152. Crico; polícia; felicidade; filhos; patriotismo; guerra; taxista; y; cacete; sentido; pasto; grito; reclame; quá!; Dunsany; link
Quá-quá.
— Um crico é as hora, dois crico é os batimento cardíco aqui no smát what.
Tem horas no metrô em que ouvir o marreteiro é mais legal do que ouvir o death metal.
* * *
A polícia é como o cristianismo: só quem não é, só quem não professa é que sabe como tem que ser.
* * *
Ninguém que seja mentalmente são morre de amores por rede social, mas dizer “eu era feliz antes das redes sociais” é como dizer “eu era feliz antes do cachorro quente prensado”. Ou seja, vão acabar achando que você era mais retardado do que exatamente feliz.
* * *
A diferença na madrugada entre gatos e filhos que chegam bêbados é que os filhos têm a chave de casa, e só miam para entrar se não conseguem achá-la.
* * *
Você já leu muito por aí que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.
Mas os fãs do internacionalismo também não são lá muito melhores não, viu.
* * *
Por muito tempo, e em tempos um pouco mais abonados de dinheiro, fiz uso frequente dos táxis do ponto do metrô de Artur Alvim que fica ali colado à Avenida Águia de Haia. Por fazer esse uso constante, conheci e conheço ainda vários dos taxistas que ali... ponteiam? Enfim. Conheço-os à paulistana, sem saber-lhes os nomes (e sem que eles saibam o meu); no máximo sei que um tem o apelido de Ferreirinha, e outro o de Sabesp.
Ora, havia entre a trupe dos táxis um senhor português, já velho, que tinha feito parte do exército lusitano e lutado, como eles dizem, “em” África, mais precisamente em Angola, na guerra de independência daquele país. Era gentil, atencioso e não excessivamente impaciente, e sua maneira de falar já estava bem brasileiramente desacelerada, até condescendendo na pronúncia de diversas vogais; pena que eu não tenha chegado a conhecer seu nome (paulistanos, como eu disse). Era crítico do vocabulário nacional – dizia: “Vocês cá dão apelidos às palavras”. Falava assim mas usava “apelido” na acepção brasileira, de alcunha, e não na lusitana, de sobrenome. Dizia que na guerra tinha visto horrores que chegavam para a vida toda, especialmente aqueles cometidos entre as facções dos insurretos umas contra as outras.
Um dia, sumiu. Curioso, perguntei ao Sabesp o que aconteceu com ele, na esperança vaga de que tivesse se aposentado. Tinha sido assassinado. Pegou no ponto dois sujeitos que eram ladrões; levou-os à favela que circunda o Alvim e lá o mataram e lhe roubaram o carro.
Sobreviveu à guerra de Angola, mas não à nossa.
* * *
Em tempos de Über e 99, conhecer taxista é um desses anacronismos de vida que indicam o vetusto, mas é sábio aceitar a vetustez e a sabedoria ressentida que nos vem da, como diriam os advogados, inexigibilidade de conduta adversa. Mas a verdade é que conhecer taxistas já nos foi de muita ajuda: já ganhamos carona no ponto em dia de chuva, já agendamos corrida ao aeroporto de madrugada, já tivemos pertences devolvidos e até corrida fiada para minha filha ubriaca na madrugada. De sorte que recomendo até aos mais novos, caso possam, manter amizade com taxista. De quebra, você ainda ganha opiniões, comentários e vociferações dos mais divertidos a respeito da vida, do universo, da política e de todo o resto.
* * *
A Águia de Haia, sabíamos todos no meu tempo de escola, era a alcunha, o apelido (pt-br) do jurista e cabeçudo-mor Rui Barbosa, que atendeu a alguma conferência em Haia e se destacou, quer pela eloquência, quer pelo falar interminável do bom político baiano (que baiano ele era de nascença). Estando no meio de diplomatas, chamaram-no talvez a Águia para não chamá-lo a Tramela de Haia.
O nome do Rui era grafado originalmente Ruy. O Brasil sempre gostou do ípsilon e grafava “tupinambá” como “tupynambá”, e “Niterói” como “Nictheroy”, e “tísica” como “phthysica”, e exemplos outros vários que a preguiça manda que eu omita. Mas lembro de ter sabido de lei ou regra gramatical que mandava aggiornar a grafia dos vultos falecidos: dessa sorte, Ruy vivo passava a Rui morto, Moraes vivo virava Morais morto, e assim por diante. Não sei se a regra existia mesmo, se não a fantasiei em dia de febre, e se, existindo, ainda vale depois que resolvemos reintroduzir o “y” no nosso alfabeto (ele andou de fora umas décadas, junto com o “k” e o “w”, como ainda há de se lembrar quem tenha sido alfabetizado nos anos 70 e tenha, como eu, umas saudades dos acentos diferenciais). O leitor atento que souber e quiser esclarecer será muito bem-vindo.
* * *
A Tramela de Haia ou o Cacete de Haia. Porque, saiba o amigo, “cacete” já foi gíria também para “tedioso”, “aborrecido”, “maçante”. Nesse sentido gerou até o verbo “cacetear”. Já “maçante” tinha a variante “maçador”, e havia o substantivo “maçada”, familiar a quem, como eu, leu muito Monteiro Lobato.
* * *
Eu disse mesmo “nesse sentido”? Caramba, disse sim. Dê um tabefe na tela como se o estivesse dando em mim, amigo.
* * *
Não sei bem como era no resto do Brasil, e por “resto” me refiro até ao interior do estado, mas aqui em São Paulo, Capital, havia restaurantes humildes que se chamavam, como seus pares em Portugal, de “casas de pasto”, nome mais ou menos digno para o que hoje se conhece como “pé-sujo” ou “mosca frita”. Agora, porém, que nenhum pé-sujo, nenhum mosca-frita tem mais coragem de se designar como casa de pasto, percebo que o nome é muito feio e sugere, não sem alguma razão, que sua clientela fosse bovina, equina, muar.
