176. Festa; crença; poder; Emilinha Borba; ressignificação; upgrade; cigarro avulso; mictório; bola 7; Bola 7; as 10; paletó; morrer com; busílis; Maria; Prufrock e link
Fui à Festa da Democracia. Não tinha ninguém dançando pelado em cima da mesa depois da uma e meia da manhã, e não acordei de ressaca. Quer dizer: ô, festinha bunda.
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O que querem mesmo que você acredite é que você tem que gostar mais da Constituição e da Democracia do que da sua mãe ou do seu cachorro.
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O Brasil é aquele país estranho onde as pessoas que estão no poder passam o tempo berrando aos quatro ventos o quão perseguidas e oprimidas são.
Perseguidas e oprimidas por quem não tem poder nem sequer para ficar solto ou frequentar as redes sociais que bem quiser.
Ou então berram que são oposição.
— Oposição a quem, Joe?
— A quem quer estar no poder.
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Andei lendo por aí, sei lá como, a respeito de Emilinha Borba, a Rainha do Rádio e a Favorita da Marinha. Minha mãe era grande fã da Emilinha Borba – cujo nome completo, aliás, era Emília Savana da Silva Borba. Vejo fotos antigas dela: beleza morena com um daqueles queixos petulantes, com uma covinha, do tipo que anda raro (Jessica Chastain é um dos poucos exemplos recentes; o da Emilinha, entretanto, estava mais para o da Nigella Lawson).
Nunca a ouvi cantar; quando conheci o rádio, as rainhas, se rainhas houvesse, eram outras. Também nunca a vi se apresentando, com ou sem banda naval. Apenas o som de seu nome, Emilinha Borba, me soava como uma inversão de Abobrinha. A culpa disso é minha e só minha, ó Emilinha: eu sou um homem de muitas abobrinhas.
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Ressignificar o tomate é sair por aí falando que ele agora é um ovo de páscoa.
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Você entra no cabaré zoado, linha Bar da Cacilda pra baixo, chega pra dona e reclama da sujeira e do mau-cheiro. Ela aponta na parede o cartaz: upgrade to paid.
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A tristeza que é comprar cigarro avulso. Lembro da minha surpresa quando me dei conta dos ambulantes que vendiam cigarros avulsos, copinhos de café e dosezinhas de cachaça nas manhãs ainda frias de São Paulo, no fim dos anos 80. Estranhei menos o café e a cachaça (cujo preço nos ambulantes não era menor do que nos botecos, aliás, e cuja existência se justifica: o camarada se aquece, seja com isto, seja com aquilo) do que o cigarro: por mais taxado que fosse, maço de cigarro sempre custou barato. Mas só ter dinheiro para um ou dois cigarros avulsos me pareceu a antecâmara da miséria.
Eu sabia, é claro, muito pouco a respeito de miséria.
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Palavra que se tornou rara: mictório. Hoje perguntamos pelo toalete, pelo banheiro, até pela casinha. É certo que mictório não designa o banheiro ou o toalete em si, mas sim só aquela parte dele, de louça ou metal, onde o amigo, a amiga, vai despejar os coados do seu corpo. Por metonímia, entretanto (ou será por sinédoque? Nunca sei direito), estendia-se ao local o nome do aparato. Acabou esse hábito, que ainda peguei.
Outro nome do mictório é urinol. Que é também o nome técnico, respeitável, do sempre útil e pouco considerado penico. Lembro de penicos bonitos, de metal esmaltado (havia marmitas feitas do mesmo material, a propósito – uma das razões por que sempre odiei marmita), que soltavam um tinido bonito quando eram devolvidos ao lugar, no meio da noite. Ficavam embaixo das camas dos velhos, remédio de encrencas que os mais jovens desconhecem. Morto o utente, a família tratava logo de jogar o penico fora, geralmente com o esmalte bem corroído na parte de dentro. Quando os penicos eram mais humildes, de plástico (rosas ou azuis), a corrosão se manifestava de modo diferente: criava asperezas, descascamentos. E neles o odor pegava e não saía mais: o descarte era obrigatório.
Veja o mundo que os mais moços perderam.
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Estando o utente do urinol desenganado, na fase do vai-não-vai, dizia-se, entre outras expressões mimosas e solidárias, que ele estava “pela bola sete”. A expressão vem da sinuca (belo aportuguesamento de snooker), jogo no qual as bolas precisam ser encaçapadas pela ordem dos seus números, sendo a sete a última. É um jeito menos feio de dizer que alguém está no bico do corvo, esperando a carta de São Pedro ou o Homem (Deus) soprar o apito.
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Bola 7 foi também um violonista brasileiro muito reputado, ainda que pouco conhecido aqui entre nós, no meio do jazz americano entre os anos 60 e 80. Tocou com Vince Guaraldi, por exemplo (mas não nos discos do Charlie Brown, até onde sei) e teve carreira solo. Se o amigo ficou curioso, recomendo alguns discos: Autêntico, gravado aqui em 1962 e cheio de maxixes; o estupendo Bola Sete at the Monterey Jazz Festival, de 1967; ou o introspectivo Shambhala moon, de 1982.
