145. Samba; o Estado; critérios; canibalismo; Terry Jones; banana; anatomia; trisal; manifesto; prefácio; black metal; picaretas; Romualdo; cana; msungu mse; abstrações
Ex nihilo, nihil.
G. R. E. S. Desunidos da Aliança Liberal-Conservadora.
* * *
País pobre tem que ter é Ministério da Doença.
* * *
“Critérios sensoriais, como cor, aroma e sabor” valem para avaliar cerveja, mas também, se se quiser, para avaliar isopor, caco de vidro e cocô.
* * *
Pensando aqui que os americanos só não são canibais porque essa turma que fala mí renerál, mí capitãn, são todos muito magrelinhos.
* * *
Fazendo palavras cruzadas com a ajuda do espírito de Terry Jones.
Eu: — “Físico e astrônomo brasileiro, ganhador do prêmio Templeton de 2019, conhecido como o Nobel da Espiritualidade.” Fácil: Paulo Coelho.
Terry Jones: — Não parece o Paulo Coelho na ilustração.
(Tem ilustração. São palavras cruzadas da Coquetel.)
E: — O desenhista é ruim.
TJ: — E desde quando Paulo Coelho é físico?
E: — Ele se exercita.
TJ: — Não, não é a condição física dele: é o estudo de física, uma ciência.
E: — Bom, ele é tipo um metafísico.
TJ: — E astrônomo, ele é?!
E: — Claro. Senão, como faria magia com o horóscopo?
TJ: — Quem lê horóscopo é astrólogo, não astrônomo!
E: — Ai, astrônomo, astrólogo, baionômo, baiólogo, tanto faz. Seu chato.
TJ: — Olha, você contou as letras?
E: — Hein?
TJ: — As letras. Paulo Coelho tem onze letras. Quantas tem no diagrama?
E: — Deixa eu ver... 16.
TJ: — Viu? Não é o Paulo Coelho.
E: — Caramba. E Raul Seixas?
TJ: — Dez letras.
E: — E... e... o Gasparetto?
TJ: — Morreu faz tempo.
E: — Mas o prêmio é espiritual.
TJ: — E daí?
E: — Ora, você é um espírito e está aqui falando comigo.
TJ: — É. Olha o prêmio que me deram. Põe Winston Churchill.
E: — Ele é brasileiro?
TJ: — Provavelmente.
E: — U-Í-N-S-T-O T-C-H-Ú-T-C-H-Ô-L-L, com dois “ll”? Ou com dois “uu”, T-C-H-Ú-T-C-H-O-U-U?
TJ: — Dois "ll".
E: — Deu!
TJ: — De nada. Agora canta para eu subir. Vai, anda logo.
E: — I’m a lumberjack and I’m OK, I sleep all night and I work all day...
* * *
A coisa mais boba em que acreditei quando criança (ou uma das mais bobas; eu era bobo, e bobo acredita em tudo que é bobeira) era que comer banana e tomar café mata.
Meu pai inventou essa para me impedir – tarefa de pai é educar; o meu, como se vê, educava pelo terror – de comer banana tomando café.
Eu devo ter me curado dessa bobeira sem perceber, quando comi bolo de banana com café e, até onde percebo, não morri.
Se bem que bolo de banana não é bem banana. Hum. Hummmmm. Será que.
— Que criança é essa – perguntareis – que queria comer banana tomando café?
Essa criança era eu, anunciando o adulto adepto da auto-flagelação. Ora.
* * *
Sempre que vejo a palavra “Anatomia” em título de filme ou livro – Anatomia de uma queda; Anatomia de um crime; Anatomia de um escândalo – fico com vontade de perguntar que parte corresponde às pernas da queda, que parte corresponde ao fígado do crime, que parte corresponde aos pulmões do escândalo.
* * *
Da primeira vez que vi a palavra, demorei uns minutinhos para entender que “trisal” não era remédio para azia.
* * *
“O manifesto foi assinado por cerca de 400 pessoas, entre intelectuais, ativistas e simpatizantes de diversas procedências. Dois dos signatários, porém, acharam que a lista era de espera para financiamento de smartphone; outros três pensaram que era um cartão de aniversário; e um achou que era lista de presença.”
* * *
Qualquer um que, no Ocidente, esteja familiarizado com a teologia moderna verá rapidamente que a tese do Sr. Endo [a de que o Catolicismo tem que ter algo de japonês para vingar no Japão] é mais universal do que muitos dos leitores japoneses desconfiam. Isso porque, se o cristianismo helenizado não serve no Japão, tampouco serve (segundo a opinião de muitos) no Ocidente moderno; se a noção de Deus precisa ser repensada para o Japão (como este romance enfatiza constantemente), então precisa ser repensada para o Ocidente moderno; se o ouvido do Japão anseia por uma nota nova na vasta sinfonia, o Ocidente não está menos atento – procurando novos acordes que correspondam às sensibilidades que lá despertam.
Do prefácio de William Johnston à sua tradução inglesa de “O silêncio”, de Shusaku Endo. Johnston escreveu isto em 1969 para um livro que saiu em 1966. A idéia de que Deus e a doutrina católica sejam uma “noção” que se possa “repensar” conforme as “sensibilidades que despertam” nos põe no coração do Concílio Vaticano II.
* * *
Baixo meus mepetrêis num programa p2p chamado SoulSeek, programa criado pelo mesmo sujeito que criou o Napster e que tem, entre seus “recursos”, salas de chat por gênero musical.
E eis que lá tem uma sala para o Black Metal e outra para o true Black Metal.
