Nascido em 1967, minha infância atravessou os anos 70, dos três aos doze anos. Moramos no Pari por um breve intervalo entre 1969 e 1970, na altura do 150 da Praça Padre Bento, e, a partir de 1971, sempre no Brás, à Rua Maria Marcolina, 656, apartamento 3, quase na divisa do Brás com aquele mesmo Pari. A casa da Praça Padre Bento e o apartamento da Maria Marcolina não existem mais; na Praça há hoje um estacionamento, e na rua há hoje uma loja, Jami Jami Bolsas, que incorporou o 656 ao 650.
Saímos do apartamento em 1981, após uma querela de quase dois anos com o dono. Ele tentou de todos os modos nos forçar a sair ou nos despejar. Ficamos sem água no banheiro, meu pai precisava depositar o aluguel em juízo; por fim, o cidadão acabou nos pagando para sair. Com o dinheiro, alugamos uma casa na Rua Almirante Barroso, 180, a casa número 1. Era numa vila com quatro casas, que também não existe mais: foi incorporada à Roma Aviamentos e ao número 178.
Ainda sonho frequentemente com aquele apartamento da Maria Marcolina. Nos sonhos ele nunca é exatamente como era: ora é mais sombrio, ora é mais amplo, ora tem estufa cheia de plantas, mesa de laboratório e oficina sei lá do quê, ora tem alguém morto em algum cômodo, ora tem banheira numa área de serviço envidraçada, ora tem tanta gente quanto na cozinha de um hotel razoável. No térreo do prédio havia um “bar e lanches” e a porta da rua dos apartamentos, da qual saía um corredor imenso, em cujo fundo ficava a porta do apartamento número 1, no térreo (o maior de todos), a cuja esquerda estava a escada que subia ao primeiro e único andar. Nosso apartamento era o de fundos, o 3; o de frente para a rua, com sacadinha e tudo, era o 2.
A única entrada e saída era a porta da sala, que tinha um “olho mágico” pelo qual - por mágico - eu achava que podia ver fantasmas (nunca os vi). Da sala saía um corredor que levava aos quartos e à cozinha, e desta ao quintal, e, do outro lado, ao banheiro, antecedido por um pequeno átrio onde ficava um armário de ferramentas e se penduravam panos de chão, vassouras, rodos, carrinho de feira. O encanamento era todo de ferro, tornando comum a gente levar choque abrindo ou fechando o chuveiro – o que fazíamos ficando em pé sobre a privada, porque não alcançávamos o registro de outro modo. Naquele tempo corria-se de modo corriqueiro, até indiferente, esse risco de vida.
No corredor, o primeiro quarto à esquerda era o que eu dividia com meu irmão; o segundo, dito “dos fundos”, era o dos meus pais. Depois vinha a cozinha, ladrilhada de vermelho e com azulejos creme (ou brancos encardidos pelo tempo). Depois vinha um quintal pequeno e comprido, com um tanque coberto por um telhadinho, no qual eu gostava de me sentar à tardinha e ver a luz fria e abril ou maio caindo debaixo de vento veloz e frio olhando telhados e antenas. Às vezes, no verão, fazíamos o tanque de piscina. Daquela pequena área se via o quintal enorme do apartamento do térreo, onde havia um cachorro e uma mulher pendurava roupas cantando “O que será que será, que andam suspirando pelas alcovas”. Esses versos me fizeram ir ver no dicionário o que eram “alcovas”, e passei a imaginar aquela mulher meio como prostituta. Soubemos depois que era, ou queria ser, atriz.
