148. IA; psicologia; jargões; remedinhos; cuscuz; influencer; sabedoria; descrições; mais descrições, vento e Miyazaki; chuva e Miyazaki; lavapés; olho privado; link
Feliz Páscoa, amigo.
Eu pediria à IA que escrevesse um romance policial a partir de duas listas: uma dos personagens e suas características, outra dos capítulos. Os personagens seriam implausíveis: um homem com asas, uma barata com cabeça de girafa, uma anã cega e, ao mesmo tempo, sinestésica. Os títulos dos capítulos seriam misteriosos: “Alguém não viu nada”; “À esquerda”; “Nenhum dos quatro”. Os números de páginas de cada capítulo poderiam, digamos, obedecer a uma relação numérica complexa dos horóscopos (quem manjar arme o esquema) com os quatro elementos e as variações dos números três, sete e doze; e essa relação teria algum impacto na trama. E a história, dentro das suas circunstâncias, teria que fazer sentido.
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Não sei como podem acreditar que uns bate-papos com um psicólogo entediado (ou aterrorizado) vão fazer com que um adolescente assassino se transforme num homem direito.
Crêem nisso, mas xingam a Igreja, o Papai Noel, a Carochinha.
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Você não receberá senão jargões ou silêncio.
Chesterton, antecipando as discussões nas redes socias.
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No metrô, a velha puxa papo com o rapaz. Ele é educado e doce. Responde tudo direitinho, faz perguntas inteligentes, fala bem da própria família. A velha fica primeiro encantada, e depois abelhuda.
— E o que o senhor faz?
— Aposentado.
— Tão novo!
— Eu tenho uns probleminhas aqui.
E bate com o indicador na têmpora.
— Nossa, nem parece! Que probleminhas?
— Esquizofrenia paranóide.
Silêncio.
— Esfaqueei minha mãe.
A velha arregala os olhos. Ele sorri, põe a mão num joelho dela.
— Não se preocupe, ela sobreviveu. E eu estou medicado. Quando eu não esqueço do remédio, ou quando não deixo de propósito de tomá-lo, não represento perigo nenhum.
Outra pausa. A velha em pânico. Ele:
— É a política antimanicomial. No meu caso, é um sucesso.
O metrô roda. A conversa morre.
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— Por que estão falando tanto e tão mal do cuscuz?
— Não sei.
— É uma comida boa, não é?
— Ô se é.
— Então por que será...?
— Deve ser porque é difícil achar um slogan que o defenda. Imagine: “Deixem nosso cuscuz em paz!”. Ou: “Que saudade do cuscuz da mamãe!”. Vai?
— É, não vai. O que a gente faz?
— Ah, a gente não dá bola, e continua comendo cuscuz.
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Ruídos de vidros se estilhaçando. Lá do 28º andar cai um sujeito que grita:
— Eu sou influêêêêênceeeeeeeer!
Então, dos prédios em volta, dezenas de janelas se quebram e os influenciados vêm atrás.
O barulho na calçada é como o de uma chuva de abacates.
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Uma época juntaram FHC, Mandela, Bill Clinton e mais um aí cujo nome esqueci e botaram na banda o nome The Elders, grandes repositórios de sabedoria. Quem segurava a onda era o Mandela: as pessoas olhavam para ele, imaginavam o Morgan Freeman e diziam:
— Ó, que grande repositório de sabedoria!
O Mandela nem tanto, mas o Morgan Freeman tinha as manhas de dar essa impressão. Todavia, é claro que FHC e Clinton e o outro lá – que, infelizmente, não era o Berlusconi — eram também repositórios, açudes, mananciais de sabedoria. Viviam se cutucando nas inner jokes dos oceanos de salomonice. Mesmo assim, o supergrupo vendeu poucos discos e acabou pouco tempo depois.
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Leitores são tão instáveis e variados quanto ouvintes. Lendo A fazenda africana, vi mais de uma descrição de ambiente, paisagem, que não somente não me entediou, como me fez tentar imaginar a paisagem descrita. Segue um exemplo breve, na esperança de que o amigo não seja dos que bocejam com essas coisas:
Na costa, perto da casa, havia uma sequência de cavernas profundas e grutas esculpidas pelo mar, onde podíamos nos proteger do sol e contemplar os reflexos distantes no mar azul. Quando a maré subia, as cavernas enchiam-se de água até o nível do terreno onde ficava a casa e, na rocha coralina porosa, o mar cantava e suspirava da maneira mais estranha, como se a terra respirasse sob os nossos pés; e as ondas longas invadiam a enseada como um exército furioso.
Talvez eu já tenha visto coisa parecida em mais de um filme, o que me ajudou a idear, dentro da cuca, essas cavernas e esse mar que as invadia. Nova para mim é a imagem da terra que respira e suspira pela rocha porosa; nova e um pouquinho amedrontadora. Tive amigos místicos e supersticiosos de quem essa imagem me fez lembrar, e que acreditariam que as rochas ou o mar estariam lhes contando coisas, lhes dando recados – imaginei as expressões sérias e atentas que poriam em seus rostos e o ar de mágicos ambulantes que adotariam até diante de mim, eu que era íntimo e a quem não tentariam vender nada além de suas sensibilidades exemplares, e suas evasivas delicadas quanto eu lhes perguntasse: mas qual era a mensagem afinal? Porque a verdade é que eles também não saberiam.
