17. Krupp de marreteiro - congregacionistas humanitários - meu signo - comédia ruim - poesia boa - perdão
Norm MacDonald era engraçado, sim
Metrô de São Paulo, linha vermelha, sentido Itaquera. Vagão não muito cheio às três da tarde de sol. De uma ponta do vagão vem a voz do marreteiro.
– Atenção, pessoal, chegou qualidade, chegou potência, chegou precisão, tá, pessoal? É o canhão Krupp de 75mm, tá, pessoal? Maravilha da engenharia germânica agora no Shopping Metrô. Com ele você vai poder defender a sua família ou até mesmo intimidar aquele marginal ou traficante que manda na sua quebrada, tá, pessoal? Também vai poder fazer bico de homem-bala nos circos e parques de diversões, e até mesmo mandar sua sogra pra lua. (Risos no vagão.) É verdade, pessoal, meu primo Maquitáisso mandou a dele e até agora a velha não voltou. (Mais risos.) Mas não é só isso, tá, pessoal? Com ele também você vai poder exercer seu direito de punir com a morte aquele seu parente folgado, ou aquele seu vizinho importuno, ou até mesmo resolver as briga na ceia de Natal da família. Lá fora, pessoal, você vai encontrar por um preço absurdo de vinte ou até trinta milhões de dólares, tá, pessoal?, mas aqui na minha mão você só paga vinte reais. É isso mesmo: vinte reais o canhão Krupp de 75mm. “Mas vendedor: eu não tenho vinte reais!” Não tem problema: chamou com quinze leva também. Aceito crédito, débito e faço pix. Olha, eu vou fazer o seguinte: devido à megaoperação do Metrô para tirar o marreteiro de circulação, eu vou fazer uma promoção. Quinze reais o seu canhão Krupp de altíssima qualidade, tá, pessoal?, e quem levar dois só paga vinte e cinco. É para acabar, pessoal. O senhor ali já chamou. Leva dois, patrão?
Três juntas de bois se arrastam penando pelo vagão puxando o canhão de cinco toneladas, que tem rodas. O aço maciço rebrilha conforme o sol da tarde entra pelas janelas e dá nele. Gravado em letras pequenas da rodela da culatra enorme, vê-se um discreto “Made in China”.
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O Congregacionista Humanitário chegou à padaria na hora do almoço e se sentou ao balcão. Um rapaz animado veio atendê-lo:
– Vai o prato do dia, patrão?
– Nós, os Congregacionistas Humanitários… – começou o Congregacionista Humanitário.
– Ah, vem mais gente? O senhor não prefere pegar uma mesa?
– Não é isso – disse o Congregacionista Humanitário, meio irritado com a interrupção. – É que nós, os Congregacionistas Humanitários, sempre começamos nossas frases dizendo “Nós, os Congregacionistas Humanitários”. Então, como eu dizia, nós, os Congregacionistas Humanitários…
Mas o rapaz já não ouvia; atendia o freguês do lado.
Moral da história: cuidado para, tentando ser Congregacionista Humanitário, não se tornar Segregacionista Humanitário.
Outra moral: não enrole para pedir o almoço.
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Por que ninguém questiona o determinismo zodiacal? Por que é que eu tenho que ficar preso ao signo (ou signos; o negócio é complicado) que me deram meu quadrante, meu aniversário, a cúspide, etc.?
Por que o cidadão, triste ou acabrunhado de ser geminiano, não pode se tornar, ou se autoproclamar, digamos, libriano? Que grilhões são esses? E a Democracia, caramba, como fica?
Meu signo, minhas regras. Ora bolas.
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Eu gosto muito de comédia, de comediantes, de humor. E veja o amigo que, por mais que você saiba, veja, leia, acompanhe, sempre acontece de haver uma lacuna vexatória. No meu caso é Norm MacDonald, que morreu por estes dias. Nunca, que me lembre, vi ou li nada do cara.
Algumas pessoas gentis, sabendo disso, me recomendaram coisas dele, que fui ver. Entre as coisas que vi (e de que gostei) estava um dos episódios de “Comedians in cars getting coffee”, do Seinfeld. O episódio é bom, mas se torna memorável por uma frase do Seinfeld, não do MacDonald:
“Poetry is bad stand-up. It’s carefully chosen words that have no laugh at the end.”
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Sim, amigo, sabemos que poesia não é só isso. E que às vezes ela faz rir, sim – pense nos limeriques, por exemplo (e, quando pensar, pense nos do Elton Mesquita).
Ou pense em Augusto dos Anjos. Ele me faz rir muito. Ou você não acha engraçado um poeta filho do carbono e do amoníaco (e pois da teleológica matéria) que é profundissimamente hipocondríaco, que digeria aí um manjar funéreo, nascido, qual bluesman, em signo ruim, e em cuja sorte pousou um urubu? O poeta das ogivas fúlgidas e das colunatas; aquele cuja desventura tinha, não sei bem como, um tamarindo? O vate que, à falta de corvo, arranjou um morcego e louvou no verme o contubérnio com a bactéria? O aedo que rimou amá-lo com Sardanapalo? Eu acho muito engraçado, mas deve ser porque eu não presto. Ou porque eu sou do tipo que – agora vou soltar um versinho livre – despejo, lá do alto da janella, um penico na cuca do melancholico.
Enfim, amigos ainda? Perdoado fico nos meus maus bofes? Diz que sim, diz. Nos vemos então semana que vem? Que bom. Até lá.
Como sempre, muito bom, Tosetto.