177. Percentuais; compreensões; hermenêutica; hiperfoco; iê-iê-iê; o padre e as bombas; Nobel; Pantelis; prosa; link
30% do que as pessoas chamam de fascismo é só mau humor.
Outros 30% são problemas fonoaudiológicos.
Outros 30% é gozação.
Dos 10% restantes, metade é gente falando de homeopatia.
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“É preciso ter uma nova compreensão do cristianismo”, diz um senhor nada familiarizado com nenhuma das compreensões anteriores à dele.
Aliás, esse é o caso sempre que alguém aparece falando em “nova compreensão” do que quer que seja.
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Hermenêutica freestyle, aliás, já deu heresia até dizer chega. Isto foi relembrado a Lutero por Caetano, quando lhe disse:
— Ô, Martinho, você tá careca de saber que 99% das heresias vieram de malucos fazendo leituras alopradas da Bíblia.
Triste é o estoque de malucos se renovar mais e mais depressa do que o de Atanásios.
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Tenho ouvido falar muito em “hiperfoco” ultimamente, e, até onde entendo, é nome novo para “mania”.
Não me desengane.
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Hoje se fala pouco ou nada em iê-iê-iê, e olhe que já foi um gênero musical reconhecido a ponto de entrar em marchinha de Carnaval:
Mulata bossa-nova
caiu no hully gully
e só dá ela,
iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê, iê,
na passarela.
Tudo bem que a plena compreensão da letra exija uma hermenêutica de que me confesso incapaz, mas tá lá o iê-iê-iê. Eu gosto muito de hully gully ser pronunciado com rále-gále, o que me remete a rabo-de-galo, mas isso sou eu e a minha circunstância.
O iê-iê-iê, que já fez parte inclusive do nome da banda dos Titãs, é parte do refrão de She loves you, dos Beatles, e se grafa, no inglês materno, como yeah, yeah, yeah. Verbis:
She loves you, yeah, yeah, yeah,
she loves you, yeah, yeah, yeah.
With a love like that
you know you should be glad.
Ela te ama, iê-iê-iê, ela te ama, iê-iê-iê, e um amor assim é pra te deixar felizão. Não é letra na pegada de Noël Coward ou Ray Noble, porém dá lá seu recado. E soa como ié-ié-ié, mas nós somos um povo triste e anasalado, paciência. Do sucesso dessa canção o Brasil batizou o gênero iê-iê-iê, e até um filme dos próprios Beatles: Os reis do iê-iê-iê, versão nacional para A hard day’s night. Esse ficou sendo também o nome do LP – quando comprei o meu, nos priscos anos 80, ainda levava o nome absurdo em português.
Enfim, perdemos nosso latim e nosso iê-iê-iê. Pioramos como nação, essa é a verdade, mas nisto pioramos com o resto do mundo, também ele sem latim nem iê-iê-iê.
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Um dos padres de São Rafael Arcanjo, na Moóca, que acompanha a reza do Terço dos Homens nas quartas-feiras à noite, é italiano e bem velho. Eu também vou envelhecendo e ainda não consegui ter certeza do seu nome, mas creio ser é Victor, daí o chamarem, é claro, de Vito. Ele é divertido: suas prédicas, nunca extensas, não dispensam as brincadeiras, as doses de bom humor. Noutro dia, nos disse ter comemorado há pouco os 70 anos de seu diaconato, que se deu, portanto, em 1954. Duvidei um pouco dessa data, porque faz dele praticamente um nonagenário, e, embora velho, não parece tanto; mas então ele nos contou uma coisa triste.
A paróquia organizava uma carreata para o dia de São Rafael (neste ano, caiu no domingo, 29 de setembro – a festa, na verdade, é dos três arcanjos: Miguel, Rafael e Gabriel). A saída ou a chegada da carreata, não lembro bem, seria acompanhada do espocar de uns rojões. Ao saber disso, o padre disse que não acompanharia o festejo nem rezaria a missa que antecederia a carreata.