Durante a semana, a TV só funcionava de manhãzinha ou à noite: quando as malharias do quarteirão ligavam suas máquinas, a tensão caía e a TV não funcionava. A noite era das novelas, sempre as da Tupi ou, mais tarde, da Bandeirantes. Aos sábados a TV era geralmente do meu pai. Assistíamos, na Globo, à tarde, a uma série de filmes mudos: Harold Lloyd, Keystone Cops, alguma coisa do Carlitos, e Buster Keaton também, se a memória não me trai. Minha mãe, quando podia, assistia ao Almoço com as Estrelas, Ayrton e Lolita Rodrigues (Lolita que minha mãe detestava, mas via; aprendi com ela o significado de “corno”, por ela atribuído ao pobre Ayrton Rodrigues) pondo mesa para atrizes, atores, cantores e cantoras com jeitão de bas fond, que era o que em geral se chamava de “artistas”. Garçons de beca branca e gravata borboleta preta circulavam entre as mesas com toalhas compridas e copos d’água imensos. Anos 70: mulheres com brincos enormes e, até eu sabia, muito laquê; os homens com calças de bocas largas e lapelas enormes nos paletós, quase sempre brilhosas, e gravatas largas como guardanapos, que meu pai ridicularizava. Eu sempre me perguntava o que eles comiam; fosse o que fosse, não havia ossos à vista, nem conchas. À noite, na Record, víamos Columbo, o Casal McMillan e James West (cowboy almofadinha antecessor do McGyver) e, bem mais raramente, O mestre do Kung Fu. Tive ainda a sorte de pegar alguns episódios de Kolchak e os demônios da noite, e também da Galeria do terror. Era a minha noite preferida da semana.
Três manhãs de domingo de cada mês eram passadas, até 1977, na casa da minha avó paterna, Amália (née Bobato), na mesma rua Maria Marcolina, número 254, altos. (Uma das manhãs era passada na matinée do cine Metro: Tom & Jerry, Pateta, Pato Donald.) Iam à casa, que também não existe mais, meu pai e todos os tios: Romeu, Valdemar, Oswaldo. Ocasionalmente, também algum primo, mas, da segunda geração, geralmente só eu e meu irmão. No sábado anterior, meu pai ia à adega do Chico – Francesco Porcaro, daí a adega se chamar Francaro – comprar um ou dois litros de vinho (tinto seco) gaúcho, tirado pelo velho Chico de uma pipa que parecia ter dois andares de altura. Levava também uma garrafa de xarope de groselha – sempre Cachoeira, jamais Milani – e duas garrafinhas de Gini. E uma cachaça. No domingo, o tio rico – o Romeu – trazia um Cinzano para misturar com a pinga e fazer rabos-de-galo (rabo-de-galo feito com Cynar era inadmissível). O vinho para mim e para o meu irmão era duas ou três gotas pingadas num copo de soda limonada (Antarctica, raramente Brahma). Se houvesse uma panhoca dormida, e se o pai estivesse de bom humor, ganhávamos uma sopa de cavalo cansado: mingau de pão e vinho. Mas geralmente as tias tinham para nós uma vasilha imensa cheia de crostoli – doce simples, massa frita coberta de açúcar e canela, pelo qual éramos e ainda somos doidos. Havendo crostoli, não havia papa de pão e vinho.
A panhoca, que alguns também chamam de panhota, era o pão italiano redondo e cheio de farinha por cima. A infância me faz lembrar de um pão que talvez nunca tenha existido, ainda crocante mesmo dormido, e bom depois de dois ou três dias. Mergulhávamos nacos daquele pão, todos besuntados de manteiga, em canecas de café (quase sempre preto; nunca gostei muito de café com leite) enormes. As tias compravam os tabletes – sem sal; sal na manteiga é para esconder o ranço – e os cortavam em pedaços menores, que metiam na geladeira dentro de um pote com água, para não endurecerem.
Sentavam-se os quatro irmãos à mesa da cozinha e eram servidos pelas irmãs, mais pela Nenê que pela Guiomar. Quais eram seus assuntos? Não sei. Não me lembro de nenhuma conversa deles. Mas lembro que, conforme vinho e rabos-de-galo iam fazendo efeito, se tornavam risonhos, e o volume das vozes subia, e às vezes – sim, eu lembro de alguma conversa, afinal – afloravam lembranças de empregos, de bailes, de tempos de necessidade, da brabeza do meu avô, dos heroísmos de minha avó.