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Uma vez encaçapada a bola sete, outra expressão de jogatina dava conta do passamento: dizer que o encaçapado “bateu com as dez”. Essa vem do carteado, do jogo chamado cacheta, no qual se bate com nove cartas ou com dez – se bater com dez, entretanto, a vantagem que Maria leva sobre os adversários é maior. Ou seja, é um eufemismo no qual morrer fica parecendo vantajoso, vencedor.
Pessoalmente, prefiro outros, fora do mundo do jogo: abotoar o paletó, vestir o pijama de madeira, comer grama pela raiz, entrar no chão de costas, bater as botas, ir para a terra dos pés juntos, esticar as canelas.
De todas essas, “abotoar o paletó” é a de que mais gosto. É verdade que cada vez menos se usa paletó (eu mesmo não uso quase nunca), mas era da etiqueta abotoá-lo quando se ia embora de algum lugar, ou quando se ia ser apresentado a alguém digno de consideração ou respeito (e a Morte é algo ou alguém a se levar a sério).
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Abotoar o paletó em sinal de respeito: na bela animação Vidas ao vento, do gênio Hayao Miyazaki (gênio mesmo, viu? Gênio mesmo), o protagonista Jiro Horikoshi sonha que está numa aeronave, um biplano todo aberto, na companhia de seu ídolo, o projetista aeronáutico italiano Giovanni Battista Caproni. O Caproni chama Jiro para apresentá-lo à esposa, que também está no avião (é um sonho, caramba); eles vão caminhando pela ventania e Jiro, cortês, vai andando e abotoando o paletó – sinal de seu respeito pela senhora que ia conhecer.
Tanto Giovanni Caproni quanto Jiro Horikoshi existiram mesmo. O primeiro fabricou aviões na Itália desde 1908, projetou muitos bombardeiros e virou conde (como o Matarazzo e o Crespi por aqui; hoje seria, como eles, execrado); o segundo projetou os aviões Mitsubishi A5M e A6M Zero (o dos camicazes), usados pelo Japão na II Guerra.
O desenho é uma lindeza, e o amigo ganha mais em vê-lo do que me lendo. Vai lá.
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Ainda nos tratos da morte, do dinheiro e da miséria: quem fazia um gasto mais salgado dizia que “morreu com”, ou “na”, quantia despendida. Não conheço a origem da expressão, mas nem é preciso saber – gastar é morrer: “Morri com cem reais na vaquinha do casamento do Zé”, “morri com duzentão na conta de luz”.
Ganhar, entretanto, não é necessariamente viver.
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Também houve tempo no tempo em que as questões tinham seus busílis. Ou seja: tinham seu cerne, seu ponto fulcral, seu nó, seu centro de dificuldade. O Aurélio dá o étimo dessa palavra possivelmente na expressão latina in diebus illis, que quer dizer “naqueles dias” (penso no in illo tempore dos Evangelhos), mas isso não parece fazer muito sentido; entretanto, a palavra não pode ser usada na periferia de São Paulo, onde a jeunesse dorée local certamente a confundiria com buso ou busão, enfim, com o transporte coletivo.
Em todo caso, as questões e seus nós permanecem; o busílis, esse cada vez menos.
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Quando menino li, numa biografia (melhor dizendo, numa nota biográfica, o equivalente editorial do “resumão” dos alunos do segundo grau) de Cervantes, que ele foi ferido na batalha de Lepanto. A nota biográfica já era então antiga e não dizia que Cervantes era gay (hoje algumas dizem que era; hoje, parece, raro é quem não era), mas também não dizia o que aconteceu em Lepanto, e nem sequer onde ficava. O nome me sugeria o México, ou um mexicano de bigodões e aquelas cartucheiras cruzadas no peito chamado Don Lepanto, el espantoso.
Hoje sei, é claro, o que sucedeu e por quê. Sei também quem foi Ali Pachá, que, em imaginação, podia figurar como o Omar Shariff (não seria tão errado). Outubro é um mês interessante e mariano, não? Dia sete, anteontem, foi o dia nacional do rosário da Virgem Maria; dia 12, sábado, é o dia de Nossa Senhora Aparecida. Meu pai e meu irmão nasceram nesse mês – para quem acredita nos horóscopos, os dois são de Balança (ninguém falava Libra antigamente; falavam Balança). Se em mais nada, ao menos fisicamente são parecidos.
Ousarei, ó outubro, esperar um milagre?
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Ou ousarei comer um pêssego? Andar pela Bertioga com calças brancas de flanela? Ouvir sereias cantando umas às outras? Ou vozes humanas virão me acordar?
Tempere o suspense, amigo, lendo minha crônica nova na “Crusoé”, e se eu não aparecer semana que vem, já sabe: me afoguei.
Eu fui na festa da,democracia.
Praça da Sé lotada.
Sapato, calça jeans, camiseta,bandeira diretas já
Eu fui no festa da democracia, agora não tenho sapato, roupa não me servem mais, os braços e pernas se cansaram, a morte da Democracia está sendo lenta e demorada.
Minha geração?
Morreram todos, ou estão a morrer...
Minha descendência, já não acredita e foge deste país.
Eu estou cá publicando minhas memórias a cada dia que amanhece.
"do gênio Hayao Miyazaki (gênio mesmo, viu? Gênio mesmo)" Sou obrigado a concordar.