174. Aula; abandono; mobilidade; desvida; agosto; maldizer; Graças e Graça; quarteirão; bofe; periquito; mentira; links
— Vamos ver o debate?
— Não posso. Eu tenho uma aula prática de harakiri.
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— Deixo aqui o meu questionamento – disse a moça, indo embora.
E o questionamento ficou lá, no banco da praça, do meio-dia até à noitinha, quando a polícia veio, deu-lhe água e um lanche, e o levou para um orfanato.
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A mobilidade urbana sustentável fica em casa, vendo TV, comendo bombons, acariciando os gatos, sustentável e, pois, sustentada. Uma Odete. Lá de vez em quando ela telefona ou manda mensagem pedindo um dinheirinho para alguma pequena despesa, e quando você voltar pra casa passe por favor no açougue ali do lado da estação de trem e traga meio quilo de bife de alcatra e um quilo de sobrecoxa desossada. E café, o pó tá quase acabando.
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Já o suicídio assistido é você dar um tiro na cabeça, ou fazer sua aula prática de harakiri, diante de uma plateia.
Se passar na TV, pode levar o nome de Eutanásia show. Ou O show da desvida.
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Estamos no final de setembro, e só agora me ocorre pensar ou lembrar: as pessoas não gostam de agosto. Resmungam contra ele, maldizem-no. A razão para isso, me contaram um dia, é ter agosto 31 dias e nenhum feriado: é extenso demais, sem o oásis de um dia sagrado ou cívico, e ainda faz atrasar de um dia o pagamento do mês seguinte. Somos assim os homens: transferimos para o mês a nossa tristeza. Ora, agosto nunca me dá tempo de achá-lo chato, fico sempre muito ocupado em agosto. Setembro me parece pior, porque inicia os meses do rap, os meses -bro, os meses que se cumprimentam daquele jeito esquisito, se balangando, fazendo mil coisinhas com as mãos, meses cheios de correntes e anéis e bonés com a pala virada para trás. Os meses finais, melancólicos e quentes do ano.
Agosto vem de Augusto, imperador romano badass desdenhador da Cleópatra e inventor da palavra Príncipe, pois chamou a si mesmo de Princeps Senatus, o Primeiro do Senado (romano; o nosso senado não tem primeiros e nem segundos, o nosso senado começa nos terceiros, senão nos quartos). É, pois, mês de dignidade régia e até divina, dado que Augusto significa Divino. Querer-lhe mal é correr o risco de incorrer na ira dos reis e dos deuses. Vamos pegar leve com ele no ano que vem.
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Maldizer e amaldiçoar não são a mesma coisa, mas têm a mesma raiz, o latim maledico/maledictio.
O maldizer é brando, é quase simpático: é simplesmente falar mal de alguém, difamar, xingar. Nas cantigas medievais, os trovadores criaram um grupo belo e engraçado, o das de escárnio e maldizer: a da dona feia, velha e sandia é o exemplo conhecido de quase todos.
Já amaldiçoar é maligno, terrível: lançar maldição, destinar ao infortúnio, ao abismo; condenar ao inferno. Ou desgraçar, que quer dizer, entre outras coisas, condenar à danação, ou tirar alguém da companhia das Graças. Ou da Graça divina.
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As Graças são três. Sempre belas, porque ninguém tem por feia uma graça que possua ou receba: Tália, a dos banquetes e festins, faz brotar as flores, e pelo visto é Graça e Musa ao mesmo tempo; Eufrosina, a da alegria, do bom humor, da felicidade; e Aglaia ou Aglaé, a dos enfeites, da beleza, do esplendor. Os pintores da Renascença as retratavam peladinhas ou com togas mui diáfanas, e essa será uma das graças das Graças. Eu disse que eram três, mas, consoante o autor clássico, podiam ser mais, e ter outros nomes. O poeta Hermesíanax, por exemplo, acrescentava àquelas três uma quarta, Paido, que cuidava da persuasão, da conversa macia e sedutora. Homero trouxe os nomes de outras duas, Cáris (a mesma Aglaé) e Pasitéia, que cuidava do descanso, da sombra e água fresca. E Pausânias veio com cinco nomes diferentes: Auxo ou Auxésia, responsável pela floração da primavera; Hegêmone, que cuidava dos pomares; Talo, que, parece, dividia o serviço de Auxésia; Phaena, que cuidava da luz; e Cleta, que não sei bem o que fazia.
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Já a Graça no singular, essa é a divina, e não deve ser confundida nem trocada pelas moças gregas – belas sim, úteis não menos, mas insuficientes e poucas. Se fazem muito pela sua distração, não ajudam tanto assim a salvar a sua alma.
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Pensando bem, melhor conservar e andar sempre na companhia de todas, Graças e Graça: beleza, túnicas diáfanas e salvação, combo perfeito.