Dona Amália tinha os olhos azuis, era analfabeta e mal falava o português. Falava o bananerês, o idioma de Juó Bananére – idioma da minha infância também. O poema do Studanti do Bó Ritiro (caçoada com o poema do Estudante alsaciano, de Acácio Antunes, o que fala da “escola risonha e franca”) foi escrito no dialeto de casa; sou bem capaz de escutar minha Tia Nenê declamando:
O maestro, virmeglio di indignaçó,
alivantó da mesa come un furacó
i, pigano un mappa do Bráiz,
disse: Mostra o Bó Ritiro aqui si fô capáiz!
Aóra o piquêno també si alivantó
i, baténo a mon inzima o goraçó,
disse: O BÓ RITIRO STÁ AQUI!
O poema do Estudante alsaciano foi muito popular aqui no Brasil no começo do século passado. A Alsácia-Lorena, terra de Joana d’Arc, foi perdida pela França para a Alemanha na guerra franco-prussiana, e os novos donos trataram de expurgar a língua e os costumes franceses da região. O poema narra justamente o destemor de um menino, um aluno de alma francesa, resistindo a um professor alemão. O poema se encerra com o menino batendo no peito e dizendo “a França está aqui”. Os livros de Arsène Lupin estão populares de novo; num deles se conta que o ladrão de casaca tinha, entre outros, o sonho de recuperar a Alsácia para a França (foi recuperada afinal com o Tratado de Versalhes). O poeta Acácio Antunes era português e, vê-se, francófilo, senão também acaciano.
Mas voltemos à minha avó. Todas as noras a detestavam: era rude e avarenta, e, como as filhas, muito capaz de violência física e verbal, especialmente, mas não só, contra outras mulheres. Mas conosco, eu e meu irmão, era a ternura em pessoa. Analfabeta, desenhava garatujas no papel e cantava para nós o Mazzolin di fiori:
Quel mazzolin di fiori
che vien dalla montagna:
bada bè che non si bagna
che lo voglio regalà.
Usava palavras vênetas: pastroccio, sbruzzado (o -do final já é bagunça com o português), e todos os seus diminutivos eram em -in e -etto. Fazia sopa de feijão, sempre com macarrão, jamais com arroz. E controlava toda a comida da casa. Com pantufas, avental xadrez e coque nos cabelos brancos, era a matrona que comandava tudo, que nunca era desobedecida, cuja sensibilidade imprevisível era temida e respeitada. Mãe italiana. Mas, para mim, era uma velhinha adorável.
Talvez por eu ser menino e ela da velhíssima escola, que privilegiava os homens. Não era afinal à toa o voto italiano tão conhecido: auguri e figli maschi. Meu pai teve dois, os dois tardios, os dois temporões, os dois perto dos cinquenta anos, os dois no fim da fila, os dois tão perto dela, os dois por isso tão queridos. Meus outros tios também: um o Romeu, quatro o Valdemar, três o Oswaldo. Sorte? Chi lo sa? Mas era por isso também que os quatro filhos se sentavam à mesa e eram servidos pela mãe (enquanto pôde) e pelas irmãs inesperadamente servis (nunca dóceis: não há mulher Tosetto dócil). Atravessei, não sem solavancos e contusões, a franja entre dois mundos, aquele e este.
Voltávamos para casa a tempo de comer o macarrão e o frango com polenta dura, cortada com linha de retrós e não faca, e sobre a qual se deitava todo o molho do frango que fosse possível. Em começo de mês era canelloni, não macarrão; em mês bom, era lasanha; mais raramente, gnocchi. Eu não era amigo da polenta nem do gnocchi, mas comia, e detestava qualquer coisa in brodo, particularmente capeletti. Mudei, mas ainda hoje, se puder escolher, é tudo al sugo.
Almoçado com fartura, e ainda meio ubriaco (não fale “breaco” na minha frente, amigo, eu vou te querer mal: é ubriaco), meu pai ia puxar uma páia, fazer a sesta. Como era domingo e a tensão no quarteirão não caía, tínhamos a televisão livre para nós. Ou melhor: minha mãe tinha a televisão livre para ela.
