151. Godard; doutores da melancolia; filioque; mundinho e mundão; serviço; gentileza; bairro; Auden; fumar; liberalismo; fascismo; porcentagem; graça & charme; brasilcentrismo
Graça & charme não é uma dancinha de salão. Ou não é só uma dancinha de salão.
Comparado a um bom filme de kung-fu, Godard é uma fraude intelectual.
Werner Herzog, que só por essa ficou 33,3% menos chato.
* * *
Imagino que os hospitais do Canadá e da Holanda tenham uma espécie de inverso ou negativo dos “Doutores da Alegria”, algo como os “Doutores da Melancolia”: pessoas que, vestidas com capuzes negros, entram nos quartos dos velhos e entregam folhetinhos com a palavra de Sartre, tocam em violoncelos temas tristíssimos, cantam em voz lamentosa letras infelizes e encenam pequenos sketches a respeito do vazio horroroso da existência e de como, pensando bem, é muito melhor estar morto, virar poeira de estrelas. Tudo isso como incentivo caridoso à eutanásia.
Imagino a coisa até transformada em série da Disney ou da Netflix, na qual os tais doutores, perseguidos de modo injusto e cruel pelos malignos cultores da esperança, triunfam após luta árdua e fazem brilhar a luz da dignidade suicida. Termina com um deles, mulher decerto, olhando enternecido alguém morrendo peacefully grudado a um soro enquanto pela janela entra um raio de sol.
* * *
Acho que voltará a haver comunhão plena entre católicos romanos e ortodoxos quando se chegar a um acordo quanto à cláusula filioque. Ou seja, é coisa de só mais uns duzentos ou trezentos aninhos.
Ou até antes, se todo mundo tiver que voltar a se espremer em alguma catacumba. O que parece mais provável – aliás, está previsto.
* * *
Sempre que, passeando por uma rede social, vejo/leio alguém falando “o mundinho de vocês aí”, imagino primeiro que quem escreveu é um tremendo dum Magalhães, de pé na proa da sua caravela gritando “eita que esse meu mundo é um mundão danado, sô!”.
Em segundo lugar, fico achando que, para essa pessoa, eu devo ser como o Pequeno Príncipe, de pé naquele planetinha, mão no bolso, bem-vestido e de banho tomado, perguntando para ninguém: “e aí, qual é a boa de hoje?”.
* * *
Amigos de fora se queixam da decadência do serviço em botecos e restaurantes de São Paulo. Têm razão: ultimamente fui mal atendido em dois lugares muito inesperados, um deles em zona dita chique da cidade, justamente onde a clientela é mais ranheta e dada a reclamar.
Por outro lado, em quase cinquenta e sete anos vivendo em São Paulo, afirmo: a cidade nunca parou de decair. Até mesmo onde parece melhorar, ela decai. Perde casas, perde ruas, perde o sotaque, perde uma espécie de gentileza meio estabanada, meio exasperada que era uma de suas marcas, perde uma informalidade canhestra que puxa conversa te chamando de “senhor”, perde as mulheres que arregalam os olhos e dizem “ma num fica aí assim sem fazer nada, vai caçar serviço!”, e perde – isso me faz falta – risadas roucas e graves (hoje todo mundo ri agudo).
Claro, minha ideia de decadência não é a dos meus amigos de fora. O diabo é que tanto eles quanto eu temos razão.
Outra coisa é que, por mais e mais depressa que decaia, São Paulo não consegue acompanhar o passo da decadência das outras capitais, que decaem mais e mais depressa ainda.
* * *
Da gentileza exasperada dos paulistanos d’outrora tenho um exemplo de muitos anos atrás, do final dos anos 70. Quase adolescente, à toa na vida vendo a banda passar, eu estava em indolência quase criminosa, em vadiagem mesmo, diante de uma escola na hora em que as crianças saíam. Um menino pisou em falso em algum buraco de calçada (as calçadas de São Paulo já nasceram decadentes) e caiu. Um homem que vinha passando pegou o menino pelas axilas, pô-lo em pé e continuou andando, dizendo sem se voltar:
— Olha onde pisa, moleque.
O menino ficou batendo a poeira da roupa e, não tendo tido tempo de agradecer, saiu andando em silêncio.
Tudo não levou dez segundos.
* * *
Mas aqui e ali algumas coisas continuam iguais. Noutro dia eu e minha mulher descíamos a rua Curupacê, na Moóca, perto de onde vamos em breve morar. Uma senhora com um cachorrinho desses minúsculos, feitos de tremores e ódio irrestrito, parada ao lado de uma árvore, dava tchau (a senhora, não o cachorrinho) a alguém num carro. O cão, mal me viu, tomou-se de fúria e começou a latir, babar e rosnar, deixando claro todo o mal que me faria – a mim, o infame, a mim, o réprobo – se apenas, ah, se apenas o soltassem. Eu gosto desses bichos. Parei e comecei a conversar com ele:
— Você quer me matar, cachorrinho? Quer beber o meu sangue?
Imediatamente a senhora se voltou para a minha mulher e, apontando a árvore, perguntou:
— A senhora acha que essas coisas penduradas aí no meio das folhas são vagens?
E por cinco minutos as duas, que nunca se viram antes e nem se perguntaram os nomes, ficaram debatendo a possibilidade de vagem dar em árvore enquanto eu era alegremente ameaçado de morte pelo cachorrinho. Pensei: ok, aceito isto, ok, reconheço isto, ok, vou me mudar pro bairro certo.