— Vocês vão me perdoar – disse ele, com um sotaque leve –, mas eu não posso com foguetório. Eu era criança no tempo da guerra, em Milão, e os fogos me lembram dos bombardeios. Tinha muitas explosões bem perto da nossa casa. Eu tinha muito medo, e devo ter pego trauma. Vocês vão, façam sua festa, e eu fico escondidinho e rezo a missa da noite.
Uma pesquisa rápida na internet mostra que Milão foi muito castigada por bombas em agosto de 1943. Se dermos ao padre, naquela data, seus 8 anos, temos que nasceu em 1935. Isso torna plausível um diaconato em 1954, e lhe dá 89 anos de idade. Me envergonhei de ter duvidado dele. Mas, caramba, eu duvido até da minha sombra.
É triste ter vivido sob bombardeio e o medo não passar nem diante de uns traques na modorrenta Moóca de domingo, mais de oitenta anos depois. A gente só percebe a nossa sorte quando sabe do azar dos outros.
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O Nobel de literatura não é, ou nem sempre foi, ruim ou mal dado. Depois de o terem dado lá à senhora coreana, fui espiar a lista dos laureados e descobri que já li mais deles do que acreditava.
De Kipling li pelo menos um bom conto de terror, A volta de Imray. De Tagore, mais um ou dois contos, cujos nomes e enredo não lembro mais, mas dos quais gostei quando li. Li Yeats, é claro, coisas soltas, aqui e ali; não tenho nenhum livro dele. De Shaw, li e tenho a boa coletânea de cartas, pequenos artigos e prólogos de peças compilada pelo Daniel Piza, nos anos 90. De Thomas Mann, tataravô do sr. André Falavigna, li Morte em Veneza e tenho há décadas A montanha mágica à minha espera. De Pirandello li o bom Mattia Pascal. Li e esqueci alguma coisa de Hermann Hesse. Li Eliot, é claro, e o tenho na tradução muito contestada de Ivan Junqueira. Tentei ler Faulkner, e não deu. Li um bom tanto de Bertrand Russell, que pareceu ser um adolescente de cento e dez anos. Li Hemingway e gostei; a mesma coisa, mas um pouco menos, com Camus. Li Steinbeck, e bleh. Li Sartre e dei risada. Li um pouco de Neruda: assim, assim. Saul Bellow e Isaac Singer são tão preciosos quanto Eliot; li e tenho os dois. Li García Márquez, e é tão melhor quanto mais distante de Cem anos de solidão. Joseph Brodsky e Octavio Paz ombreiam com Eliot, Bellow, Singer. A mesma coisa com Wislawa Szymborska e com V. S. Naipaul. Llosa está um ou dois degraus abaixo, mas também é muito bom. Bob Dylan ouvi, não li, e é melhor que seja assim.
Até agora, nisto fiquei. Não tive interesse nem curiosidade de ler nenhum dos laureados de 2011 para cá, mas isso bem pode mudar já no ano que vem. Basta voltarem a premiar escritores.
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Em 1991, ano do meu casamento, visitei a loja de sacaria que o meu amigo Pantelis tinha na rua Inácio de Araújo, de frente para o metrô Bresser. Ele e a família tinham tido uma loja de calçados na Rua Cavalheiro, negócio que foi à breca algum tempo antes, e haviam migrado para o comércio de sacos. A sacaria era um negócio simples: compravam-se sacos de aniagem, desses que soltam fiapos e acomodam café e outros graneis, lavavam-se, alvejavam-se, e assim beneficiados punham-se à venda, já nem sei para qual finalidade. Não encalhavam e o lucro era bom. A família dele eram pai e mãe gregos, mais ele, irmão e irmã nascidos aqui. Seu nome era todo grego: Pantelis Athanase Kalogirou, inversão do de seu pai, Athanase Pantelis. Gostávamos de irritá-lo chamando-o de Atanásio, sempre em caixa alta: ATANÁSIO! Quando estávamos de bom humor, dávamos-lhe o apelido que o agradava e soava vagamente selvagem de Panter. Era grego de uma maneira talvez convencional: meio aloirado, muito magro, nariz adunco, com uma mancha vermelha no lado esquerdo da cara, fruto de algum acidente em seu parto. Usava óculos arredondados e cabelos compridos: sua figura seria um pouco como a do Sérgio Dias tentando se passar pelo John Lennon. Assinou seu nome justamente sobre a foto do Lennon na capa do meu LP do Let it be. Era entretanto muito pouco da paz: era engraçado, briguento, arreliador.
