149. Sacerdócio; metrô; fast food; expressões; bonecão; perdão; tudo quatro; muçarela; Alberto Mussa; real men; Ernesto; poema; título; Adoniran Barbosa
E Muddy Waters
Diz que trata sua profissão “como um sacerdócio”: só admiro se for lixeiro.
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As três mulheres entram correndo no metrô. Nenhuma delas já passou dos trinta. A mais moça das três, vinte e pouquinhos, se atira no banco azul-claro, o reservado. Ora, eu não sou tão velho que tenha direito a ele, nem tão estropiado que tenha necessidade dele, de modo que não tem nada de mais eu ficar em pé diante delas, portanto fico; mesmo assim, elas, vendo meus bigodes e barba grisalhos, querendo viajar juntas mas achando que talvez me furtassem um direito, improvisam na hora a farsa de que aquela mais moça está grávida. Improvisam para quem? Não para si mesmas; para mim, talvez, ainda que eu duvide de que se importem tanto assim comigo, ou talvez para outros que vão em pé e, vendo meus cinzas, também achem que o banco devia ser meu. O improviso é hábil e elaborado a ponto de saberem o sexo da criança e o nome que terá: Mateus (talvez venha de uma conversa de refeitório: “se um dia eu tiver um menino, vai se chamar Mateus”. Uma delas depois se confunde e diz Miguel). A mocinha tenta esconder a ausência de barriga pondo a mochila no colo, mas faz isso rindo, como parte da pantomima, importando-se muito pouco com o que eu perceba ou pense. Ficam alegres com o auto, e até mais do que alegres: há mesmo uma pontinha de felicidade.
São colegas de trabalho e, por causa da alegria que lhes vem da dramaturgia, ou por causa do padrão corrente de civilidade do Brasil, vão conversando quase aos berros. A que está mais perto de mim aumenta sua diversão gesticulando muito e me cutucando os joelhos de vez em quando. O assunto delas: as virtudes e excelências das redes de fast food.
Uma elogia muito a salada do Habib’s; outra ama o creme de milho do KFC; a não-grávida fala muito bem do Ragazzo, e acrescenta que uma de suas irmãs trabalhou lá. Todas gostam de maionese, de batata frita atolada em cheddar com flocos de bacon, e de cebola roxa. E são habituês dos Shoppings Itaquera e Aricanduva.
Quando o assunto delas muda para xampu anti-frizz e chapinhas, abre lugar do outro lado do vagão. Me sento e lá consigo me isolar com Karen Blixen e sua fazenda africana (em matéria de fast food, tudo o que a baronesa tolerava eram as omeletes). Não sei se elas se desapontaram de ver que me sentei, afinal, ou se, àquela altura, eu já tinha sumido das suas lembranças.
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Não pense porém o amigo que eu desprezo a fast food. Não desprezo, não. Como sem problemas em McDonald’s, Gendai, Burger King, até – mas aí depende do dia, da fome e do horário – no Pizza Hut. Como e até gosto. É só que é raro que seja assunto de conversa.
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Expressões que não entendo: fazer de um tudo. Sempre usei sem esse artigo: fazer de tudo. De onde tiraram esse “um”? Se ainda houvesse vírgula, daria para entender, ainda que o sentido fosse bem diferente.
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Outra: dó ser masculino. Me deu um dó. Sempre disse e escrevi no feminino, uma dó, a maior dó. Mas essa forma masculina está no dicionário, e eu portanto é que estou errado.
E errado continuarei, rebeldezinho que sou.
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Eu sou o bonecão de posto do Jack.
Tyler Durden.
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Em vez das bobagens que falam, os ateus podiam atacar o conceito de vida eterna, mostrando que ela está ao alcance do Layla e do Dircinha, bastando que se arrependam. Fariam estragos imensos na fé alheia.
Mas a verdade é que, se são ateus, hão de gostar do Layla e do Dircinha, democratas laicos.
