ele, ou quando só olhavam para ele, rolava no chão tomado de sezões.
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A propósito, amigo: livro vende exemplar, não vende cópia.
Cuidado com a minha ditadura. Esse erro, por exemplo, renderá alguma amputação.
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Da crônica intitulada “O craque na capelinha” vem este trecho:
Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia às carreiras; ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em casa e, pois, dentro de um ambiente em que até os móveis eram cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos outros mortos.
Era a época em que as mães, as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt. Lembro-me de uma menina que morreu, de febre amarela, quando eu tinha meus cinco anos. Pois bem. A mãe da morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a cabeça nas paredes; derrubava as cadeiras; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que ser contida, amordaçada, quase amarrada.
Bem, foi exatamente assim o velório, a câmara-ardente, do meu avô Antônio Gonçalves, pai da minha mãe. Ele morreu no meio de 1977; eu tinha pois dez anos, o dobro da idade do menino Nelson que viu e nunca esqueceu a mãe esgoelada. Meu avô morreu de uma doença renal que nunca cheguei a saber qual era (só me lembro que me disseram que ele urinava sangue), às cinco da manhã de um dia de semana. Puseram-lhe o caixão sobre a mesa da sala, e a casa ficou cheia de gente. Ele era pai, com minha avó, de três filhos e cinco filhas, e de mais uma, num casamento anterior de que era viúvo. Lá estavam todos, menos uma das filhas, já então falecida; e lá estava, ou antes, por lá passou a cidadezinha inteira.
Lembro que apanhei porque queria entrar debaixo da mesa (eu cabia), onde já estava um cachorro da rua. E que a atividade na cozinha era grande. Veio o padre, rezaram-se o rosário e ladainhas, entoaram-se cantos fúnebres, rememoraram-se casos da vida dele, não faltou quem dissesse que ele fora “um santo”, talvez até com a exclamação que omiti.
Então, à hora de fechar o caixão, veio o escândalo das filhas (minha avó, me disseram, estava muito tranquila, quase indiferente – antigamente a viuvez era uma espécie de alforria das mulheres). Minha tia Antônia atirou-se sobre o féretro, implorando aos berros para ser levada à cova também; minha tia Lola arquejou, quase desmaiou escarrapachada numa cadeira; minha mãe mordia um lenço; Margarida deu uns pulinhos. Mas fecharam a tampa sempre e passaram-no, com cuidado desajeitado, por duas portas estreitas até lá fora. E o funeral se foi, sob berros e uivos, pela rua ainda então sem calçamento. No cemitério, mais escândalo; havia tantos adultos à beira da cova que não houve para mim senão ficar mais atrás, bem mais atrás, e ouvir o escarcéu.
O amigo ficará escandalizado, ficará de mal comigo se eu disser que estava me divertindo? E que voltei para casa com mais fome do que lágrimas?
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(...) é vulgar usar caneta-tinteiro no bolsinho do paletó, ter preferência pelos pulôveres de lã e por gravata marrom, bambolear-se um pouco e virar o pé para fora ao caminhar.
John Le Carré põe na boca do seu herói George Smiley, em “Um crime entre cavalheiros”, uma avaliação de classe bem precisa na Inglaterra de 1960 que não tem mais lugar hoje em dia. Na verdade, um sujeito vestido assim, com uma Bic no lugar da 51, será tido como alinhado.
Entre os poucos legados físicos do meu pai está um punhado de gravatas, duas das quais marrons. Não inteiramente marrons, têm detalhes de outras cores, mas bem marronzinhas sim.
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Eu disse que a viuvez era uma alforria das mulheres. Há a história da mãe de Edmund Wilson que, quando enviuvou, disse, com alegria sem disfarces: “oba, finalmente vou poder me mudar daquela casa”.
Quanto a nós, amigo, fiquemos com a esperança de alforrias parciais, essas que vêm, às vezes, com as urnas, e, quase sempre, com aquela senhora magrela e seu alfanje.
E até mais ler.
Mais uma bela quinta-feira começando embalada pela leitura de mais um excelente “Silly Talks”. Quase um talismã das manhãs de quinta-feira, a esta altura (sei que sai em edição noturna às quartas, mas o texto reluzente coadnua mais com as manhãs ditosas de quinta). Quanto ao “Manual de Redação e Estilo” do Estadão, sei que não é a mesma coisa, mas ei-lo em versão digital (chequei e a nota do "sequer" está inclusa):
https://www.estadao.com.br/manualredacao/
E disco? vende cópias ou também é exemplares?
O filme do Coutinho - não que isso mude nada nem lhe arrependa da soneca - foi filmado na parahyba, o que tanto faz como tanto fez.