144. Mais trivialidades com pouca variação, ou mais assuntos do que espaço no título
Ou: mais deblateração do que meditação.
A derrocada do cristianismo trouxe muitas freiras potenciais (mulheres enérgicas, abnegadas e, admitamos logo, muito capazes, dispostas a fundar hospitais e creches e a liderá-los de modo até ardoroso) para o ativismo woke e para resmungar nas redes sociais.
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“Cuba”, em português, tem o significado de vasilha ou pequeno tonel. As cubas que davam sobrenome ao Brás eram dessas. Nas cubas iam as coisas boas e ruins que se despejam em vasilhas ou em pequenos tonéis.
Nesse sentido, o Brasil já é uma cuba, dado o que lhe têm deitado dentro.
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Myles e o Catecismo do clichê.
Myles: como foi o assassinato?
A turma: foi bárbaro; foi brutal.
Não se fala dos assassinatos civilizados nem dos assassinatos gentis, suaves, amistosos, delicados, sensíveis, amorosos, atenciosos, etc.
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Toda manhã é igual: tem alguém num jornal ou numa rede social pedindo mais uma lei, ou cana para alguém.
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Sonhei que a Queen Latifah me dava um abraço e um pratão de leite com pera. (Eu não fui criado a leite com pera; ninguém que eu conheça foi criado a leite com pera. Não existe esse negócio de leite com pera.)
Depois sonhei que era barman em algum lugar. Me pediam whisky sour, que eu fazia misturando red label ou algum outro uísque igualmente vagabundo com água de salsicha. Bebiam, não me batiam, o pianista mandava ver, etc.
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Medicina é tarô: alguém lê nas cartas (os exames) as tendências do teu destino.
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Rita Lee (que ouvi muito, de quem gosto muito, e que teve parte em muita coisa legal e saudosa da minha vida) canta que “roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”.
Bem, ontem vi um bando de roqueiros brasileiros, e todos tinham cara de muito tolerantes e altamente conscientes dos imensos problemas sociais do nosso país, cheios de disposição de lutar por um mundo e um futuro melhor e mais justo.
Quer dizer: para um certo tipo de gente, tudo só faz melhorar.
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— Mortífera ilha que salga meus olhos, esfola minha pele, me enche de dor.
— Não é nada disso o que eles cantam.
— Dá licença que essa ilha é minha, sim?
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Minha mulher conta a história, absurda e verdadeira, da mulher que morreu por causa de um acidente decorrente de fritar um ovo. Eu:
— Nunca mais eu frito um ovo.
Minha filha:
— Você nunca fritou um ovo.
Eu:
— Nunca mais eu tento fritar um ovo.
Minha filha:
— Você nunca tentou fritar um ovo.
Eu:
— Mas já cogitei. Nunca mais cogito.
Se não cogito, porém, non sum. Temi desaparecer, mas estou aqui. Do que se deduz que fritar ovo é perigoso, e que Descartes é meio superestimado.
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Carnaval (leia com o “r” retroflexo de marginalzinho da periferia de São Paulo):
“Tem todo tipo de fantasia. Este, por exemplo, é um traficante celebrando as clínicas de desintoxicação.”
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A Bolívia é um Brasilzinho, ou o Brasil que é uma Boliviona?
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Sete passos entre mim e o Papa Gregório Magno:
Eu --> Sílvio Santos --> Barão de Mauá --> Aleijadinho --> Rabelais --> Duns Escoto --> Carlos Martel --> Gregório Magno.
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Lembrança à toa no domingo quente: uma edição de 1972 ou 1973 da revista “Pop” que mostrava a vida dos hippies em Arembepe. Havia uma foto de uma panela suja de arroz deixada no fundo de um regato. Louvava-se ali um sistema de limpeza natural que abolia detergente e esponja e consistia em deixar a panela suja lá para que os peixes comessem o que nela houvesse.
Acho que esse sistema, nojento mas certamente agradável pros peixes, causaria faniquitos nos ecologistas de hoje, apesar deles serem descendentes diretos desse espírito.
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Num tuíte que é uma aula de informação condensada, o amigo Badé Correia conta como foi que percebeu que os gemidos, espontâneos ou treinados, que uma mulher solta ao fazer amor são, ou soam como, blue notes. O Pink Floyd percebeu que com cães uivando é mais ou menos a mesma coisa, e botou um cachorro para “cantar” com a banda o blues acústico “Seamus”, do disco “Meddle” (no vídeo, a música aparece menor e com o nome de “Mademoiselle Nobs”):
O tuíte, a propósito, é este (siga o rapaz, que vale a pena):
Nos tempos remotos em que tive aulas de música, aprendi algo sobre a blue note que agora compartilho com o amigo. Ensina a teoria musical que temos sete notas naturais – aquelas lá: dó, ré, mi, etc. Os intervalos entre algumas delas são de um tom: dó para ré, ré para mi, fá para sol, sol para lá, lá para si. Entre mi e fá e entre si e dó o intervalo é de apenas meio tom.
Pois bem, tomemos dó e ré. Entre a nota natural dó e a nota natural ré “existem nove variações tonais perceptíveis ao ouvido humano” (está entre aspas porque é uma frase que eu decorei); essas variações têm um nome técnico que esqueci agora. Uma dessas variações, possivelmente a central, constitui o acidente (a tecla preta do piano), que pode ser chamado de dó sustenido ou de ré bemol. Restam, portanto, oito variações, quatro à esquerda do acidente, quatro à direita: a blue note pode ser qualquer uma delas.