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Um argumento poderoso em favor do terraplanismo: os quatro cantos do mundo, de onde vêm os quatro ventos, os quatro queijos principais (mussarela, prato, parmesão, Minas), os quatro times grandes de São Paulo, os quatro pré-socráticos mais famosos, os quatro cavaleiros do Apocalipse, os quatro Beatles, os quatro elementos, os Quatro Fantásticos, etc.
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O corretor do navegador me manda escrever muçarela. Tá louco, corretor. Vou ao dicionário, ao Uáis, e também grafa muçarela. Tá louco, Uáis. Se os dois “zz” de mozzarella viram “ç”, pizza ficaria como? Tomem vergonha. Muçarela o caço.
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Ando lendo “O movimento pendular”, livro muito interessante e bem escrito de Alberto Mussa, que é uma espécie de teorema em prosa acerca dos triângulos amorosos, e, pois, do adultério. O livro se divide em sequências que demonstram postulados; cada sequência contém um certo número de histórias cujas tramas, todas envolvendo triângulos amorosos, e personagens funcionam como a demonstração pretendida. No dizer do autor, todas as histórias, exceto uma, são reais – mas isso talvez não seja bem verdade. As comprovações dos teoremas às vezes as relacionam a alguma literatura conhecida (como, por exemplo, na comprovação denominada “A trilogia homérica”). Há matemática envolvida, da qual não digo nada, porque de nada manjo. Não é matemática incompreensível, mas não espere nenhuma boa vontade minha de descrevê-la, amigo: a matemática e eu não nos amamos. Saiba apenas que há geometria, conjuntos e letras gregas.
Em todo caso, um teorema do adultério teria que ser escrito por um latino – tanto faz se brasileiro, italiano, francês, argentino. Bem, talvez um francês fosse mais adequado. Mas latino sempre.
Me espanto de que um livro de escritor brasileiro que seja bom, bem escrito, livre da patacoada woke e do besteirol de “dar voz a oprimidos” que têm cada vez mais voz e são a cada dia menos oprimidos tenha saído por uma casa grande como a Record. Mas vejo que foi em 2006.
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“No airbags. We die like real men.”
“No parachutes. We splat like real men.”
“No medicines. We heal like real men.”
E por aí vão os real men.
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As aventuras de Ernesto, o assassinado em série.
Assim como há assassinos em série, que matam muita gente já por loucura, já por farra, pensei que seria justo e certo que houvesse também assassinados em série: pessoas que são assassinadas muitas vezes pela loucura ou pela farra alheia, e cuja existência, de quebra, fornece uma prova para as teorias da reencarnação.
Assim, temos aí o Ernesto, que foi assassinado muitas e muitas vezes. Ernesto era o nome dele da última vez que foi assassinado (Nova Iguaçu, sexta-feira à noite; o assassino era o cara do Uber que ele chamou para o levar a um bar e que o confundiu com um inimigo da sua facção.) Na primeira vez em que foi assassinado, ou seja, em sua primeira encarnação, ele recebeu o nome de “Filho do Mato” na língua Neanderthal – pois ele era o último dos homens de Neanderthal. Ele não tinha ideia disso, e, quando morreu, quem o matou tampouco sabia que acabava de extinguir os homens de Neanderthal.
Filho do Mato, o futuro Ernesto, morava numa caverna perto de uma tribo de Homens Sapiens-Sapiens, os mais sapiens dos homens. Ele não gostava deles, eles não gostavam dele. Ele os achava minúsculos e curiosamente pelados, portanto nojentos; eles o achavam grande, burro, peludo e fedido, portanto nojento. Todos tinham razão, mas há guerras que começam justamente assim, porque todos têm razão.
A guerra não durou muito, porque Filho do Mato, Neanderthal que era, era bem mais burrinho do que os Sapiens-Sapiens. Caiu numa armadilha tola, e teve seu pescoço cortado por um Sapiens-Sapiens que tinha sobre a cabeça a carcaça de um papagaio e gritava, numa língua que ele não entendia: “Será que depois de morto ele fede menos?”.