Talvez ainda tivessem as casas de pasto em mente as pessoas que resolveram que as áreas das lanchonetes dos shopping centers deviam se chamar “praças de alimentação”, nome que sempre me fez e faz pensar em umas fileiras de cochos com uma fonte ou um poço no meio, e quem sabe alguém vestido de caipira gritando iiiii-háááááá!!! lá no meio.
* * *
Também não tenho mais visto usada a sério a expressão “último grito”, que era muito associada às coisas da moda e vinha diretamente do francês dernier cri. A expressão sumiu decerto porque hoje a moda não precisa mais anunciar nada aos berros: acho que ela está se virando com gente fazendo dancinhas na internet ou coisa parecida.
* * *
Já na França quero crer que ainda se crie um bocado.
* * *
É V. S. um dos muitos rheumaticos, condemnados a soffer cada ves que se produz uma variação no tempo?
A pergunta me é feita por um anúncio das Pílulas De WITT para os rins e a bexiga no “Almanaque Eu Sei Tudo” número 296, de janeiro de 1942, quando já vigia outra norma ortográfica (talvez estivessem reimprimindo anúncio velho). As tais pílulas serviam para rheumatismo, sciatica, dôres na cintura, disturbios renaes, molestias da bexiga e outras coisinhas a mais – talvez desentupir pias.
Minha resposta é: não, ainda não.
O Almanaque é engraçado. No meio de um conto policial de Helen Reilly, “O quarto fechado”, aparecem figuras como “O mais recente retrato do sr. Adolf Hitler”; uma “Caricatura precolombiana na America”, caricatura que não é um desenho e sim uma estátua ou ícone; e um sistema de pneu estepe muito engenhoso, tão engenhoso que não o entendi. Trazia um grave alerta: “A terra está sofrendo consideravel atraso em sua rotação”. Informava que “segundo as ultimas descobertas da ciencia, a calvicie é, em grande parte, provocada pelo uso diario de colarinhos apertados”. E anunciava que “O Dr. Getulio Vargas visitou demoradamente o ‘Stand Peixe’ na Feira Nacional de Industrias em São Paulo”, sendo o Peixe do tal stand aquela marca de doces que, percebo agora, sumiu faz tempo. Ilustra o relato uma foto do Vargas sorrindo para um cálice de suco de tomate. A Rádio Cruzeiro do Sul anunciava seu Teátro Mistério – Paulo Roberto no papel do detetive Mário D’Alva. A “Pequena encyclopedia popular” se queixava da “superprodução de palavras fantazistas”: impetuosidade em vez de impeto, provocativa em vez de provocadora, e verbos novidadeiros e dispensáveis como silenciar, homenagear, nataliciar, aniversariar e penalizar (no sentido de aplicar pena ou sanção). Por fim, recomendava ao leitor que “desperte a bilis do seu figado”. Eu despertava muito a minha na infância, vomitando-a em crises mensais de enxaqueca, e não era assim a melhor coisa do mundo para manter desperta. Mas eu não sei nada.
A falta de acentos é do Almanaque, não minha, que o copiei fielmente. Está aqui, na imprescindível Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
* * *
Todo menino é um rei.
Eu também já fui rei,
mas quá!,
despertei.
Assim reza o samba, aliás bonito samba, de bela melodia, cantado por Roberto Ribeiro, cujo título é esse primeiro verso aí. Chamo a atenção do amigo pro “mas quá!”, que é, pros raros que sabem e pros mais raros que lembram, “mas qual!”. Esse uso do “qual” como interjeição (também se usava dizer/escrever “qual o quê!”) de espanto ou de negação estridente morreu ou está em coma em alguma UTI perdida num deserto, porque já era – quem perguntar por esse uso já merece ouvir um qual!, qual o quê!’
Já o amigo merece ouvir o samba, que, reitero, é bonito e não tem letra demente nem idiota, fugindo muito à praxe recente do estilo (talvez por ser velho, lá dos anos 70).
* * *
A MORTE DE PÃ
Quando os viajantes vindos de Londres entraram na Arcádia, lamentaram uns para os outros a morte de Pã.
E logo o viram jacente, hirto e silente.
O Pã dos chifres estava quieto, o pelo cheio de orvalho; não era a visão de um animal vivo. E eles disseram: “É fato que Pã está morto”.
Parados melancólicos ao lado do largo corpo pendente, olharam longamente para o Pã memorável.
E veio a noite, e uma estrela pequena piscou.
Então, de algum vilarejo no vale da Arcádia, ao som de uma canção ociosa, donzelas árcades vieram.
E quando lá viram, tão repentino no ocaso, aquele deus velho estirado, detiveram seus passinhos e entre si murmuraram. “Ele se faz de bobo”, disseram, e entre si riram um bocado.
Ao som desses risos, pôs-se Pã em pé, sacudindo o pó das patas.
E, por todo o tempo em que os viajantes ali permaneceram à escuta, os penedos e colinas da Arcádia estalavam ao som da perseguição.
Tradução minha, muito imperfeitinha, para um dos 51 tales de Lorde Dunsany, de 1915.
* * *
E chega. Mas não se vá sem ler minha coluna nova na “Crusoé”, amigo, coluna que destila inveja mas, espero, o faz com algum bom humor.
E, agora sim, chega.
Eu também aprendi a regra de que as ortografias dos nomes das pessoas, caso divirjam do padrão da língua, passam para esse padrão depois de mortas. Mas não consigo chamar Gilberto Freyre de "Freire"; décadas depois de morto, o seu olhar de desprezo ainda me inibe.