156. Mudança e outras coisas
A 52 por ano, eis aqui três anos completos e ininterruptos de newsletter. Tudo grátis, leitor ingrato. Me paga uma pinga com limão.
O mundo ainda não pertence ao streaming. Mudamos de casa – é quase só esse o meu assunto de hoje – e estamos enrolados para ter internet. Sem internet não há streaming: não há Netflix, não há Prime, não há Star+ nem Disney, não há duzentos e oitenta canais de filmes e futebol e reality shows vagabundos e programas de emagrecimento com médicos que pintam o cabelo, especiais de true crime, canais abertos, Youtube, jornalismo chapa vermelha, nada. Restou-nos apelar para a coleção de DVDs, cuja manutenção já ia nos parecendo coisa de acumulador. Milagrosamente, os controles remoto foram localizados.
Vamos espiar a coleção, relembrá-la. Persona, do Bergman. A hora da zona morta. Faster, pussycat, kill, kill, kill. Peeping Tom (que aqui levou o nome de A tortura do medo). Os dois do Dr. Phibbes (fáibes no original, fíbes na dublagem). Bunny Lake is missing, que eu recomendo muito que o amigo dê um jeito de assistir (tem Noël Coward no elenco). Todo o Seinfeld. Todo The I. T. Crowd (que eu insisto, insisto para com o amigo: assista). Todo o Fawlty Towers (que, se você não viu, não direi que não viveu: direi que viveu mal). O grande Lebowski. Meu vizinho Totoro. Fome animal (Braindead, das primeiras coisas do Peter Jackson). Apenas dois episódios (de sete no total) da Volta ao mundo em 80 dias, do Michael Palin, um deles com as legendas zoadas: o primeiro, em que ele toma o então ainda existente Expresso do Oriente, que pára em Innsbruck, e chega até Atenas, e o quarto, em que ele atravessa a Índia de trem (e é afeitado por um barbeiro que ele acha que é cego). Ladrão de casaca. Os inocentes (o de 1961; Deborah Kerr mais bonita do que a senhora sua avó, amigo). Um corpo que cai. O príncipe e o dragão de oito cabeças. A casa da noite eterna. Cova rasa. E outros, outros. Muitos DVDs feitos em casa, a partir de filmes baixados, tudo no tempo em que as televisões ainda não tinham codecs para ler .avi, .mkv., .mp4, essas coisas.
Sim, a internet voltará, é preciso para outras coisas – uma delas esta newsletter. E foi nela, afinal, que baixei tudo isso que queimei em mídia física. Mas é bom relembrar que o estoque dá uma certa independência.
Curiosamente, eu nunca pensei assim a respeito da minha biblioteca, de como é bom ter livros físicos, uma coleção de papel. E eu uso bem o kindle, e tomei até posse de um iPad velho da minha filha para ler em pdf. Mas com os livros é outra coisa, ainda não sei bem por quê.
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Os primeiros tempos numa casa nova são tempos de se habituar a novos ruídos. Como saber que alguém entrou para tomar banho sem o barulho da porta defeituosa do box se fechando? Como saber que alguém está chegando sem ouvir o tilintar das chaves antes do primeiro portão ser aberto? Como saber que o tempo está virando sem ouvir uma roupa leve drapejando num varal? Os pássaros que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá – estão mais distantes, cantam outra música. Aqui não há vizinhas lavando o quintal – aqui não tem quintal – cantando uma música da Frozen disfarçada de “hino” neopentecostal. Se não há quintal, cão e gatos precisam criar rotinas novas: ouvimos seu novo lavor, que não é o de antes.
Vamos aprendendo.
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Os silêncios também são outros. Na casa antiga, era quebrado pelos carros que passavam estrumbando funks cheios de palavrões, com graves que chacoalhavam as janelas e as almas que naquilo se compraziam, dali tiravam suas necessidades do belo. E por vizinhos com suas festas. Num dos sobrados de frente se reunia um coral. Noutro, alguém sempre gritava quando o São Paulo fazia gol. Da rua adjacente de cima, vinha o ruído da lanchonete da Dona Encrenca, às vezes com música ao vivo, às vezes com ela falando alto às 3 da manhã. Mas o silêncio em si era o da periferia, quase rural, silêncio que não é silêncio.
Agora, vêm os ruídos da avenida, seis andares e vinte metros à frente: caminhões, motocicletas espocantes, ambulâncias e polícia, o farfalhar esquisito de ônibus elétricos - ruídos citadinos. Dos apartamentos, às vezes alguma tosse, algum cão pequeno que late. Dos outros prédios o som do futebol, do churrasco, de gente na piscina. E o silêncio, quando desce, é mais espesso, é mais silêncio.
Vamos ouvindo.
