150. Ciência; ameaças; Kethleyn; máscaras; variação; Ziraldo; Congresso; filme; TV Justiça, a loba; Watchmen; cantores; tese; Orwell; detetives judeus; Bizz; feérico luar
Imagine que daqui a quarenta anos vai ter um monte de molequinho abraçando e beijando a vó Kethleyn.
Um cientista social é alguém que acha que esse negócio de 2 + 2 = 4 é muita falta de imaginação.
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Fico sabendo, pelos portais e canais de TV cuja independência jornalística nunca falha no socorro às necessidades da esquerda moderada, que Elon Musk, o maligno bilionário sul-africano, ameaçou (de quê? de quê?) as nossas pobres e quase indefesas autoridades públicas.
Bad, bad Elon.
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A República francesa se chama Marianne.
A nossa, não sei, mas, se tiver que adivinhar, voto em Dannyehlly Aparecida ou Kethleyn.
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Diário da peste, 8 de abril de 2020.
Vita brevis, pestis longa.
Subindo as escadas do metrô, vi um picareta vendendo máscaras feitas com o que parecia ser toalha de mesa ou fronha de travesseiro.
— Só tem quatro, madame – dizia ele à madame que comprava uma por módicos cinco reais, deixando, portanto, apenas três nas mãos do entrepreneur.
P. T. Barnum, mofai de nós.
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Entre o virtue signalling (“o importante é salvar vidas”) e a redação escolar (“o importante é salvar vidas”), ficamos com o tom do debate nas redes sociais (“o importante é salvar vidas”).
Se você disser, entretanto, que o importante é promover a maior matança, sambar no sangue e valsar em tripas, ninguém vai acreditar que você só quer variar um pouco a conversa.
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Tenho procurado nesta redezona de meu Deus, e claro que não tenho encontrado, um cartum do Ziraldo que mostra um banhista só de calção, em pé sobre um mar de bundas e peitos de mulher, gritando, de braços abertos:
— Simone de Beauvoir, Simone de Beauvoir, se não fosse por toá, o que seria de moá?
Outros o acharão genial por outras coisas. É assim mesmo.
Legal também, e esse, claro, é bem mais fácil de achar, é aquele do Tarzã pendurado num cipó e berrando de dor porque a Jane vai pendurada naquilo que o pessoal do Capão Redondo chama de seu “membro viril”.
Na rubrica do “não sejamos ingênuos”, essa chatice, cabe lembrar que Ziraldo em pessoa era – segundo seus contemporâneos, alguns do próprio Pasquim – menos tratável, menos gostável e menos confiável do que será, do que já é, como Grande Vulto. Mas deixa isso pra lá, que ele não vai mais frequentar a casa de ninguém.
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E quando vêm os meses das monções e lhes dão as febres desses tempos, que os prostram e os deixam lânguidos e sem forças, de tal sorte que até o vadiar se lhes torna penoso, mandam suas mulheres aos matos e lá elas colhem uma planta pequena e a modo de uma esfera, que tem a dita planta a cor verde e é cheia de uns aguilhões à maneira duma maça, que mal algum porém fazem os ditos aguilhões porque são moles e se dobram contra a carne quando se os aperta, a menos que se os atirem com força às vistas ou às ventas, quando então ferem e se tornam daninhos; e é essa planta como igual não há em nossa terra, a que chamam mamona, que amassam, e enquanto assim fazem lhe cantam por cima palavras de bruxarias na língua da terra, e é essa bruxaria que, na sua crença, lhe dará o efeito e o dom que querem que tenha; e nessa massa deitam água e aguardente de mandioca e fazem assim uma beberagem amaríssima; e isto tomam sem que suas entranhas e fígados se revoltem, porque essa aguardente de mandioca as mulheres a fazem mascando a raiz e deitam a massa assim mascada com seus cuspes numa cuia em que fermenta por muitos dias, e é assim que se torna embriagadora como o vinho o é para nós, e crêem que é por causa dos cuspes das mulheres que lhes vai bem; e têm o costume de beber a aguardente em suas festas e nos banquetes que fazem das carnes de seus inimigos, e é sabido que com ela se embebedam e assim praticam toda sorte de obscenidades, agindo desavergonhadamente sem ver a quem, se homem, se mulher, se filho ou filha ou animal de criação; e praticando entre si brutalidades dignas de bestas-feras, de tal sorte que seus festejos sempre terminam com muitos mortos e feridos; e depois que bebem a dita aguardente de mistura com a mamona amassada e rezada de bruxarias as febres se lhes saram ou amenizam em poucos dias, e assim é que, desse modo restabelecidos, retornam depressa à vida de vadios que tinham antes.
Um padre anônimo descreve as instituições brasileiras, c. 1570.
Adendo: hoje como então, as instituições funcionam normalmente.
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Uma vez eu e o Kovács fomos ver um filme de Manoel de Oliveira, a saber, “Um filme falado”, que tinha a então lindíssima Leonor Silveira como estrela.