Tudo lhe pareceu muito injusto, o que foi – a noção de injustiça – o primeiro pensamento abstrato a brotar na cabeça de um Neanderthal. Pena que foi também o último; tivesse ele vivido e arranjado mulher, a espécie talvez alcançasse a filosofia.
Ao longo dos milênios, e já promovido à condição sapiens, Ernesto foi ganhando muitos nomes e sendo morto de muitos modos. No inevitável Egito, foi morto por um maníaco que rolou sobre ele uma pedra de pirâmide. Na inescapável Roma, um cartaginês fez seu elefante pisar nele. No óbvio Ganges, as mãos de um guru usaram seu corpo para demonstrar que ninguém vive com as artérias abertas. Na inesperada Terra do Fogo, aliviou a fome da tribo. Nos tempos da invasão holandesa, um pelotão de portugueses e índios o surpreendeu em momento indefeso no meio do mato. Na Revolução Francesa, um açougueiro enciumado o delatou, a ele, pedreiro, como aristocrata disfarçado. Em Ypres (como soldado francês ainda; a França gruda na gente) foi dos primeiros a provar a novidade da hora, o gás mostarda. Na penúltima vez, na Guiana, caiu no papo de um outro guru. E aí veio Nova Iguaçu.
Podemos imaginar suas mortes futuras: hospedeiro de alien, imolado por algum HAL 9000, derretido numa explosão solar, eutanasiado à força, etc., etc.
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Em Cuba planta-se cana;
no Brasil, banana.
Cá em casa, Baiana,
eu planto é a mão no teu focinho.
Dos “Poemas reunidos” de Equinócio Pindahyba, edição do autor, 1949. Não o imiteis, amigo, nem nos versos, nem nas disposições.
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Sou, como já disse várias vezes, barnabé: funcionário público de baixo escalão. Ora, o Estado é um colosso semiadormecido ou semidesperto, conforme a ocasião. Como aqueles gordos monstruosos dos programas de televisão, não tem noção precisa do próprio tamanho: as ferramentas de controle, ou de autocontrole, têm sido sempre insuficientes para lhe permitir saber a largura da bunda, a fundura do umbigo ou quantas curvas há na sua papada. Ou tinham sido: ultimamente o Estado encontrou um jeito novo de se auto-mensurar, um sistema informatizado qualquer que faz ou fará o inventário de todos os seus bens, quer humanos, quer outros. Para que esse sistema funcione, temos que nos cadastrar; para nos cadastrar, temos que provar ao sistema que estamos vivos (não vá alguém cadastrar meu cadáver); para provar que estamos vivos, temos que nos fotografar; para que a fotografia seja aceita e reconhecida como prova de vida, deve ser conferida com outra, federal, eleitoral. Uma coisa levando à outra, e todas levando a eu estar com a vida toda ao alcance de dois cliques de mouse de qualquer membro da Não Tão Antiga, Não Propriamente Venerável e Nem Lá Muito Bem Aceita Grande Ordem Xandônica, tive que atualizar meu cadastro eleitoral.
Miraculosamente bem recebido no cartório eleitoral, fui sendo relembrado da minha vida em 1986, ano em que troquei o título velho, parecido com uma carteira de vacinação, pelo então novo.
— Aqui diz que o senhor é auxiliar de escritório.
— Eu era mesmo. Mas só tive dois empregos depois desse, acredita?
— Acredito. Segundo grau incompleto?
— Demos uma melhorada nisso aí também.
Ele ri.
— O CPF 000.000.00Y-00 é o seu?
— Ih, não. Deve ser o do meu pai. Eu tirei o CPF depois do título, naquele tempo a gente podia usar o do pai no cadastro. Dá pra trocar?
— Pra já. Endereço: Rua Tenente Caxias, 801.
— Não é mais esse desde 1991.
— Qual é o novo?
Dou o novíssimo, do apartamento para onde ainda vou me mudar. Muda meu local de votação: não será mais minha escola de juventude. Damos de ombros. Ele tira a minha foto.
— Demora mais ou menos três dias pra subir pro sistema. Daí o senhor faz a prova de vida de novo, tá ok?
Tá ok.