Não é possível fazê-la soar no piano, portanto, porque ela está entre as teclas. O slide guitar surgiu para fazê-la soar no violão e na guitarra, anulando a separação em meio tom dos trastes – sim, a ideia do slide é ser dissonante e não, como fazia o tão elogiado Duane Allman, pegar as notas “certas”.
Também se pega a danada cantando, é claro. Os velhos bluesmen estão cheios deles. Recomendo ao amigo ouvir algum disco do Bukka White, ou o clássico “King of the delta blues singers”, do Robert Johnson.
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Sobre músicas e mulheres ganindo ao ser amadas há, é claro, dois exemplos, um famoso, outro não: “Je t’aime”, do Serge Gainsbourg, em que a gemebunda (upa) é a bela Jane Birkin, e a nada sutil “The torture never stops”, do Frank Zappa, em que os êxtases, alguns prolongados, partem da goela de dona Gail, sra. Zappa.
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Um meme na rede twitter pede que a gente “poste 10 bandas/artistas pelos quais você foi obcecado em algum momento da sua vida”. Meme é meme por muitas razões, uma delas o usar muito mal as palavras – no caso, obcecado. É um adjetivo que serve para indicar a pessoa presa de uma mania que se avizinha à neurose ou até à possessão demoníaca. Acontece com muita gente, é verdade, que fica maníaca ou neurótica com artista, mas nunca aconteceu comigo: nunca gostei de nenhum artista ou banda tanto assim. Mas já gostei e gosto ainda muito de alguns: Beatles, Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd, os Mutantes, Bach, Vivaldi.
Pensando em atender o meme, notei o seguinte: o que me aconteceu mesmo foi gostar demais de certos discos, e não da obra das bandas ou dos artistas. Há discos que venho ouvindo muitas e muitas vezes vida afora, não por obsessão, mas pelo prazer que tiro deles. Por exemplo: In a glass house, do Gentle Giant; Forse le lucciole non si amano più, da Locanda delle fate; Killers, do Iron Maiden; Wish you were here e Animals, do Pink Floyd; Truth, do Jeff Beck Group; Islands, do King Crimson; Mutantes e seus cometas no país do Baurets, dos Mutantes; Made in Japan e Live in London, do Deep Purple; Live in USA, do Premiata Forneria Marconi; Tea for the tillerman, do Cat Stevens; Never for ever, da Kate Bush; A trick of the tail, do Genesis; The geese and the ghost, do Anthony Phillips; os Concertos brandemburgueses na versão regida por Marcel Couraud; e outros, muitos outros. Ficam esses de sugestão para quando o amigo estiver bundando e querendo novidade nos esportifáis.
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Dou de cara, em redes sociais, com a capa de um livro de Annie Ernaux chamado “A escrita como faca e outros textos”. O livro talvez preste, talvez não, jamais saberei; mas o título chamou minha atenção e me fez pensar em continuações:
A escrita como batata descascada e outros textos.
A escrita como cebola picada e outros textos.
A escrita como rosbife fatiado e outros textos.
A escrita como bucho eviscerado e outros textos.
A escrita como torrada lambuzada de geléia e outros textos.
A escrita como o amolador de facas lá na rua e outros textos.
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(...) é quase impossível para uma mulher irritar um homem de verdade, e (...), para as mulheres, um homem nunca é inteiramente desprezível, nunca completamente abominável, enquanto continuar a ser homem.
Isak Dinesen (Karen Blixen), A fazenda africana, p. 30.
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Ainda não nos mudamos, portanto ainda temos quintal; no quintal, varais; nos varais, roupas. Choveu durante a madrugada; corri para catá-las, que já estavam secas, e as empilhei sobre a mesa da cozinha. Zonzo de sono, fui dormir e as larguei lá. Agora cedo, de café tomado, vou dobrando-as para as pôr no cesto de passar e, enquanto o faço, sinto nas mãos os tecidos e penso, como muitos já pensaram antes de mim, que Carlos Magno não se vestiu jamais de panos tão bons (tenho nas mãos as roupas das mulheres, mas mesmo os tecidos inferiores das minhas são melhores do que os que Carlos Magno já teve). Ele que venceu batalhas, foi coroado por um Papa e nunca (diz Monteiro Lobato) aprendeu a ler, nem a escrever, se vestia pior do que eu, anônimo entre anônimos, imperador de quase nada.
É verdade que os impérios – o meu, o seu, o do Carlos Magno – seguirão a profecia de Dylan, will return into sand, vanish from our hands, como nós nos esvairemos das mãos dos que ora imperam. O fato de que vivemos materialmente melhor do que a maioria dos homens que fizeram a história não quer dizer nada, nem para eles, nem para nós – e se isto não basta para mostrar que o materialismo histórico é a mera defesa do pó, da areia, o que bastará?
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Enquanto não desaparecemos, amigo, vá lendo, se quiser, minha coluna nova na “Crusoé”, em que ponho um chanceler de facto para explicar o antissemitismo do governo usando um pula-pula. E até semana que vem.
Obrigado pelos elogios, Orlandinho!
Rindo muito do final da coluna na Crusoé...