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Vim morar num quarteirão imenso, cuja calçada se estende por cinco ruas e uma avenida: as ruas do Oratório, Visconde de Inhomerim, Curupacê, Dias Leme e Padre Raposo, e a Avenida Paes de Barros. Dei nele uma única volta inteira, e valeu por uma dessas caminhadas anunciadas pelos velhos a cada semestre mas levadas a termo de forma bienal. O trajeto por essa calçada imensa deve ter quase dois quilômetros e meio (faço a estimativa com a ajuda do Google maps, ou seja, é um chute orientado).
É em forma de ladeira suave, e moro justamente na sua parte mais baixa. Dei nele até agora apenas uma volta inteira, à moda das caminhadas que os idosos anunciam a cada seis meses, mas só fazem mesmo de dois em dois anos. Voltei fazendo aquilo que Anain Nïn chamou, delicadamente, de botando os bofes para fora, mas com uma noção boa do comércio de rua que há nesse quarteirão todo.
Meu pai, quando vinha morar em lugar novo, ou quando ia visitar lugar novo, sempre organizava expedição exploradora. Onde tem padaria? Onde se compra cigarro e vinho? Onde tem pizzaria? E salão de barbeiro? Quais são os botecos decentes? Quais os nomes das ruas? Pra onde vão? E assim por diante. Assim fiz com este quarteirão imenso: fui saber o que ele tem. Casas de material de construção. Padarias. Restaurantes japoneses. Sebos. Casas de “comidinhas” e confeitarias. Sapateiros. Quitandas.
E cães de rua, que te vêem passando espiando tudo e te olham como se dissessem:
— Dr. Livingstone, I presume?
Talvez digam. Eu não entendo língua de au-au.
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Bofe, aliás – hoje estou todo dicionarizante – é uma palavra curiosa. Significa entranhas de animal, particularmente o pulmão do boi. Daí os antigos dizerem de alguém que tinha ou era de maus bofes, ou seja, era ruim por dentro. E botar os bofes para fora, claro, quer dizer perder o fôlego, ofegar, resfolegar. Mas bofe também responde por duas gírias: uma a de pessoa muito feia, geralmente mulher; outra, a de um rapaz jovem e cobiçado por aquilo que um dia se chamou homossexual masculino, e que hoje é identificado por uma das letrinhas da sopa LGBTQQICAPF2K+ (espero não ter esquecido nada; o “2” e o “+” me intrigam um pouco).
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No ano de 2013 eu recebia, às quintas-feiras à tarde, aulas de catecismo dadas por um padre argentino muito simpático, Alejandro Rivero, na capela da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, ali na Vila Mariana. Às vezes, na ausência de Padre Alejandro, o catecismo me era dado pelo bem mais sisudo Padre Daniel Maret. Ficávamos sentados um diante do outro, numa escrivaninha, percorrendo os itens do Catecismo Maior de São Pio X, em formato de perguntas e respostas (daí o Catechism of cliché, do Myles, ser nesse formato também). Lembro com carinho tanto das aulas quanto da alternância de sotaques, o castelhano platense do Rivero, o francês do Maret – fiquei bem desconcertado com a pronúncia dele de Fócio, Fotiú (de Photius), e demorei para entender de quem ele estava falando.
As aulas aconteciam na livraria da capela, que ficava aberta nessa hora e quase sempre recebia a visita de alguém, algum fiel, algum passante. Certa vez, não lembro com qual dos padres eu estava, entrou um camarada com um periquitinho azul nas mãos.
— Caiu da árvore, coitadinho. Peguei antes dos gatos pegarem, mas não posso ficar com ele.
Bonita ideia de levá-lo à Igreja na esperança de que padres tenham gaiolas ou gostem de periquitos, ou que a ideia toda de sacerdócio envolva abrigo, e o abrigo se estenda aos periquitinhos azuis que caem das árvores e não sabem se virar.
Era manso, veio dócil às minhas mãos e aceitou tranquilo as coçadinhas do alto da cabeça que parecem ser o carinho de lei ou padrão para periquitos. Padre Alejandro, porém, não tinha gaiola nem uso para periquitinhos azuis, e nem a capela tinha vocação para ser esse tipo de santuário.
— Por qué nó lo lévas, Orlándo? – perguntou padre Alejandro.
Porque o estirão da Vila Mariana a Itaquera, ainda mais no finzinho da tarde, era penoso. E ademais eu ia levar o bicho de que jeito? Na mochila?
— Êço reçôlbo chô.
Foi lá pra dentro e apareceu com uma caixa de madeira, na qual o periquito cabia folgado. Pensei: tá bom. Madame Tosetto gostaria do bichinho, e tínhamos, afinal, uma gaiola sem uso. Uma gaiola, duas cachorras e um gato: o coitado ia ter que ficar confinado.
Na viagem, comprida, ruidosa, apertada, ele foi ficando assustado e indócil. Quando finalmente chegou em casa, já não confiava mais em mim. Foi quase com alívio que se meteu na gaiola, limpa com cuidado para recebê-lo e abastecida de água e uma folha grande de couve.
