143. Barato; rosnados; paz; humor; textão; Café Lacan; outro café; café e a Vida; marco; filme; nariz; astrologia; Frank Zappa; princesa; galochas; Donald Trump
Ainda abundando em temas, ó Brutus?
O caro é o novo barato.
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Parece que hoje ninguém mais é bem-vindo em lugar nenhum. Se você não for da mesma raça ou da mesma etnia, ou da mesma confissão, ou do espectro mais ou menos largo de “identidades de gênero”, nem vá: você não vai ser bem recebido. Todo o mundo vive rosnando.
O mundo moderno vai se tornando uma idade da pedra cheia de justificativas.
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A paz de que a esquerda gosta tem cheiro de vela e de flor murcha.
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Mas houve tempo em que a esquerda tinha humor, em que podia ser muito agradável conversar com um esquerdista. Ele seria alguém normal, não uma mulher esquisita que parece que faz seis meses que não sara de uma enxaqueca, ou um barbudinho que dá risadas agudas de coisas cuja graça você não chega a perceber.
A perda do esquerdista ameno é dolorosa.
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A história incrível do casal de usuários de rede social que viu um livro (fininho) e disse: “Credo, textão!”.
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Tem um Café Lacan em Buenos Aires. Faz sentido: dizem que a cidade tem mais psiquiatras, psicanalistas, psicólogos (sei lá eu a diferença entre uns e outros) per capita do que o centro de São Paulo tem cracudos. Mas me pergunto se adianta alguma coisa para quem quer só beber um café e comer uma medialuna. Se for lacaniano de verdade, deve funcionar assim: você senta à mesa e vêm três garçons, sem menu, que sentam também e ficam um tempão falando, com você e entre eles lá, um monte de coisa que você não entende. Aí se levantam, vão embora e um volta com a conta, alta e em dólar. Você não pediu nem bebeu café nenhum: estão cobrando a análise, que você não entendeu. Você paga, fica deprimido e já agenda o dia de voltar. Fim.
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Talvez Paris devesse se vingar criando um Café Macedonio, ou um Café Ascasubi. Se vingaria à grande, porque seriam cafés mais interessantes.
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Já agora num café daqui, um mero café paulistano, estou sentadinho à mesa, tomando o meu. Vem a Vida e senta, sem ser convidada. Sou gentil:
— Quer um café, dona Vida?
— De você o que eu quero é coragem.
Hesito entre dar-lhe um tabefe ou xingá-la de alguma coisa bem feia (minhas ideias de coragem). Ganho tempo bebericando o café. Impaciente, ela se levanta e vai procurar coragem em alguma outra mesa. Me recosto na cadeira, satisfeito.
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Marco civil. Marco militar também. Marco todo mundo. É só agendar.
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Há filmes que só comovem enquanto a gente, qual foca de circo, suspende a disbelief na ponta do nariz. Quando a disbelief cai, como acontece com o Benjamin Button, o filme acaba se parecendo com uma galinha atropelada.
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Low profile é nariz caído, confere?
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Muita gente de esquerda usa “astrólogo” para falar mal do Olavo. Acho engraçado: 99% dos esquerdistas são loucos por esses troços de horóscopo. Deviam é lamentar ele ter largado a astrologia em prol de outras coisas, as coisas que eles abominam de verdade.
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Em 1982, Frank Zappa teve um sucesso radiofônico inesperado nos Estados Unidos com “Valley girl”; por causa disso, a CBS achou de lançar no Brasil o LP em que ela está, “Ship arriving too late to save a drowning witch”. Comprei o disco porque achei que tinha “You are what you is”, que eu via todo sábado no Som Pop, da TV Cultura, e achava o clip muito engraçado (a uma certa altura, punham o Ronald Reagan na cadeira elétrica). A decepção foi dupla, até tripla: “You are what you is” não está nesse disco, “Valley girl” foi sucesso só Deus sabe como (aqui no Brasil, não passou perto de tocar nem em sessão da madrugada) e Zappa não é para moleques de quinze anos. Mas minto, minto: eu gostei muito de “I come from nowhere”, ao menos do primeiro minuto e meio.