Quer dizer: se nem os caras do Black Metal estão se entendendo, imagine nós, imagine o mundo.
* * *
Quando mais moço, li alguns livros do Castañeda com seu rude mentor, D. Juan, emprestados por amigos que levavam aquela patacoada a sério. Eram livros engraçados, que se aproveitavam do deslumbre infantil que temos com os mágicos de circo para nos tirar, aqui e ali, um “oh!”.
Como aqueles mágicos picaretas, Castañeda e seu talvez fictício D. Juan enganavam nossa adultice incompleta disfarçando seus truques com conversas cheias de meias palavras e insinuações de que, bom, se não entendíamos com clareza o que era tudo aquilo, era porque não tínhamos as finezas d’espírito necessárias para tal. E que, sinceramente, era muito possível que fôssemos uns bostas.
Um pouquinho mais tarde, mais velho, mais cansado e mais sossegado, percebi que todo misticismo é assim. Uma degeneração dessa atitude chegou às classes populares — às redes sociais — sob a forma do “vocês não estão preparados para essa conversa”.
Acho que me tornei mais adulto quando reconheci que é verdade, não estou preparado, e nem quero estar preparado, para aquele tipo de conversa. Fiquei em paz.
* * *
Em casa.
— E se eu mudasse meu nome para Romualdo, mas com um “w” no lugar do “u”, Romwaldo?
— É para torturar o pessoal do telemarketing?
* * *
É mais fácil governar gente estudada do que gente ignorante.
Quando vão prender um ignorante, ele troca porrada ou tiro com a polícia.
Quando vão prender um bacharel, ele vai em cana resmungando que todos vão se ver com o seu advogado.
Governar é, em 99% dos casos, aplicar todos os sinônimos, alegorias e metáforas de “prender”.
* * *
Na língua dos quicuias, segundo ensina Isak Dinesen, msungu mse quer dizer “velho homem branco”. Ela não diz o que significa cada termo – se msungu quer dizer “velho” ou “homem branco”, por exemplo. Só dá a frase.
Eu tenho um amigo que mora na Europa há mais de década, o Eduardo, e ele me disse uma vez que nós, os que passamos por homens brancos no Brasil, não sabemos da missa a metade a respeito do que é considerado “homem branco” por lá. Para os europeus que se têm por brancos, diz ele, nós somos todos umas azeitonas. Dinesen era branca segundo os critérios de lá; o msungu mse de que ela fala, um dinamarquês apelidado “velho Knudsen”, também. Não eram azeitonas.
Mas eu, ora, eu sou homem e no Brasil sou branco, flertando com o pecado, talvez não distante do crime; e sou velho. Para esses efeitos, msungu mse me define bem.
* * *
Num ensaio que trata do terceiro volume de “O arquipélago Gulag”, se Soljenítsin, editado na gringa no final dos anos 70, George Steiner comenta que o propósito, ou um dos propósitos de Soljenítsin era dar nome a cada um dos vinte e tantos milhões de soviéticos mortos pelo stalinismo. Steiner diz, entretanto, que a mente não abarca os muitos milhões: quando se trata de pessoas, raciocinamos sempre em termos dos próximos, daqueles com quem convivemos, cujo número varia conforme cada um. Quando a cifra bate no astronômico, nosso pensamento recai no “limbo cômodo da abstração”, em que não diferenciamos dez milhões de mortos de cem milhões, e o que nos aterra é a semelhança com a infinidade. Até mesmo a sucessão dos nomes deixa rapidamente de fazer sentido, de evocar alguma coisa – como as listas tediosas do Livro dos Números.
Uma vez li que o camarada que teria inventado o jogo de xadrez o ofereceu a um sultão que quis dar-lhe algo em troca. O cidadão não queria nada, mas o sultão insistiu: disse que pedisse o que quisesse, era tão rico que lhe podia dar qualquer coisa. O cara, então, para punir a soberba do sultão, pediu um grão de trigo para a primeira casa do tabuleiro, dois para a segunda, quatro para a terceira, oito para a quarta, e assim dobrando sucessivamente a quantidade até se chegar à sexagésima quarta casa. Riram, acharam o inventor um merrequeiro; quando foram fazer a conta, porém, viram que a quantidade final de grãos seria suficiente para cobrir todo o território do reino com uma camada de três centímetros de altura. Gente mais inteligente do que eu fez a conta, que é esta: 264-1. O total é 18.446.744.073.709.551.615 (dezoito quintilhões, quatrocentos e quarenta e seis quatrilhões, setecentos e quarenta e quatro trilhões, setenta e três bilhões, setecentos e nove milhões, quinhentos e cinquenta e um mil, seiscentos e quinze grãos, ou seja, cerca de 2.000 vezes a produção mundial anual de trigo pelos números de 2021).
Não, Stálin não matou tanta gente. Não digo que não quisesse, mas não matou. Porém números, números. A gente não tem noção. Sim, eles habitam o limbo cômodo da abstração.
* * *
Já eu e o amigo, nada abstratos, nos despedimos aqui e nos revemos semana que vem.
Excelente newsletter, Orlando!
(banana com café é muito bom, principalmente quando o café está quente e sem açúcar a banana está gelada 😁)
Sr. Orlando, pensava alhures a respeito desse “vocês não estão preparados”, e o sr. bem o registrou. Que vocês? – penso. Eu estou preparado para essas e outras conversas, porém temo que o jovem digital que se dispensa de conversar a respeito do assunto que levantou, bem, temo não estar ele mesmo preparado para o que insinuou conversar. E diz que a culpa é minha? ‘Tamos aí, jovem. Conversemos.