Viveu conosco por três anos e duas periquitas esposas (suspeitamos que assassinou a primeira; nunca conseguimos provas), até que num dia de distração fugiu pela porta da gaiola esquecida aberta. A segunda esposa não fugiu junto com ele, e sirva esta circunstância como atestado do caráter do azulzinho, Clyde sem Bonnie, fugitivo e sozinho.
Às vezes penso no destino triste de um periquito azul nos telhados de Itaquera, em seus muitos sustos, em suas aventuras indesejadas e involuntárias. Periquitos não morrem só nas garras de gatos, mas nas de cães também. Ou na chuva, ou no frio, ou até de medo ou palpitação. Periquito infarta, sim, senhor.
Era mau, era azul, era fujão. Se deu sorte, se fez confundir por algum tempo com o céu e foi escapando, escapando – até, como nós, não escapar mais.
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Há alguns anos, minha mulher ouviu e curtiu uma música do Barão Vermelho chamada, se não me engano, Por você. Gostou mais da letra do que da melodia tênue, difícil de cantarolar. A letra consiste na lista das coisas que o “eu lírico” do cantor está disposto a fazer pela amada. Por exemplo:
Por você eu dançaria tango no teto,
eu limparia os trilhos do metrô,
eu iria a pé do Rio a Salvador.
Foi quanto bastou para eu chamar essa música de Melô do mentiroso. Minha mulher riu, concordou, e replicou:
— Mas a ser assim, meu querido, toda e qualquer canção de amor vai ser sempre um melô do mentiroso.
E continuou ouvindo e gostando do Barão Vermelho. Justo: em matéria de lucidez emocional, as mulheres estão sempre voltando com a pamonha enquanto nós rapazes ainda estamos pensando em ir plantar o milho. Esqueci o assunto e a derrota por muito tempo. Então, dia desses, pus para tocar um dos discos excelentes gravados por Frank Sinatra com os arranjos de Nelson Riddle (sua melhor fase disparado), Songs for swingin’ lovers!, de 1956. O swingin’ e a exclamação do título indicam que o disco é upbeat, “pra cima”, destinado a ajudar os casais jovens de 1956 a swingar (no bom sentido). Faço notar isto porque naquele tempo, de 1954 em diante, Frank alternava discos assim, “pra cima”, com obras-primas da fossa, do buraco, como In the wee small hours , Where are you? ou Only the lonely, porque sofria as dores dos cornos postos por Ava Garner (“o mais belo animal do mundo”, no dizer do gay Jean Cocteau) e seus toureiros em sua ampla fronte. Bem, botei o disco dos swingin’ lovers, cuja capa, a propósito, mostra Sinatra sorrindo, a modo de quem dá sua bênção, ante um casal agarradinho, e comecei a prestar atenção nas letras, geralmente muito boas. E tudo confirmou a senhora Tosetto: só dava melô do mentiroso. Vamos a alguns exemplos.
And so I'm borrowing a love song from the birds/to tell you that you're marvelous,/too marvelous for words (“E aqui estou eu, roubando dos passarinhos uma canção de amor pra te dizer que você é maravilhosa demais, maravilhosa demais para se pôr em palavras” – Johnny Mercer exagerando bem em Too marvelous for words).
If the nightingales could sing like you,/they'd sing much sweeter than they do,/for you brought a new kind of love to me (“Se os rouxinóis cantassem como você, o canto deles seria muito mais doce, pois você me mostrou um tipo novo de amor” – ora veja, os tipos antigos de amor não dão conta do que a madame proporciona, para não falar do canto dos rouxinóis. Culpemos por essa extrapolação o sêo Irving Kahal, pois é dele a letra de You brought a new kind of love to me).
Without thinking twice/I left her and threw away the key to paradise (“Sem pensar duas vezes eu a abandonei, e joguei fora as chaves do paraíso” – por boa que a moça fosse, ô Billy Rose, autor da letra de It happened in Monterey, duvidamos seriamente dessa sua afirmação).
Há muitos exemplos mais, espalhados por outros discos, mas estes chegam, creio, para dar o ponto por provado. Canções de amor são melôs do mentiroso, tanto faz se o mentiroso é o Frejat, o Waldick Soriano ou o Johnny Mercer. Mas é como dizia um outro mentiroso dos mais famosos, gravado aliás pelo Frank décadas depois: what’s wrong with that? I’d like to know, ‘cause here I go again: I love you.
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Não, amigo, eu não te amo, mas tenho a maior das simpatias por você, e simpatia, já diziam os foliões, é quase amor. Simpatize comigo também, e reforce essa simpatia lendo minha crônica desta semana na Crusoé. E abandone essas mesas-redondas de palpiteiros desinformados: vá aprender mais sobre a bocha e o bolão assistindo o imperdível Trocando as Bolas, o programa de esportes definitivo para quem não liga nada para esportes, mas gosta dar risada com gente simpática e humor inteligente. Cortesia do Carlão, do Luigião e do Quinto Elementão:
Uma "coluna" que cita Frank Sinatra e Bocha certamente me prende. "Cronistas de Substack" substituíram as tiras diárias no meu gosto como entretenimento casual.
"Nosso senado começa nos terceiros" kkk