142. Fé; coletivo; tomar, pegar; sonho; sol; OVNI; pólo; pirâmide; tipicidade; túmulo; Michaeljacksonverso; Birigüi; Jane Austen; solidão; direita; delírio
Curtinha. Preguiças de carnaval.
O negócio é continuar mantendo aquela fé inquebrantável, e até o momento plenamente justificada, na incompetência nacional.
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“Integrar um coletivo”, para mim, é pegar ônibus.
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A geração dos meus pais, que foi a da qual tirei a maior parte do meu idioma, dizia não “pegar”, mas “tomar ônibus”. Como se o ônibus fosse uma dose de Cynar, uma besetacil ou um murro.
Geração sábia.
Também diziam, como lembrou na rede ex-Twitter a amiga @tovendoumet, que iam “à cidade” quando iam ao centro de São Paulo, e isto faz sentido porque, ao longo de quase 300 anos, a cidade de São Paulo era só aquilo ali - o entorno eram sítios, fazendas, chácaras.
Hoje a “cidade”, nesse sentido de alguma coisa central, é a região da Paulista, mas cada vez menos, e daqui a pouco será a vez da Berrini. Eu, porém, vou continuar usando essa palavra para falar da Sé, da 25 de Março, da Tabatingüera, da Hércules Florence.
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Sonhei que estava numa passeata noturna e que o meu cartaz dizia que um grande líder democrático brasileiro – tão grande tem horas em que parece que a democracia é um bibelô que ele carrega no bolso – tinha sentado no meu mijo.
A passeata era dispersada pelo corpo de bombeiros, com água de reuso. Por ser sonho, eu não ia para a cadeia.
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Ruim, ruim mesmo, é um saxofonista tocando por três horas a fio a mesma melodia de forró e você tendo que ouvir, acorrentado sob o sol.
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Toda vez que alguém derruba um OVNI, uma ursa panda pinta o pelo preto de azul e triplica o peso.
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Da página da Wikipedia sobre Torquhil Campbell, 13º Duque de Argyll, que é um ano mais novo do que eu:
Known for: chief of clan Campbell, elephant polo, landowning.
Elephant polo. A nobreza britânica ainda é a melhor.
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Acho que a felicidade de acompanhar um bloco de carnaval é muito parecida com a felicidade de carregar pedras para construir uma pirâmide.
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Aliás, o carnaval é uma daquelas ocasiões em que um monte de brasileiros se sentem obrigados a ser típicos.
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Antigamente, quando um samba morria lá no Rio de Janeiro – de cirrose ou de tuberculose, como outrora; queimado vivo ou com quarenta e sete tiros de fuzil na cabeça, como mais recentemente –, vinham enterrá-lo aqui em São Paulo, que, por isso, era chamada “o túmulo do samba”. A cidade, apropriadamente, se tornava silenciosa e aziaga como o campo-santo que era. Você andava por aí sob o sol e ouvia o vento e os passarinhos, ganhava pão de graça, e até a mais azeda das velhotas lhe sorria.
Tenho saudades desses tempos. Porque agora São Paulo é o saquinho de vômito que o samba larga por aí quanto está bêbado, é o monturo em que o samba joga suas embalagens sujas de acarajé, é a sarjeta e o poste e até a soleira das casas em que o samba urina com uns gemidos altos de alívio.
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O desenho animado do “Homem-Aranha no aranhaverso” é legalzinho de assistir. O plot é o seguinte: Homens-Aranha de diferentes universos se juntam para combater alguma ameaça, e, claro, se dão bem. Como são de outros universos, são todos diferentes entre si: um é mulher, outro é gordo, terceiro é um porco, quarto é bêbado e fedorento, e assim por diante. E dá liga, e dá tudo certo e tal.