Antes desse lançamento, o único disco do Zappa que se podia achar no Brasil era o acessível “Hot rats” – digo “acessível” porque a música ali se parecia mais com a das bandas de jams dos anos 60 do que com a do próprio Zappa. Claro que “Ship...” não deu, digamos, impulso para outros lançamentos – quando “Jazz from hell” saiu aqui, em 1985, foi outra surpresa, e o disco logo acabou indo parar nas pontas de estoque com preço de liquidação.
Com os anos fui começando a gostar mais de “Ship...”: entendi as impossible guitar parts de Steve Vai, ou melhor, ao menos entendi que o que eu estava ouvindo ali era uma guitarra. E por ele comecei a gostar mais do próprio Zappa e de discos como “Waka/Jawaka”, “Zoot allures” e “One size fits all”. O bom dele são as músicas instrumentais: nas músicas com letra e vocais, Zappa fazia o gênero “liberal engraçadinho usando piadinha para falar de coisa séria” que é, para mim pelo menos, muito tedioso. Mas as instrumentais são bárbaras: Stave Vai diz que o nível de dificuldade delas era de tirar o sono, e a qualidade dos músicos da banda dele era nada inferior ao excepcional; mesmo assim, a uma certa altura da vida Zappa aderiu ao Synclavier, computador para compor/tocar música, porque andava escrevendo coisas que iam além da capacidade de execução de músicos humanos (“G-spot tornado”, de “Jazz from hell”, é o exemplo, que entretanto acabou sendo tocada por uma orquestra humana, não sem sangue, suor e lágrimas – e um balé ridículo). Outra coisa: ele era um guitarrista excelente, muito subestimado por causa das micagens. Deixo aqui uma playlist pro amigo ouvir com prazer no esportifái:
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Distraído, ia ele pelas aléias do mercado quando viu a mocinha distribuindo, grátis, pedacinhos de queijo suíço de marca famosa para a clientela experimentar. Levou um susto: que humilde a ex-princesa Merglan, Meahan, sei lá como escreve. Ou que sufoco ela deve estar passando, coitada, agora tem que se virar oferecendo queijo para degustação num Barateiro de Itaquera.
No fim, soube que o nome dela era Edilenny, que ela morava na zona leste mesmo e que era muito batalhadorazinha. Já disseram, sim, que ela era bem parecida com a ex-princesa Milmann, Morghan, sei lá como escreve. Sentia-se honrada, mas não gostava de homem cheio de espinha que nem o ex-príncipe Potter.
O queijinho era bom, sim, ele até pegou um pedacinho a mais.
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Vai a mocinha na rua adiante de mim – mocinha mesmo, não terá mais que vinte e cinco anos – e, pelo modo como se veste, parece à primeira vista neopentecostal, ou uma senhorinha dessas de missa: camisa de mangas compridas, gola alta, saia descendo ao começo da canela. Percebo que é moderna quando vejo o chapeuzinho esquisito e que calça galochas.
Sim, sim, as pessoas calçam o que quiserem e puderem, e essa decidiu calçar galochas. Conheço mulheres que acham mesmo que qualquer galocha é preferível a um par de tamancos de plástico transparente. E, enfim, é tempo de chuvas. Minha geração preferia molhar os pés; a dela não há de dispensar as bottoms das suas trousers rolled.
E lá vai ela, vestida como para um Exército da Salvação que, no entanto, não sei se, nem quem, pode salvar.
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Em nova constatação do abismo de podridão moral em que vivo, conto que sonhei que encontrava Donald Trump numa praça e passávamos o tempo trocando piadas criminosas sobre minorias: quantos afegãos são precisos para trocar uma lâmpada, por que o cadeirante esquimó atravessou a rua, quantos mirandeses cabem num fusca, etc. Acordei calmo e bem-disposto.
Calmo e bem disposto, desejo, acordará também o amigo, amanhã e ao longo de toda a semana que correrá até que nos falemos de novo. Salve, vale.
Pobres mirandenses, sempre motivo de chacota.