Nesse filme, a bela Leonor e sua filha fazem um cruzeiro num navio que vai do Egito a não sei onde, navio que é uma alegoria da civilização ocidental – alegoria atéia –, em que Portugal, e por extensão a língua portuguesa, tem um papel mínimo e um final melancólico. O navio é evacuado porque terroristas árabes esconderam nele uma bomba, mas Leonor e a filhota ficam para trás, atrasadas para pegar o último escaler. Moral da alegoria: no colapso do ocidente, Portugal vai pro saco primeiro.
Tirante Leonor, cuja beleza iluminava tudo, o filme é chato que dói, apesar do elenco estrelado: John Malkovich, Catherine Deneuve, Irene Papas e um Davi Cardoso que infelizmente não é, que me lembre, o nosso glorioso galã de chanchadas. O final – mãe e filha explodidas com o navio – nos fez sair do cinema rindo muito, porque somos uns inconvenientes e uns insensíveis, e, para cúmulo, uns cínicos. E só nós ríamos; havia na saída gente com lágrimas nos olhos, que nos encarava como se fôssemos doidos.
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Eu sei que existe uma “TV Justiça”, como sei também que existem o Nepal, o nióbio e o acelerador de partículas. E que adianta, não é?
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Semana passada andei sendo incomodado nessas redes sociais aí por um monte de menções a uma tal de “loba”. Ora, sempre achei que “loba” fosse uma dessas expressões de intenção elogiosa para designar a mulher perto dos 50, pouquinho mais, pouquinho menos, que anda por aí mais maquiada do que vestida, perturbando rapazes em bares à noite. Mas essa “loba” aí, parece (não quero saber), é outra, é outra coisa. Que vá uivar para lá.
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Quando saiu aqui pela primeira vez, no comecinho dos anos 90, o gibi Watchmen já era conhecido e comentado por quem gostava do assunto. Eu me lembro de ter folheado, uns anos antes, o último número dele, perdido numa das prateleiras da saudosa livraria “Muito prazer”, que vendia gibis raros e importados ali na São João, perto da Ipiranga. Eram páginas e mais páginas mostrando sangue e gente morta. Quando contei isso aos meus amigos fanáticos por gibi – os finados William e Zé Roberto – o comentário deles foi um previsível “caralho!”. Quando o gibi começou a sair por aqui, em 6 partes (no original eram 12; aqui saíam duas por vez), corri a comprar e a ler o mais depressa possível.
Nós tínhamos uma paixão toda especial pelo roteirista, o Alan Moore, por causa de Miracleman e d’O Monstro do Pântano, que era mesmo um gibi de terror excepcional, escrito com uma imaginação bem doida. Há algum tempo, entretanto, comprei a reedição de todas as histórias que ele escreveu e que Stephen Bissette desenhou; relendo-as, vi que boa parte do besteirol woke estava ali bem antecipado. Nos anos 80, entretanto, tudo aquilo parecia novo, diferente, até justo.
Pois bem: Watchmen abre com o assassinato, por mãos misteriosas, do Comediante, herói complicadinho que fez parte de um grupo de heróis também complicadinhos lá pelos anos 40. Postos na clandestinidade, esses heróis se viravam como podiam, e o jeito do Comediante se virar foi trabalhar pro governo de forma não muito velada nem muito bacana: por exemplo, ajudando na guerra do Vietnã. Junto com ele estava um certo Dr. Manhattan, criatura com poderes atômicos semidivinos, poderes cuja extensão nem ele conhecia bem.
Vem um flashback: quando os americanos vão se retirar do Vietnã, uma vietnamita grávida vem atrás do Comediante e o põe contra a parede: como é que é, olha aqui teu filho na minha barriga, não acredito que você vai me largar aqui, dá teus pulo, me leva contigo, amor, ah, então é assim, seu vagabundo, me aguarde, etc. O Comediante, já disse, era complicadinho, e encerra a DR metendo bala na mulher e a matando. Com ele não tinha comédia na fita. Chamado às falas pelo Dr. Manhattan, taca no peito dele a responsabilidade pelo que fez:
— Você aí, ó, que tinha o poder de me deter, viu e não fez nada. Qual é a sua?
Saquei que o Comediante era da ATEA. E do tipo que taca a responsabilidade pelo que faz nas costas de quem está por cima dele na ordem das coisas. O Comediante parecia um cara durão do passado, mas seu coração era tão woke quanto o da mocinha que começa a gritar whyyyyyyyyyy?!?! quando descobre que o Trump ganhou a eleição.
E Alan Moore, de quem gostávamos tanto, era ao mesmo tempo um picareta, fautor, anunciador e profeta das baboseiras que hoje são a norma.
Nunca mais gostei dele do mesmo tanto.
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O problema com os cantores sertanejos é que eles cantam.