* * *
No bar, o amigo Alex Sugamosto faz restrições severas a Auden, poeta avesso ao místico, ao transcendente, quase um anti-aedo. Atribuo aliás as restrições a essas aversões do poeta. Chego em casa, abro ao acaso meu voluminho bilinguê de poemas do Auden e dou de cara com a primeira estrofe de Our bias:
The hour-glass whispers to the lion’s roar,
the clock-towers tell the gardens day and night
how many errors Time has patience for,
how wrong they are in being always right.
A facilidade desses versos, sua sintaxe simples e suas assonâncias que não enrolam a língua nem de um brasileiro, me encantam e me transmitem serenidade. Pois sim, não é o poeta mais complexo do mundo. É desse jeito que eu gosto. João Paulo Paes traduziu essa estrofe assim, sob o nome de “Nosso pendor”:
A ampulheta sussurra ao rugido do leão,
diz o relógio da torre ao jardim ali perto
que, sendo o Tempo paciente com os erros, quão
errados eles estão de estarem sempre certos.
Não há tradução de poesia que não suscite reclamação, e quem está aparelhado para entender o original deve preferi-lo sempre. À parte isto, meu critério para gostar de um poeta é simples, é até simplório: que ele fale comigo, não com o turbilhão dos tempos, com a indiferença do taumaturgo nem com um ponto flutuando acima da minha orelha direita. Manoel Bandeira fala comigo, Cecília Meireles (geralmente) fala comigo, João Filho consegue o milagre de falar com Deus e também comigo, Auden fala comigo. Mesmo na sua secura: sou da raça dos católicos velhos que vêem no místico razão para um, senão para dois pés atrás.
* * *
É fácil, é quase prazeroso reconhecer e explicar um vício próprio, na mesma medida em que é difícil e acre entender um vício alheio que nunca tenha sido nosso. Tomo como exemplo o cigarro. Um dia, moleque de sete ou oito anos, quis fumar e pedi um cigarro a meu pai. Ele tirou da boca o que estava fumando, me passou e junto deu as instruções:
— Não é pra chupar que nem guaraná no canudinho. É pra puxar respirando, a fumaça tem que ir pros pulmões.
Pobre homem seria ele hoje se fizesse isso: metiam-no em cana. Fiz como mandado e foi uma desgraça: tossi quase até vomitar, lacrimejei, meu queixo ficou trêmulo, estive como se tivesse alcatrão até dentro dos olhos, bebia água e nada adiantava, passei horas enjoado. Meu pai não riu nem bronqueou: pegou o cigarro de volta e a vida foi em frente para ele e para o meu nauseado eu.
Fumantes demais conheci na vida, e o hálito de mulher que tivesse fumado nunca me desagradou, mas também nunca mais consegui pegar um cigarro e tentar fumá-lo eu mesmo. Às vezes eu perguntava “mas, escuta, qual é o barato?”, e as pessoas me respondiam que lhes acalmava a ansiedade, às vezes acalmava a tristeza também. Eu acho que, se for mesmo assim, será por superposição de um incômodo maior.
Em todo caso, aí está o tango:
Fumar es un placer genial, sensual.
Fumando espero al hombre a quien yo quiero,
tras los cristales de alegres ventanales,
y mientras fumo mi vida no consumo
porque mirando el humo me siento adormecer...
Dame el humo de tu boca,
anda, que así me vuelves loca,
corre, que quiero enloquecer de placer
sintiendo esse calor
del humo embriagador
que acaba por prender
la llama ardiente del amor.
Nunca senti esse calor, e, dado que não fumo, nunca o fiz sentir. Mas acredito em ti, ó Libertad Lamarque.
* * *
Obviamente, é preciso já estrutura, já anestesia para ficar impávido ante um “anda, que así me vuelves loca”. Especialmente se esse último “s” do “vuelves” for portenhamente aspirado. Demanda fortaleza, amigo. Ou rigor mortis.
* * *
Ou então a loca tem que andar na coleira da khaleesi.
* * *
Estava lendo a sempre excelente newsletter do Livre Arbítrio, na qual ele conta como já é quase um ex-liberal, e me peguei pensando naquilo que eu já disse algumas vezes: sei que estou sendo liberal quando penso “deixa os cara, pô!”, e conservador quando penso “segura, segura os cara aí, caramba!”. Pensei mais e percebi que isto não é exatamente um elogio ou uma vindicação do liberalismo, e que meu conservadorismo vem do fato de que, sete em dez vezes, eu quero mais é que segurem os cara, segurem os cara!
E duas questões adicionais: Adele Fátima era liberal? ¿Y se volvía loca?
* * *
Fascismo ou couve-flor?
* * *
— Estou entre os não sei quantos por cento que acham o governo atual bom ou ótimo.
— E eu estou entre os não sei quantos por cento que, quando entram sozinhos num elevador com espelho, ficam fazendo caretas.
* * *
No fundo, o que a gente sabe é muito pouco, e o que a gente especula é uma enormidade.
O barato é tentar especular com a graça, com o charme possíveis.
* * *
E lembre-se, amigo: se a terra nunca foi plana, ela é, segundo os novos mapas, brasilcêntrica.
E até semana que vem.
É uma honra estar na sua newsletter, meu amigo, e em tão extraordinária companhia.