175. Ler; ultraconservadores; dóricos; surras; treino; imprensa; redes; dorama; Brasil; vestido de flor; ai-Jesus; Ginger Baker; tempo; idiomas
“Como ensinar o brasileiro a ler? Escritores respondem.”
Tanto melhor se os escritores que responderam também souberem ler. Tenho esperanças, mas achei melhor não conferir.
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Quem fala em “ultraconservadorismo” quer dar a impressão de que se dá bem com o conservador normal, faz hi-five com o conservador normal, toma uma breja com o conservador normal, vai pro samba com o conservador normal, é um poço de tolerância para com o conservador normal: o conservador normal chamado Tábata Amaral.
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Quando era menino, li em Monteiro Lobato – salvo engano na História do mundo para as crianças – uns parágrafos comparando os capitéis coríntios desfavoravelmente aos dóricos. Não vou me lembrar dos termos; faz anos que li. Parece que contrastava a pureza sóbria e elegante das linhas dóricas a um exagero folhudo e encaracolado dos coríntios. Era quase como se, em língua de hoje, chamasse os coríntios de bregas.
Anos depois, já adulto e meio envolvido com uns místicos, os ouvi falar qualquer coisa boa acerca dos “dórios”, e de imediato pensei em capitéis e em colunas com linhas sóbrias e puras. Não era, claro, nada disso, ou era, mas no plano das espiritualidades místicas e tal, nas quais os “dórios” seriam muito bacanas; mas o ensinamento do Lobato pôde mais do que o ensinamento dos místicos, de tal modo que até hoje não sei do que falavam os místicos, e me pergunto sempre se existiria um misticismo coríntio.
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John Lennon largou a carreira por uns anos para ficar em casa fazendo pão e criando o moleque que teve com d. Ono. Dodói eterno dos bons de coração, suspeito que ele devia ser como essas mães que amamentam sentadas na guia da calçada e querem deixar que as crianças escolham seus gêneros.
Ele era uma mãe tão moderna, tão Chrissie Hynde, que (li por aí) torturava o filho impedindo-o de comer doces. Imagine, pleno Cosmo & Damien e o molequinho tendo que chupar berinjela ou sei lá o quê.
Se você estranhou a menção a Chrisse Hynde, saiba que ela proibia a prole que teve com o pobre Ray Davies de comer hambúrguer.
Bons eram os pais de antigamente, que nos davam pirulitos Zorro, salsichas e chineladas.
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Quando foi que as pessoas pararam de dizer que vão fazer exercício e começaram a dizer que vão treinar? Por que piorar o que já é ruim?
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Paulo [Silveira] renascia nas eleições. Samuel [Wainer] entregava o jornal [Última Hora] a ele. Na eleição de 1960, para governador, em que Carlos Lacerda era considerado imbatível, Paulo e eu pusemos palavras extremamente provocadoras na boca do candidato das esquerdas, Sérgio Magalhães. (...) Sérgio ia reclamar com Samuel da nossa perfídia quando lhe vieram as pesquisas de opinião mostrando que tinha subido vários pontos. Perdeu a eleição por 22 mil votos. (...) O jornal se transformava num panfleto de boa qualidade. (...) Acabamos com a candidatura de Juracy Magalhães a senador (...) e certamente contribuímos para que Brizola fosse o deputado mais votado da história (...). Bons tempos.
Paulo Francis, Trinta anos esta noite, páginas 55/56 da primeira edição.
Bons tempos. Panfleto de boa qualidade. Acabamos com uma candidatura. Eu gosto demais do Francis, li tudo dele; mas, como vê o amigo, não é de hoje que a imprensa, hum, age. A diferença é que hoje também tem umas instituições dando uma segurada no twitter até depois do pleito.
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E olha que a imprensa e as instituições ainda não puseram o olho na rede tiquetóque. Talvez porque essa seja chinesa.
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Personagens de dorama coreano, segundo a minha visão dessas coisas:
aquele gordinho que tá em tudo que é filme;
o Beatle que passa batom;
a magrela do botox (todas e qualquer uma).
Inclusive, ver dorama já é ato bem doramático.
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O Brasil é o país onde a puta goza, o traficante cheira, o feirante come a banana e o satanista se apaixona.
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Missa de domingo, distraído por homilia longa demais, surpreendo a mim mesmo prestando atenção em quantas mulheres se vestem com vestidos de estampa de flor. Quantas mulheres e quantas meninas. Gosto de mulher de vestido ou de saias, sempre achei vestido mais bonito (mesmo vestido feio), e nunca tinha reparado em quantos deles têm estampas de flor.
No banco à minha frente, a mulher adulta está com um marrom; sua filha, de não mais de cinco ou seis anos de idade, um claro, meio amarelo (as flores são pequenininhas). Dois bancos adiante, outra, já madura, leva um branco com estampas de rosas. Outro, mais à frente ainda, é azul, e o tipo de flor desafia minha miopia. Nos bancos do outro lado da nave é a mesma coisa.
