146. Chorume; doméstico; calor; consensos; IA; acordar; o tempo; coletivos; convenções; os pés da História; revisão; frente; Nicolau; silêncio; patinete; bóias-frias; arte; fumigação; cobreiro
Tem hora que eu falo demais.
O chorume da insanidade hoje virou gêiser.
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Theodore John Kaczynski, também conhecido como Unabomber, foi um terrorista doméstico.
O homem explodia vassouras, boicotava a lavagem das panelas, abatia a tiros quem ia pôr roupa no varal, batia na mãe, chutava o cachorro.
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Vemos pela janela um infeliz torrando lá na rua metido num terno preto.
— Aqui no Brasil os men in black iriam derreter. Teria que ser men in white.
— Já imaginou? Bicheiros controlando o fluxo de ETs.
— Que número é o marciano? Que número é o de Vênus?
— Vintão no Beetlejuice.
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A expressão “construção de consensos” me faz pensar num gerente seboso da Casa Suíssa tentando me vender um par de alianças vagabundas.
— Concorda comigo que estas peças são uma beleza? Que o preço é de banana? Que é podre de chique?
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Vejo que puseram um desses, não sei bem como diga, sites ou softwares de inteligência artificial, para emular respostas do Machado de Assis a um entrevistador humano. Ao contrário do que – suponho eu, supomos nós – Machado responderia, a IA deu respostas triviais, até evasivas. Ficou em cima do muro, como diríamos nós, os IN (Inteligências Naturais).
Perguntado, por exemplo, se Capitu traiu Bentinho (eu já deixei claro ao amigo, numa destas newsletters passadas, que traiu, e de montão), o Machado inventado pela IA disse que “então, né, a ideia é deixar a turma na dúvida”. As demais perguntas todas têm respostas assim, na linha “então, rapaz…!”.
O que me faz achar que é melhor esquecer a IA para forjar entrevista de falecido, e deixá-la se concentrar em discurso de vivo, senão de vivaldino.
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Acordar de manhã com pigarro, a voz rouca e também meio presa, como a de quem está empanzinado de ter comido muito feijão, encarar um dos gatos e dizer: “Eu lograrei o meu funesto intento”. E o gato não faz cara de preocupado. “Que será que quer dizer ‘funesto intento’?”, se pergunta ele, lambendo, acrobático, o cangote.
Ou, pegando o mote do gato, se perguntar por que nunca chegou para alguma namoradinha e foi desabotoando a camisa dela devagar enquanto dizia: “Deixa eu ver esses funestos intentinhos”.
Acordar demora.
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Chatos como eu e o finado Fiori Gigliotti vão te amolar, amigo, dizendo que “o tempo passa”, mas permita que eu te dê um exemplo tirado de uma coluna do Ivan Lessa no Pasquim. É do último dos “Diários de Londres”, e data de dezembro de 1981.
Numa entrada datada de 7 de dezembro daquele ano, ele diz: “Há precisamente 40 anos os japoneses atacavam Pearl Harbour”. Uma efeméride que, lamentava ele, tinha passado meio batida. Pois bem: quando escreveu a coluna, ele estava mais perto, no tempo, do ataque do que eu, nós, hoje estamos da publicação da tal coluna.
Que saiu quando eu tinha 14 anos. Minha cara e minhas partes já tinham mais do que meras penugens, meus hormônios já faziam pressão sobre a minha integridade intelectual, e uma futura voz de barítono se fazia adivinhar pelos que manjam dessas paradas. Quer dizer: eu também estava mais perto de Pearl Harbour do que estou dos meus 14 anos.
O tempo passa, pois então: eu já tinha dito?
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O coletivo de ladrões é quadrilha. Bando é o coletivo de malfeitores, que também se agremiam numa choldra. O de tratantes e velhacos é corja; pode-se usar também farândola, cambada e, last not least, súcia. Já o de gente sem muitas qualidades, gente dita muito ordinária, é chusma. Os meros vadios agrupam-se numa matula. Os desordeiros em geral formam ora uma horda, ora u’a malta (gostou do “u’a”?). Um coletivo desses coletivos poderia levar o nome de canalha (esse vem do francês, canaille, ou talvez do italiano, canaglia, que são, creio, coletivos lá nas terras deles também) e o de pandilha.
Tudo isto se aplica àquele partido em que você está pensando, amigo, sim, sim.
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Quando leio “as convenções do gênero” penso em Anhembis lotados de representantes do tal gênero, assistindo a palestras de expoentes do gênero, vendo shows de artistas famosos do gênero, comprando os livros e os discos e os DVDs do gênero, tirando fotos, etc.
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— A História me absolverá.
A História, chacoalhando pra fora dos pés os tamancos de plástico transparente:
— Nem sei quem é esse aí.
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Fiz anúncio aqui das excelências da Livraria do Senado e não há motivo para mudar nem uma palavra, especialmente o elogio aos pdfs gratuitos. Mas eis que ando lendo “A retirada da laguna”, do Visconde de Taunay, e percebo que tem inúmeros erros de revisão. A ver se os demais são assim também.