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Você anda pela casa velha e o ar de abandono parece uma forma de censura. Lá está o armário pendurado na parede da cozinha há duas décadas, agora quase vazio (nada nunca fica inteiramente vazio; nenhuma mudança é completa, leva tudo; há restos em todos os cantos), mudo no que você, sentimental, entende ser um protesto: “Então agora é assim, já não te sirvo mais?”. O botijão de gás, fechado em sua dignidade de Buda, esse sabe que ainda servirá, e dele nada vem de inamistoso. Mas as portas cheias dos adesivos que a filha colou, as janelas cujas guilhotinas emperravam e que não abriremos mais: é com uma submissão meio espantosa, com uma vergonha meio aflita que encaramos sua dignidade austera.
O próprio chão da sala, onde, por tantas vezes, andamos nas pontas dos pés para não desfazer a casinha de bonecas da filha criança, o próprio chão podia me dizer: “Ah, você foi feliz aqui em cima de mim, não foi? E nem me deu tchau”.
Na casa ainda ecoa a nossa vida. Entramos e saímos o mais depressa que podemos; não queremos parar e continuar a ouvir.
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Então compreendemos: a vida das coisas é a nossa vida. O armário da cozinha vivia quando o abríamos; idem as portas com seus adesivos e janelas com seus emperramentos, idem o chão com os brinquedos e a porta defeituosa do box e o portão que tilintava às chaves que entravam: eles nos ecoavam. Viviam por empréstimo ou por furto, viviam no uso que deles fazíamos.
Somos o sopro da vida para as coisas. O portão vibra porque chega alguém a quem queremos; o box range porque quem toma banho é um de nós; quem encheu o chão de bonecas e as portas de cromos dos galãs dos Rebeldes é alguém que amamos; quem abre e fecha armários, quem usa o gás, quem vai ao quintal ralhar com os bichos é quem tem dividido comigo parte tão grande do tempo que me foi dado.
As coisas não trazem nada consigo, as coisas não têm nada de seu. Somos nossa própria bagagem, somos nosso próprio fardo. O mundo é só um lugar onde estamos. Isso me acalma.
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Há agora também a diferença de trajetos. Antes: uma lotação até o metrô (com a parada calculada para ir ao banheiro); quarenta minutos de metrô, com uma baldeação; o trabalho, total uma hora. Agora: dez minutos de caminhada, dez minutos de trem e mais dez de metrô (outra linha), sem baldeação, total meia hora. Antes: chegou delícia, chegou qualidade, Antes havia o sol nas escadas, a irritação de estar em meio à multidão, o cheiro de queijaria. Hoje, um trajeto de seis quadras por ruas sossegadas, com comércios diferentes e gente diferente andando nas ruas, e árvores, e residências silenciosas. É tudo ladeira abaixo para ir, ladeira acima para voltar, mas não ladeirão: ladeira suave. No caminho tem padaria, tem uma lojinha estranha que só vende salame, tem uma Igreja construída em estilo art déco, tem quatro ou cinco farmácias e uma loja de artigos finos para senhoras idem. E tem você de fones de ouvido. Você não: eu.
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Desencaixoto livros, livros que estiveram indisponíveis por quase um ano. Um bom terço não me interessa mais, não quero mais, não relerei (alguns nem li). Medito em como me livrar deles.
Outros quero manter e reler; alguns deles me surpreendem. Por exemplo, meu exemplar dos Exercícios de admiração, do Cioran, livro que sei ser do agrado do amigo Pedro Almendra (que é o editor da Revista Unamuno – a qual recomendo muito ao amigo –, emboaba convicto, e um dos poucos fãs sinceros do Neymar que conheço).
Releio nele justamente um dos ensaios que o agradam, na verdade uma carta escrita a Fernando Savater acerca de Jorge Luís Borges. Cioran crê que há uma correspondência entre seus Bálcãs natais e a Argentina, correspondência de “espaço cultural menor” que leva seus intelectuais – ou levou os intelectuais Cioran e Borges – a “peregrinar através das literaturas e das filosofias, devorá-las com ardor doentio”, como forma de escapar daquele néant, daquele nada cultural. O quão “nada” era esse “nada” é pólvora para debates, sim, claro, e o tiroteio seria dos mais divertidos de se ler; mas, enfim, é o que o Emílio dizia achar.
Cioran encerra sua carta cabotina (ela foi escrita para se desculpar por não colaborar num volume que Savater organizava para homenagear Borges; não colaborou, mas publicou a carta) fazendo ao argentino este elogio:
se existisse uma utopia que eu subscreveria de bom grado, seria aquela em que cada um o tomasse [Borges] como modelo, um dos espíritos menos pesados que já existiram, o “último dos delicados”.
Não sei o porquê dessas aspas, mas o que vai dentro delas está certinho.