Pensei que nós, marmanjos latinos, raramente vestimos camisa com estampa de flor, até mesmo nas nossas praias (os americanos e europeus parece usam mais, nem que só nas praias dos outros). Achamos brega em nós, barbudos. Talvez tenhamos razão. Nelas ficam muito melhor.
A homilia acaba, soa o credo in unum Deum, e as estampas de flor continuam comigo, bênção pequena pro distraído.
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Um Hobsbawm do século XXIII escreverá sobre nosso tempo sob o título A era do ai-Jesus.
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Assisti Beware of Mr. Baker, “Cuidado com o sr. Baker”, documentário de 2012 feito com, e a respeito de, “Ginger” Baker, baterista lendário de Alexis Korner e da Graham Bond Organization, do Cream, do Blind Faith, de um grupo solo inacreditável de bom e hoje quase desconhecido, Ginger Baker’s Airforce, de um disco ao vivo tremendo com Fela Kuti, de discos com o hard rock do Baker-Gurvitz Army e de uma infinidade de colaborações, das quais a mais estranha foi com o Public Image Ltd. do Johnny Rotten.
É um documentário triste. Começa com Ginger Baker quebrando o nariz do diretor Jay Bulger com uma bengalada (e depois se recusando a pedir desculpas). Baker é entrevistado enquanto vivia numa fazenda na África do Sul (o título do documentário é tirado de um aviso na entrada da fazenda, “Cuidado: sr. Baker”, como se ele fosse, e era mesmo, um cachorro bravo), na companhia de uma mulher, as crianças dela, vários cavalos de pólo e seus tratadores.
Conta-se sua vida cheia de peripécias, seus vícios, suas brigas, seus divórcios, suas opiniões fortes e geralmente derrisórias de outros músicos e bandas de rock do seu tempo, sua incapacidade geral de administrar dinheiro e negócios, em suma, sua alma de sir Richard Burton. Um homem irascível e triste que, a gente acaba percebendo com um nó na garganta, jogou pela janela quase todo o amor que recebeu.
Na época em que me tornei ouvinte de música pop e rock, os discos do Cream estavam fora de catálogo no Brasil; só vim conhecê-los quando me foi possível comprar um tocador de CDs, já nos anos 90, muito tempo depois de ter conhecido, por exemplo, Neil Peart e Billy Cobham, Phil Collins, Bill Brufford e Barriemore Barlow, e os caras do jazz: Max Roach, Art Blakey, Tony Williams, Jack deJohnette. Talvez por isso Baker não tenha me parecido um baterista extraordinário (bom, sim; extraordinário, não). Precisei ver vídeos de outros bateristas explicando que praticamente tudo o que aconteceu na bateria do rock e do pop (e da fusion) foi antecipado por ele nos dois anos de Cream para que eu compreendesse o que ele foi.
O documentário está no tutubas, e tem versão com legendas em português. Fica a dica.
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Uma das coisas que Ginger Baker diz no documentário, com voz irritada, é que ele got time. Ou seja: ele tinha o senso de tempo inato, natural, o que em matéria de ritmo é quase tudo. Ele tinha um metrônomo interno. Jack Bruce, o baixista, seu parceiro e seu inimigo amoroso de vida inteira, também tinha. A brincadeira mais comum dos bateristas, a roda de bobo dos músicos que atingiram um certo nível, é “puxar o tapete” dos baixistas com quebras de compasso e trocas de andamento repentinas. Isso era impossível com Bruce, que nunca dependeu da bateria para manter seu andamento. Por isso os dois se respeitavam e formavam a cozinha mais impressionante do rock.
Baker e Bruce dizem que isto de tempo é coisa com que se nasce: você tem ou não tem, tertius non datur (embora treinamento, metrônomo e solfejo ajudem, claro). E não respeitavam músicos que não o tivessem.
Seja em que campo for, o mundo da alta performance é cruel.
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Vou andando pelo mercado e ouço duas mulheres conversando animada e inesperadamente alto em árabe. Um pouco adiante, um casal se desentende em castelhano: são bolivianos. Mais adiante, uma mulher ralha com o filho na forma áspera e desaforada que têm aos meus ouvidos os tons do mandarim pronunciado raivosamente.
Estou de volta a uma vizinhança cosmopolita como a da minha infância. Por este sinal, afora todos os outros, conheço que envelheço e retorno ao berço.
"Estou de volta a uma vizinhança cosmopolita como a da minha infância. Por este sinal, afora todos os outros, conheço que envelheço e retorno ao berço." Muito obrigado, meu querido.
Ultraconservadores devem conversar uma ervilha em lata por 100 anos.