Aliás, esse é um livro que, aqui na minha desabalizada, na minha desembasada opinião deveria ser dado como leitura nas escolas brasileiras a partir do ginasial. A história é emocionante, contada em primeira pessoa, o português (traduzido do original francês) não é complicado (seria bom atualizar a ortografia, pôr “dois” onde está “dous”, “moita” onde está “mouta”, por exemplo), e os exemplos de abnegação, heroísmo, patriotismo, honra e conduta decente para com o inimigo cairiam bem. Além de mostrar pra molecada que livro sério não é feito só de chororô identitário e pataquada woke.
Fica a dica, ô Nicolau.
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Há também um livro do Rubem Braga com crônicas, melhor seria talvez dizer reportagens líricas, escritas quando cobriu os feitos da Força Expedicionária Brasileira na campanha da Itália, em 1944-45. Se chama, previsivelmente, “Crônicas da guerra na Itália”. Não têm aquela fluidez das crônicas posteriores, dos anos 50 e 60, aquela fluidez que a gente demora um tempo para descobrir que é estilo, mas são calorosas e tristes onde devem ser. Como Taunay, ensinam (a quem quiser aprender) que estar na frente – é português para front – cavando trincheira e levando tiro e granada na cabeça muda muito suas perspectivas acerca da vida, do companheirismo, da lealdade, enfim, dessas coisas cada vez mais fora de moda.
Esse, Nicolau, é de leitura ainda mais fácil. Considere.
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Eu nunca vou chamar um Nicolau de Níkolas. Dane-se o que está escrito no RG dele.
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Os brasileiros, parece, têm medo do silêncio. Onde há um brasileiro ou uma brasileira há um rádio sintonizado, uma tevê ligada, um celular posto no tíque-tóque ou em stories ruidosas de instragrão, ouvindo ou mandando áudios do zap-zap, conversando aos gritos, batucando desassossegado no tampo de uma mesa. Em último caso, o brasileiro começa a falar sozinho. Eu desconfio mesmo que o sucesso crescente do neopentecostalismo no país se deve ao ruído enorme que gera. O brasileiro topa tudo e qualquer coisa, exceto o silêncio. No silêncio o brasileiro acha que morreu. O brasileiro confunde o silêncio com a solidão.
Uma das lembranças mais queridas que eu tenho das minhas estadias curtas no Japão e em Punta del Este é o silêncio. Silêncios diferentes (o brasileiro não sabe, não imagina que um silêncio não é igual a outro). O de Punta era permeado pelo vento do mar e pelo murmúrio de jardins. O do Japão era às vezes denso, já que estive por lá no verão, como o silêncio de uma estação de trem vazia no interior. E também um silêncio que te faz ouvir água correndo em algum lugar que você não sabe bem onde é.
Michael Palin, do Monty Python, criou uma reputação boa fazendo programas de viagens para a TV inglesa. Num deles, esteve no Brasil, e disse na volta que era o país mais barulhento que visitou. Não terá sido um elogio, claro que não, e nem comentário à toa.
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Mas nem tudo vai mal no Brasil. Parece que acabou a mania dos barbudos andando de patinete, né?
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É verdade que o Brasil já teve, entre seus problemas de grande magnitude, de comoção nacional e tal, a questão dos bóias-frias. Parece que hoje está tudo resolvido, não sei bem; só vi que a questão arrefeceu. Aproxima-se entretanto a dos pejotinhas, que são uma espécie de bóias-frias com computador, oclão e vício em ái-fúds.
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Pelo que entendi das últimas estripulias dos discípulos de Greta, não chove no Camboja porque alguém, na Inglaterra do século XIX, pintou um quadro de um senhor de casaca vermelha. Confere? É assim mesmo?
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Passa pela rua a caminhonete fumigadora do aedes aegypti. Parece coisa de tempos de guerra, e talvez seja. O veneno vem com o perfume daquelas balas vagabundas de hortelã. Um dos meus vizinhos de frente, que conheço pela alcunha de “Piauí”, grita, do lado de lá:
— Eles sóhta essa fumaça e os musquito faz o quê? Foge tudo pra dênto de casa!
Assiste-te razão, ô “Piauí”.
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Sete e meia da manhã. Na porta do laboratório está, em pé, uma senhorinha. O porteiro:
— Pois não, senhora?
— Já chegou o cientista?
— Já chegaram alguns. Aqui tem mais de um. Com qual a senhora quer falar?
— Tanto faz. Qualquer um que me benza aqui um cobreiro.
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Se a bóia do amigo esfriou enquanto me lia, peço perdão. Ponha-a de volta ao micro-ondas e almoce bem; enquanto a traquitana não faz plim! anunciando a bóia-quente, vá dando uma lidinha na minha coluna nova para a “Crusoé”.
No mais, bom apetite, e até a semana que vem.
Sinto informar, mas vi ontem mesmo um barbudinho de patinete elétrico.
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