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Disse que os leitores são variados porque há muitos que se entediam com descrições de ambientes, e eu mesmo sou assim quando elas são longas demais ou quando fica evidente que estão lá para encher lingüiça. Mas as bem-feitas, está visto, me tocam. E evocam não só a lembrança de amigos queridos que numa coisa ou noutra eram picaretas; não, me lembram também lugares, instantes.
Por muitos anos meu caminho do trabalho de volta para casa, no Brás, era pela Rangel Pestana e pelo viaduto 25 de Março, que liga as duas partes da Avenida sobre o Parque Dom Pedro II, parque que é a divisa desse bairro com o Centro. Geralmente eu fazia esse trajeto de ônibus, mas em mais de uma ocasião, fosse por aborrecido, fosse por apaixonado, fosse porque a temperatura convidava (menos de 23°), eu ia a pé pela Rangel e, pois, por esse viaduto.
Ora, na chegada ao Brás, quando o viaduto já está quase na altura da Avenida, mesmo na esquina da Rua da Figueira e no pequeno largo que há ali, havia e graças a Deus há ainda um arvoredo, que se estende pelo outro lado do viaduto, já na própria avenida. Nessas noites de aborrecimento, amor ou tempo ameno, quando eu passava por ali, geralmente havia vento, e as copas dessas árvores, umas dez ou doze, chacoalhavam. Em mais de uma vez o barulho das copas grandes era tão alto que, se eu estivesse conversando com alguém além de mim mesmo, teria que parar e esperar a agitação passar. E, de um modo curioso, às vezes as copas devolviam esse vento para baixo: eu passava ao lado delas e recebia, além do barulho, as lufadas atenuadas que elas desviavam para baixo. Como o tempo ameno era o do outono, esse outono tímido de São Paulo, o aroma era o de folhas velhas ou da clorofila doce dos talos recém-rompidos.
Se as árvores queriam me dizer alguma coisa, nunca percebi, tampouco compreendi. Ao contrário dos meus amigos, nunca fui místico, nunca tive dons. Mas também nunca saí da companhia das árvores mais triste do que entrei. Baste isso.
Lembro sempre desse lugar, desse ruído e desses ventos quando assisto Meu vizinho Totoro, de Miyazaki, e vejo o bichão levando as meninas para o topo de uma canforeira gigante e o barulhão do vento. Essa é uma das razões porque gosto tanto desse desenho animado, e da música que toca nessa hora, Kaze no toori michi, “O caminho do vento”. Que o amigo pode ouvir aqui, com seu compositor, Joe Hisaishi, no piano, e Hiroshi Kondo no violoncelo:
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Ainda o Miyazaki: na sexta-feira o outono deu as caras com chuva. Esperando a chuva passar sob um toldo na rua, vi que os vãos entre as lajotinhas da calçada formavam canais pequenos por onde a água escorria. Acompanhei uma bolha que ia correndo por eles como se por um labirinto, formando letras “L” enquanto ia de um lado para o outro. Percebi que podia estar num dos desenhos dele. Fiquei feliz de perceber, nessa bobagenzinha, mais que um indício, uma prova de que eu e ele – mais ele – temos almas, e que dá para viver um segundo que não seja feito só de ferocidade.
Mas eu nunca fui muito feroz. Eu sou mansinho, sou da água de coco e dos óculos escuros.
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Com doze anos de retornado à Igreja, ainda não fui a uma missa de lavapés. Confesso aqui um medo irracional: o de que um padre ou bispo eleja meus artelhos para a bacia. Não sei por que, non sum dignus à parte, tenho esse receio, mas a ideia me deixa acanhado, mais, até aflito.
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Elizabeth II era chamada de “Brenda” e Charles III de “Brian”. O Príncipe Philip, Duque de Edimburgo, era o “Keith”. A princesa Margaret era “Yvonne” e a Princesa Diana era “Cheryl” – sátira que mostrava os assuntos da família real como coisa de novela.
Do artigo (em inglês) da Wikipedia que trata das piadas recorrentes da revista Private Eye. Que você deve tentar espiar, amigo, sempre que puder. É muito bom.
Por aqui, é como se o Layla se chamasse Agamenon, a Jonja se chamasse Clitemnestra, e a Gleide, Electra.
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Mas antes que o vento te leve, amigo, leia a minha coluna nova na “Crusoé”, que apresenta ao mundo a Velhinha de Birigüi. Leia e coma lá seus ovinhos de páscoa, leitor amigo, e não se esqueça: surrexit, non est ibi. Leia, coma seus ovinhos, rejubile e me encontre de novo aqui na semana que vem.
Feliz Páscoa.