Pois bem: a junção recente de fatos aleatórios – Super Bowl, show do Kraftwerk no Youtube e Michael Jackson – me fez imaginar um “Michael Jackson no michaeljacksonverso”. A diferença do meu plot é que os Michaels não vêm de outros universos; o catado é desses Michaels que tem por aí se apresentando espalhados pelo Brasil: o Michael Jackson da Avenida Paulista, o Michael Jackson da Central do Brasil, o Michael Jackson da feira de Caruaru, o Michael Jackson da Biquinha, o Michael Jackson da rodoviária de Curitiba, etc. Todos muito parecidos, que aqui o negócio é tentar ser profissional, todos com o mesmo poder de dançar e dar gritinhos, combatendo, sei lá, o espírito antidemocrático, ou o avanço da extrema-direita.
Cenas: a extrema-direita apanhando ao som de “Bad”, ou a extrema-direita caindo do alto do Banespão ao som de “Smooth Criminal”, ou a extrema-direita dando tiro de canhão em berçário ao som de “Beat it”, ou os Michaels indo combater em Birigüi no Cometão ao som de “Billie Jean”, ou os Michaels bebendo corote, temporariamente derrotados, ao som de “Human nature”, etc. Na batalha final, renhida, os Michaels ganham a ajuda dos quilombolas e a torcida de vários influencers que o acaso uniu sob as asas de uma mesma agência de publicidade. No fim, Michael Jackson, o verdadeiro, aparece sorrindo no céu, o Cruzeiro do Sul cintilando no seu topete ou coisa parecida, abençoando seus clones.
Bah, Hollywood perdeu um grande autor de flops.
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Sim, eu acho que faz falta uma versão de “Billie Jean” chamada “Birigüi”.
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É famosa a frase de Mark Twain a respeito de Jane Austen, em que ele diz que uma biblioteca boa começa por não ter nenhum livro dela – mesmo que não tenha mais nenhum outro livro. Menos famosa, mas mais vitriólica e engraçada, é a frase dele que diz que
Toda vez que eu leio “Orgulho e preconceito” me dá vontade de desenterrá-la e bater-lhe no crânio com seu próprio osso da tíbia.
Mas a reputação dela, hoje cada vez mais robusta, sofreu também nas mãos de Emerson (o Ralph Waldo, não o Fittipaldi, nem aquele seu primo neopentecostal), que achava os livros dela
vulgares no tom, estéreis na invenção artística, sem gênio, sem wit, sem nenhum entendimento do mundo. O suicídio é mais respeitável.
E apanhou também de colegas escritoras bem menos famosas (eu sempre digo que a sororidade é uma espécie de Saci Pererê), como Mary Russell Mitford:
Mamãe dizia que ela [Jane] era a mais bela, a mais boba, a mais afetada borboleta caça-marido que ela já viu.
Tirei tudo isto das primeiras páginas de “Rotten reviews”, de Bill Henderson, coletânea muito boa de pauladas dadas em escritores por críticos (e por outros escritores) de língua inglesa pelos séculos. A dica do livro me veio do amigo Diogo Rosas G.
E ainda tem mais essa aí, em forma de cartão para você – caso queira – imprimir e distribuir junto com os ovos de páscoa.
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Um homem que, depois de ter tido família, morava só havia algum tempo chegou em casa à noite e viu que alguém mexeu no bule de café sobre o fogão: deixou-o de um jeito, achou-o de outro.
Ele sabia que o caso era para preocupação, até para medo, mas por um segundo ficou feliz. É que, naquele segundo, lhe pareceu que havia mais alguém vivendo ali com ele.
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Fiquei sabendo que eu era de direita (e que no fundo eu não prestava) quando disse, com 17 ou 18 anos, que gostava mais do Paul do que do John.
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Calma, amigo: antes das vias de fato, prefira as vias de delírio. Aliás, nem há outra via ultimamente. Enquanto o amigo não vai delirar, entretanto, dê uma espiada na minha coluna, muito nova e didática, na “Crusoé”.
Semana que vem, post delirium, nos vemos de novo.