Ela punha no Sílvio Santos. Meu pai, quando acordado, dava a ele bola apenas lateral (o velho era velho mesmo, preferia o rádio), mas minha mãe gostava e acompanhava com fervor muito mal disfarçado vários “quadros” do programa: Boa Noite, Cinderela; Cidade contra Cidade; Qual é a Música; e o Show de Calouros. Não me lembro se, nessa época, minha mãe já tinha pegado a mania de falar com a televisão – de xingar as pessoas de que não gostava, ou de assentir vigorosamente com as de que gostava ou concordava. Lembro que assistia e comentava. Gostava do Zé Fernandes (tão longe vão minhas lembranças) e não gostava da Aracy de Almeida, que o substituiu quando ele morreu. Gostava do Décio Piccinini e detestava o Pedro de Lara. Achava Pablo, o dublador maquiado, simpático. Achava o Ronnie Von fofinho (nós sabíamos de cor a letra de “Tranquei a vida” e de “Sou rebelde”, da Lilian – ela posou nua para uma revista masculina no começo dos anos 80, e todos os moleques da minha escola não a acharam grande coisa) e não gostava do Sìlvio Brito – “cabelos longos, ideias curtas”. Achava a Elke Maravilha uma espécie de avestruz ou cacatua gigante. E manifestava desapreço por quase todos os calouros – que eu me lembre, aliás, nenhum calouro nunca deu em nada.
Meu pai acordava e, como naquele tempo era raro haver futebol na TV – geralmente passavam só os jogos muito importantes –, ligava o rádio para ouvir o Corinthians ou qualquer outro jogo que estivessem transmitindo. Findo o jogo, lá pelas sete, saíamos para a pizza ou no Papai, na Praça da Sé, ou no Braseiro, na Avenida Celso Garcia quase colado ao Cine Roxy. Minha mãe comentava com meu pai um ou outro calouro, uma ou outra boutade da Aracy; o velho respondia lacônico, me ensinando, pelo exemplo, a entrar em alfa ou em modo avião ante conversas femininas.
Acabados os anos 70 e a infância, entrados os 80, a adolescência e a série enorme de mortes em família no período 83/84, nunca mais dei bola ao Sílvio Santos. Quero dizer: não sou blasé, não o desprezava; é que nunca mais me sentei para assistir ao programa, só o via ocasionalmente de passagem ou quando alguém via, nunca mais por vontade própria. Na cabeça e no espírito eu não tinha mais tempo, estava ocupado, sem pai, meio desconectado de mãe e irmão, perdido na bruma, fazendo a travessia de uma vida para outra ou, como eu disse, de um mundo para outro. De um mundo no qual eu não tinha voz para outro que não conhecia, não dominava.
Nunca fui burro, mas também não dei muita sorte. Com o tempo, aprendi coisas e fiz correções – não o bastante, porém. Aliás, nunca se faz o bastante.
Minha filha foi assistir ao último filme de Harry Potter com amigas, em 2011, quando tinha 16 anos. Todas sentiram que o adeus do ator, no final do filme, era também um adeus às suas infâncias; e todas choraram com isso. Não sei quando minha infância acabou, nem se me custou alguma lágrima. Talvez tenha sim custado: sou da raça dos que choram fácil. Mas não sei se a infância acaba mesmo – se ela na verdade não fica incubada, pronta a renascer quando voltamos a ficar indefesos mas, com tantos pesos nas costas e tantas dores nas juntas e na alma, damos a essa debilidade rediviva o nome de velhice. Ou, no meu caso, de vecchiaia.
👏👏👏👏
É sempre uma delicia para mim ler (e reler) essas suas lembranças. O Brás da sua infância não é muito difererente do Largo do Machado da minha, e sua familia italiana tem muito da minha, portuguesa. E a demolição da memória segue igual por aqui também. Não há tristeza: vc escreve com a tinta da melancolia e a pena da galhofa (ou será o contrário? Depois confiro no Google - mas não antes, para não perder este recurso borgiano). Abração.