147. Acordar; ministro; amigos; mendigos; gaita; Berlin; Tony Curtis; Totò; Jack Lemmon; outro ministro; datado; 70's; calor 1, 2 e 3; piadas; torcida; colo; vício; soco; outono
Continuo boquirroto. Não tem cura.
Acordar é uma função fisiológica. Ainda mais no Brasil.
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O Brasil não tem Ministro do Interior porque fere a dignidade dos caras andar por aí de chapéu de palha e talinho de capim na boca.
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Filhos de Gandhi, Netos de Nixon, Amigos de Lula.
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Em São Paulo, até os mendigos têm pressa.
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Lembrei aqui de uma gíria para dinheiro que já deve andar rondando o cemitério das gírias: gaita. Meu pai a usava muito, na verdade usava praticamente só essa – nunca o ouvi falar em grana, por exemplo. Mas faz tempo que não ouço alguém dizer que não tem gaita.
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Somente os bárbaros não têm curiosidade em saber de onde vieram, como chegaram a ser o que são, aonde parecem estar indo, se querem ir nessa direção e, se querem, por quê, e, se não, por que não.
Isaiah Berlin, “Uma mensagem para o século XXI”, p. 17.
Se o critério for bom (e eu acho que é), força é reconhecer que há no mundo muito mais bárbaros do que imaginamos.
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Duas notinhas para amar Tony Curtis:
1) Quanto mais quente, melhor (Some like it hot);
2) Jamie Lee Curtis.
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Duas notinhas para amar o Totò (que também era De Curtis, só que de verdade – Tony Curtis era judeu, se chamava Schwartz):
1) seu nome: Príncipe Antonio Griffo Focas Flavio Angelo Ducas Comneno Porfirogenito Gagliardi De Curtis di Bisanzio;
2) sua cara:
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Quatro notinhas para amar o Jack Lemmon:
1) Irma, la douce;
2) Se meu apartamento falasse;
3) Um estranho casal (The odd couple);
4)Quanto mais quente, melhor (Some like it hot).
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Viver no Brasil dos anos 50 seria correr o risco de haver um ministro chamado Coriolano Curió. Ministro, digamos, das Vias Públicas. Cearense, porque Coriolano, só no Ceará.
Hoje qualquer cantora crescida na periferia, qualquer cantor travesti anda por aí em público com as vias mais públicas ainda, e não há ministro que regule a coisa. Vem, Coriolano.
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Lá de vez em quando esse santo descido dos céus que nos rege ou governa (quem rege é outro) nos relembra do problema da fome. Por “lá de vez em quando” entenda o amigo dia sim, outro também. Deixam ele discursar e é batata: lá no meio da arenga surgirá a “questão da fome”. Ele acha que metade do Brasil não faz as três refeições diárias e que é preciso dar um jeito nisso. O problema há de ser árduo, porque ele e a turma dele vêm nos abençoando com amor e lucidez administrativa por dezoito dos últimos vinte e dois anos, e mesmo assim ele segue na peleja, ainda que retórica, para acaber com os famélicos desta terra. Retórica que não saiu dos anos 60/70 – a letra de “Carcará”, os cartuns do Henfil e do Jaguar, as fotografias do Sebastião Salgado.
É para quem tem saudades dos anos 70.
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Os anos 70 para mim eram tardes compridas e solitárias dentro de casa: sol, chão de tacos e a poeira se movendo pelos raios de luz. E muitos dias seguidos de frio em julho/agosto. Carecíamos de algumas coisas, sim, mas comíamos muito bem. Portanto, estávamos de fora da “questão da fome”.
Estávamos de fora de outras questões também: não havia Tosetto (o plural é Tosetti) no Araguaia, nem em algum “aparelho”, nem preso em porão, nem carregando espingarda pro Marighella ou coisa parecida. Atravessamos a década do modo como ainda continuamos: anônimos. Bebendo vinho, comendo pizza, brigando uns com os outros, na toada da tradição.
Ah: um primo meu lia o Pasquim. Mas era por causa das piadas.
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O calor em São Paulo, 1: venho da romaria dominical do mercado-farmácia. No boteco da rua de cima, onde não se sabe o que é Quaresma, Jordão, que tinha suspeita de câncer das tripas, dá a boa notícia – é “beligno”. Olho a cerveja na mão dele e a penitência se intensifica.
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O calor em São Paulo, 2: o concreto da calçada ferve; seu ardor passa pelas solas das minhas Havaianas, esquenta as solas dos meus pés e começa a subir pelas minhas canelas.
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O calor em São Paulo, 3: o gato branco (Abdul, o refugiado) pára em frente ao ventilador e, apaixonado, esfrega nele a cara. Eu também, Abdul, estou que é só amores para com o ventilador. Mesmo assim o trairia, sem pensar duas vezes, com um ar-condicionado.
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Por um tempo, houve lá em casa uma, não digo coleção, mas quantidade razoável de exemplares das Seleções do Reader’s Digest (a digestão do leitor) datados dos anos 60: uns quarenta ou cinquenta. Não sei que fim terão levado; talvez fossem emprestadas a meu pai por algum amigo lá dele.
Todo exemplar tinha uma seção de “piadas de salão”, quer dizer, aquelas piadas que a gente pode contar para a avó porque não tem palavrão nenhum.