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Morreu o narrador Sílvio Luiz, que era engraçado (mas nem sempre) e de quem tenho lembranças muito antigas. Uma delas: em ano que não me recordo, talvez 1981, ele se lançou candidato à presidência da Federação Paulista de Futebol, na época tida e havida como centro horripilante da mais sórdida e espantosa corrupção. Seu vice era o “jornalista” esportivo Flávio Prado. A chapa não foi aceita, e só existia mesmo como veículo de publicidade deles e do seu inconformismo com os horrores de que falei.
No dia do pleito, que, se não me engano, foi vencido pela primeira vez pelo Nabi Abi Chedid, Sílvio e Flávio, vestindo fraques, subiram a Brigadeiro Luís Antônio (onde então ficava a sede da FPF) de charrete. A TV deles, salvo engano a Gazeta, ia filmando tudo – nem sei se o Marcelo Tas não ia narrando o pocotó.
Não foram autorizados a entrar na FPF. Ficaram na calçada, desfilando os fraques, proclamando coisas, dando tchauzinhos e autógrafos. Na época, achei aquilo muito engraçado, coisa de aluno rebelde.
Meu pai, que o conhecia dos tempos em que foi juiz, disse, para quebrar um pouco o meu encanto, que Sílvio Luiz tinha ganhado várias vezes o “troféu camburão”, prêmio de juiz que tinha que sair do estádio levado pela polícia para não ser linchado. Não sei se era verdade; meu pai mentia com a cara séria.
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Cromos: era assim que, na minha infância tenra (já fui, sim, macio como um baby beef), ainda se chamavam as figurinhas. Que não tinham o luxo de ser autocolantes: era preciso seu pote de cola Tenaz. Meu pai, que era mais expedito do que econômico, fazia uma cola com polvilho, uma cola meio fedegosa que tinha o hábito ruim de embolorar em poucos dias, especialmente no tempo frio, mas que funcionava direitinho.
Meu primeiro álbum foi o que trazia as figuras da enciclopédia Os Bichos. Meu segundo, um com os personagens de Walt Disney. O terceiro, um com os jogadores de alguma edição do Campeonato Brasileiro de Futebol, talvez o de 1978.
Eu tinha meus bolos de repetidas, que trocava com outros meninos, e com as quais jogava bafo, perdendo mais que ganhando, e jogando com cuidado para nunca perder demais. Me espanta a lembrança de como era boa a memória de todos: os meninos passavam os cromos velozmente e sempre sabíamos de cara e de cor quais tínhamos, e por exclusão quais não tínhamos. Um passando e o outro respondendo: tenho, tenho, tenho, tenho, NÃO TENHO, tenho, tenho, etc. Hoje eu não lembro o número do telefone de ninguém.
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Aprendi, nestes anos quase excessivos, muita coisa inútil, que tira, na minha cabeça, o lugar de coisas mais importantes, coisas que talvez criassem o meu imaginário e refinassem a minha cultura. Paciência. Uma dessas inutilidades é a sabença de que a pinga com limão é chamada de espremidinha, e se faz como com as esfihas – apenas, no lugar das esfihas, vai um copo cheio de pinga: aperta-se o limão em cima e deitam-se nela o sumo e as bagas que caem. Se você jogar açúcar lá dentro, aí vira, de pleno direito, uma caipirinha. Que não é, como a espremidinha, bebida de homens: se tem açúcar, é bebida de criança ou de mulher.
Assim o aprendi, assim o conservei, assim o repasso, depositum fidei. Sou homem do século XX.
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Me disseram (médiuns, pitonisas, buenas dichas, esse tipo de gente) que o ex-presidente do Irã (morreu vira ex, né?), esteja onde estiver, está sendo entretido com as glórias e virtudes da cinematografia nacional brasileira.
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No mais, os gatos não se conformam com a ubiquidade da cachorra, a cachorra não se importa com nada nem com gato nenhum desde que esteja perto de nós, e tudo o que parece desabar vai ficando, sabe Deus como, em pé.
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Antes de ir, dê uma passadinha pelo sítio da Crusoé e confira minha crônica nova. Se já fez isso, ou se está indo fazer, então sim, me despeço: arrivederci. Semana que vem começaremos juntos o ano IV.
Só na infância – e, veja, não estou nem contabilizando a adolescência –, mudei-me sete vezes. Era (e sou) filho de militar; não tinha muito o que fazer. O que impedia que eu, pequeno infante atabalhoado com o mundo, pirasse com aquilo é o cheiro que a minha mãe conseguia dar às coisas, um aroma leve de loja Marcia Mello (ou Le Lis Blanc?) e de chão encerado. De fato, mestre, nós somos nossa própria bagagem.
Paguem uma pinga com limão ao Orlando! Já!