No tempo em que fui vê-lo, ainda havia na Bresser, colada à do metrô, uma estação rodoviária inútil, muito mal pensada, com saída unicamente pela estreita Rua do Hipódromo (na época a rua ainda acomodava uma fábrica de cadernos, uma cadeia pública e uma fábrica de calças jeans), da qual partiam apenas ônibus para o aeroporto de Guarulhos (hoje o lugar da rodoviária é ocupado por uma base da Polícia Militar). Fui visitá-lo para lhe dar notícia do meu casamento próximo. Ele riu. “Casar para quê?” Passei lá a tarde aprendendo esse curto negócio da sacaria e relembrando a adolescência. A certa altura, ele abriu uma das gavetas da mesa do caixa e me mostrou um revólver 38; disse que era just in case. Quando, meses depois, me chegou a notícia de sua morte, a relacionei à arma e a alguma dívida de drogas: outros amigos me diziam que ele estava indo fundo no pó, se bem nossos amigos em comum fossem do tipo que exagera esse tipo de conversa.
Morreu de tanto apanhar. Bateram nele o quanto quiseram, desmaiaram-no, talvez o tenham posto até em coma; inconsciente, foi levado a uma delegacia, e lá, antes de ser socorrido, morreu. Essa a história que me contaram. A parte do socorro omitido deve ter sido inventada – por que levá-lo a uma delegacia antes de a um hospital? Isso só seria verdade se não estivesse inconsciente. Mas eu nunca vim a saber de todos os detalhes, dignos talvez de um episódio do Gil Gomes; apenas, o negócio das drogas ficou na minha cabeça.
Então, anos depois, por acidente, encontrei um conhecido daquele lugar e daqueles tempos. Foi mera briga, ele me disse; o Pantelis tinha dado uma surra em alguém, por motivo prosaico ou até sem motivo algum. Esse alguém voltou acompanhado, e sua forra foi exagerada. Nada mais, nada menos. Uma overdose de murros e não de barbitúricos.
Morre-se assim.
Enquanto escrevo evoco o sorriso dele e vem junto sua risada um pouco rouca, um pouco cava, que permanece comigo e cujo som (segundo disse algum cientista entusiasmado, os sons emitidos por nós nunca se dissipam neste mundo e neste universo: continuam vibrando por aí, ondas que se difundem pelo ar, pelo éter, por todo lado) talvez agora esteja fazendo a curva da lua e ainda venha a ser ouvido quando tudo isto aqui for consumido por um sol expandido. Oxalá assim aconteça com o meu riso e com o teu, amigo, esses que demos e que nunca nos serão devolvidos: façam a curva da lua e vão, um dia, ensinar a alguém a graça que achamos em coisas, como nós, esquecidas de todos.
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Temos trocado dois dedos de prosa, não é, amigo? Dois dedos não, cinco dedos. Não, dez – os dez com que mal digito estas linhas. Quem terá tido a ideia curiosa de medir a prosa, como o uísque, em dedos? Dois dedos de prosa, dois de uísque, alternados, nos fazem, já não digo felizes, mas, com sorte, entretidos; com mais sorte, bem entretidos.
A propósito, eis aqui um link que talvez te entretenha: eu, com minha feia figura e minha voz enjoada, desabrilhantando o programa dos queridos Carlão e Luigião, Trocando as bolas, no ar desde hoje:
Que eu tenha a sorte de, seja com esse link, seja com dois, cinco ou dez dedos de conversa entreter-te bem, ó amigo.
Se sim, volte, sim? Semana que vem. Até.
O senhor quando parte pra memória e para o lirismo... Pô, é covardia. Bom demais!
Que texto feliz! Muito bom de ler, cronicaça!