Se laçassem umas vacas, talvez eu os visse e ouvisse.
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Estudos afirmam que, em tese, que é possível acontecer praticamente qualquer coisa a quase qualquer um.
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É possível que a literatura de uma sociedade totalitária venha a ser produzida de forma parecida [à de uma linha de montagem] (...) Os livros seriam planejados em suas linhas gerais por burocratas e passariam por tantas mãos que, quando terminados, seriam um produto tão individual quanto um carro da Ford no fim da linha de montagem. (...) Quanto à literatura sobrevivente do passado, seria suprimida ou, ao menos, cuidadosamente reescrita. (...) Você pode escrever ou imprimir quase tudo, desde que esteja disposto a fazê-lo de maneira meio clandestina. Mas o sinistro é que os inimigos conscientes da liberdade são aqueles para quem a liberdade deveria significar o máximo. O grande público não se importa com isso. Ele não é a favor de se perseguir o herege, mas não vai se empenhar em defendê-lo. Ele é, ao mesmo tempo, sensato demais e burro demais para assumir uma perspectiva totalitária. O ataque direto, consciente, da decência intelectual vem dos próprios intelectuais.
George Orwell, “A prevenção contra a literatura”. Em: “Como morrem os pobres e outros ensaios”, pp. 217/218.
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Peguei para ler a “Associação judaica de polícia” (The yiddish policemen's union), de Michael Chabon, e lembrei de que o comprei há tempos num sebo junto com alguns livros de Harry Kemelman e seu rabino que segunda-feira fazia isto, terça-feira aquilo, etc. Comprei num sebo, eu dizia, esses judeus detetives todos, e o vendedor ficou me olhando admirado, talvez especulando se eu era judeu também, ou detetive, ou detetive judeu, enfim.
Bem, há uma lenda ou, melhor dizendo, piada familiar segundo a qual somos vagamente semitas. É que um documento apócrifo, ainda que imponente, diz que o primeiro Tosetto de que se tem notícia era um certo Abramo, Abraão. Além disso, meu avô se chamava Samuel Erasmo. Dessas duas circunstâncias desconectadas e fortuitas inventamos, eu e meu irmão, uma linhagem, senão um pedigree, judaico. Contei isto a um amigo do meu irmão que era ou dizia ser palestino; ele sorriu, se fez de mais amigo ainda, e depois nunca mais voltou à nossa casa.
Os livros? Todos bons, os do Kemelman melhores que o do Chabon.
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Nos anos 80 chamávamos a gravadora WEA de “Véia”. Era pura birra: o catálogo deles era bacana, tinha, entre outras coisas, o Van Halen, e representava a Elektra, que era a gravadora dos Doors. Lá por 86, 87, os Doors estavam com cartaz, porque a Bizz os citava, os trombeteava, como a banda mais influente dos anos 60, junto com o Velvet Underground. Besteira, mas colava. E por essa época, e por essa razão, a WEA relançou por aqui “Morrison Hotel”, disco dos Doors.
A Bizz causou uma desgraça no modo de se resenhar (eles diriam “criticar”) discos de música pop-rock no Brasil. Até hoje os cacoetes desgraçados dos resenhistas (eles diriam “críticos”) da revista estão por aí. Ora, um dos estafermos daquele staff pegou “Morrison Hotel” para resenhar e lascou o seguinte: “mesmo esse disco estando acima de 99% dos discos de pop-rock de todos os tempos, isso não justifica um relançamento”.
Eu tinha uns 19 ou 20 anos e lembro de ter relido a frase duas ou três vezes, não acreditando naquela imbecilidade tão fulgurante, quase digna de um museu: se fazer parte do 1% bom não justifica um relançamento, o que justificaria? Estar no 0,5% muito bom? Nos 0,25% excelentes? No 0,01% excepcional? (note que estou deixando pra lá a petulância quase inacreditável do sujeito de se meter a saber melhor do que a gravadora o que ela deveria ou não lançar: só estou abismado com o argumento).
Falei de como percebi que o Alan Moore já dava sinais do apodrecimento mental que seria a marca do futuro dele e do nosso presente. Bem, o resenhista (ele diria “crítico”) da Bizz anunciava, na resenha (“crítica”) musical, todo o padrão de raciocínio que culminaria nas análises das mesas redondas de futebol.
E tudo ainda nos anos 80.
Não teve golden age não, amigo. O que havia é que faltava a internet. Faltava para onde a gente fugir.
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Estão fazendo de tudo para impedir, mas não conseguirão, não passarão, não deterão o Feérico Luar no Copacabana Palace:
E até semana que vem, se houver semana que vem.
Sua citação ao filme com final explosivo me lembrou um que vi, norueguês, outro dia na Netflix. A origem incomum para nós me despertou a curiosidade. Mas era inteiro ridículo, com final pior, de tal modo que terminei gargalhando. Porém, filme para adolescente, nada trágico.