(Fico imaginando um salão cheio de avós e eu indo de uma em uma contar uma piada anódina. “Sabe o que é um ponto cor-de-rosa numa viga do teto, vó?” “Non.” A avó é italiana. “Um cupink.” E a véia, nervosa: “Ma che cazzo è un cupink?!” Eu só fazia sucesso com as avós quando não abria a boca.)
Como meu primo de que falei ali em cima, eu só gostava de ler as piadas. Que nem eram muito boas. As da Playboy – meu pai uma vez comprou um lote e liberou para o meu acurado exame, eu moleque de onze ou doze anos; uma das retratadas era a Rossana Ghessa – eram bem melhores. É verdade, os adultos abriam a Playboy para ler as entrevistas, e eu para ler a última página, a que tinha as piadas. Às vezes, por amor do tal exame, eu abria a revista no meio e via, digamos, uma jovem ruiva ou castanha reluzente, olhos claros e cheios de delineador e cílios postiços, colo carregado de sardas, e admitia, quase a contragosto, que sim, vá, aquilo também era legal. Quase tão legal quanto uma piada boa.
Nesse sentido, as Seleções não davam nem para a saída. No sentido do humor. Piada ruim é sem condições.
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O torcedor de futebol, que é em suma um idiota (não me excluo da definição; quando torço, sou idiota também), o é por muitas razões. Dou uma delas: o acaso que ele aceita sem problemas quando Baianinho Paulista torce o tornozelo num buraco do campo é negado ferozmente quando o mesmo buraco engana o zagueiro do time dele e resulta em gol do adversário, ou faz com que o avante do time dele chute mal um pênalti.
Na filosofia do torcedor, “acaso tem limite, meu chapa”.
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Vi por acaso uma foto de Claudia Cardinale sentada no colo do Fellini num cenário de filmagem. Vi a foto e pedi à memória, talvez traidora, talvez arguta, que me dissesse quando foi a última vez que vi mulher sentada em colo de homem, e ela me disse que foi há mais de dez anos.
Me pergunto se faz mesmo tanto tempo assim, e se as mulheres ainda se sentam no colo dos homens – ato que, se nunca é cem por cento inocente, também nem sempre é cem por cento culpado.
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Indo um bocado contras as marolas, Bernanos escreveu (com outras palavras) que o vício e o pecado são clichezados, repetem-se sempre, e uma vida entregue a eles terá sido como uma vida a colecionar papéis de embrulho lindos e caixas vazias.
Por isso é que os santos e as pessoas virtuosas são fascinantes: parecem ser (e são, na verdade) sempre novas, sempre diferentes.
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Regra simples: se você entender o que um intelectual francês moderno disse, bata nele.
Mas não bata no Bernanos: uma porque ele não é moderno, e duas porque ele já morreu.
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Hoje é o equinócio de outono. Ou melhor, foi, às 00:06. Na hora em que esta newsletter chegar aos seus olhos, leitor amigo, estaremos já quase vinte e uma horas outono adentro. Não vai parecer; a temperatura só cai na sexta-feira, depois de amanhã, o que fará do outono paulistano um noivo atrasado, um despachante que perdeu o metrô, um motoboy acidentado. E isto que o nosso outono nem é assim outono que se diga.
Mas o equinócio. Stanislaw Ponte Preta conta a seguinte anedota: nos anos 60, numa das secas do Nordeste, alguém em Brasília, preocupado, pediu a municípios do interior do Ceará que relatassem a situação depois da passagem do equinócio. Um prefeito respondeu o seguinte: “Doutor Equinócio ainda não deu as caras, mas, quando vier, será muito bem recebido”.
Uma razão por que eu talvez gostasse, já não digo morar, mas passar uns tempos na gringa nortenha seria para pegar quatro estações reconhecíveis. Aqui as estações são a do calor horrível com chuvas e a do calor moderado sem chuvas – com uns dias de frio lá pelo meio. Ah, minto: a luz muda um pouco também. São Paulo tem pelo menos isto, luz de outono, que eu reconheço nos entardeceres de maio a junho, que são acompanhados também, quando Deus nos sorri, por uma brisa amena e fresca. É isto. E é pouco, eu sei. Na gringa nortenha, e quem sabe lá embaixo, na Patagônia, haverá folhas vermelhas, vento, a gente talvez precise erguer as golas dos casacos e ir beber coisas quentinhas em lugares simpáticos tipo as lojinhas da Abuela Goye. Sob uma chuvinha civilizada.
Escrevo essas coisas me sentindo quase uma garotinha. Um dia, entretanto – ainda a garotinha de olhos brilhantes – a fortuna me sorrirá e passarei um outono nas Órcades. Ou, vá lá, em Edimburgo, a mediterrânea Edimburgo que seja. Ou na africana Florença (daí não desço mais; quero folhas vermelhas, quero vento frio balançando cabelão de mulher, caramba).
Reze por mim, amigo. Nos vamos semana que vem, sob sol e lua, queira Deus, mais clementes.
Quando fui a Buenos Aires e a Montevidéu, em viagens diferentes, calhou de ser no final de outono. Lembro-me de folhas alaranjadas e árvores peladas. Aliás, Montevidéu, talvez menor que Campinas, é uma cidade muito aprazível. Eu trocaria, se pudesse, cá por lá.
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