O cartório é na Brigadeiro. Saio tão imerso da vida de 1986 que penso em pegar um ônibus pro Brás e telefonar de um orelhão para a minha namorada, e me pego pensando no que a minha mãe terá feito pro almoço. Mas fui ao cartório com três colegas: eles me chamam e, ao som de suas vozes, 1986 volta para onde quer que tenha ido parar, e com ele vai aquele meu outro eu – almoçar, telefonar para a namorada, pegar o ônibus pro Brás, sei lá.
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Fui ao cinema ver um filme nacional, “Saudosa maloca”. Pois é: um filme nacional. Eu achava que era uma cinebiografia do Adoniran Barbosa, mas não é: é uma obra de ficção que pega as letras de alguns de seus sambas mais famosos – precisamente o “Saudosa maloca”, mas também o “Samba do Arnesto”, o “Trem das 11”, “Iracema” mais pedacinhos de outros (“Torresmo à milanesa”) – para criar com elas uma história meio sem pé nem cabeça envolvendo Adoniran, Mato Grosso e Joca, os três maloqueiros da letra. Eu disse que é meio sem pé nem cabeça, e já por aí o amigo tira que a película não é grande coisa: Adoniran, Mato Grosso e Joca moram numa maloca, um “palacete assobradado” (que 90% dos brasileiros de hoje em dia entenderão como “barraco seco mal assombrado”), e vivem de samba e expedientes. Iracema é funcionária do boteco onde fazem suas libações; o dono do bar é da patota; a maloca é vendida para um magnata do ramo imobiliário que vive querendo ser da turma e é rejeitado porque, convenhamos, rico é tudo mau; e levam a vida de lá pra cá, de cá pra lá. Alternam-se flashes do futuro: o mesmo bar, o mesmo Adoniran, um garçom novo que também é violonista, a mesma falta de sentido e de um lugar para onde a história vá. Mas nem tudo é ruim: a dupla Mato Grosso e Joca é boa, e entre eles acontecem os únicos diálogos críveis da fita; o magnata malvadão do ramo imobiliário não é tão mau – decerto por acidente do roteiro, acaba ajudando de verdade a Iracema; e o dono do bar também convence. São todos esses bons atores, com boas performances. Já Paulo Miklos, o Adoniran, entrega uma espécie de Nair Belo de bigodes. O garçom que é também o homem do violão de sete cordas – o digno homem do povo, o favelado de telejornal – também é de vento, no texto e na interpretação. A São Paulo do que parecem ser os anos 50 não confere muito com os fiapos de lembrança que me chegaram pelos mais velhos – o sotaque, principalmente. E é claro que o sotaque italiano é italiano da Globo. Há muitos diálogos batatosos, recitados meio batatosamente. Mas há coisas que batem com a minha lembrança do ambiente da pobreza digna, dos paulistanos remediados. Especialmente o bar onde a maior parte da ação corre: se o amigo já esteve num daqueles, será capaz de quase sentir o cheiro de cerveja azeda, ovo cozido e fritura de peixe grudado em praticamente tudo. E os caixilhos velhos de janela, os pisos antigos das casas, os azulejos minúsculos em meia parede dos banheiros: a matéria de um mundo meio triste que vai substituindo suas tristezas por outras, mais modernas.
Não gostei, não reverei, não recomendo. Mas alguma coisa daquela melancolia das coisas velhas ficou em mim. Meu finado (“finado” é jeito de falar daqueles tempos e lugares) amigo William do Carmo, que nasceu e cresceu naquelas malocas, também não gostaria do filme, mas sairia dele, creio eu, com a mesma tristeza difícil de traduzir em palavras. Dependendo de onde você for, São Paulo pode ser uma das cidades mais tristes do mundo.
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Sabe quem Adoniran Barbosa parecia? O Muddy Waters. Não vou me estender sobre isso.
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No mais, amigo, até mais. Se você perder o trem, tem uber, o que nos deixa com mais recursos do que o Adoniran, mas decerto com menos graça. E até semana que vem.
Muito obrigado, Orlando!