178. Imortal; café-society; paroxítonas; ensino; iPad; Anthony Powell; fotografia; escaravelho; link
“Morre o imortal…”
O Brasil é o maior barato.
* * *
A coisa se chamava café-society, mas acho que na tal society bebiam mesmo muito menos café do que champanhe. Ou melhor, vinho espumante, que nem é vinho, nem é marca registrada de nada.
O que me lembra dos Natais da infância e da sidra (ou cidra? Nunca sei direito) Cereser, que todo o mundo pronunciava, igual a locutor de futebol hodierno com nome de jogador argentino, como paroxítona, Ceréser, mas é mesmo Ceresér. Não vou dizer que fosse uma delícia, faz quarenta e tantos anos que não bebo e a memória de menino me sussurra coisas ruins, mas cumpria seus papéis: auxiliar o tim-tim do réveillon e afoguear a patroa, a namorada ou a recém-conquistada para a boa entrada. Aliás, ainda os há de cumprir. Cereser, Chuva de Prata, todos os espumantes meia-boca deste país espalhafatoso.
* * *
Sim, os locutores brasileiros chamam Sebastiãn de Sebástian, Alãn de Álan, Germãn de Gérman, e estou vendo o dia em que, na boca deles, Roberto vai virar Róberto (proparoxítona, é verdade, mas você entendeu o espírito).
Fora do mundo da bola, tantos já chamam o Oswáld de Andrade de Ôswald, né.
* * *
Por que nossas escolas ensinam inglês e não como matar, carnear e cozer os inimigos da tribo?
(Mas até parece que as nossas escolas ensinam, já nem digo inglês, mas alguma coisa, qualquer coisa.)
* * *
Com o fim do seu mestrado, sobrou para minha filha um iPad velho, velho mesmo, que não atualiza mais o sistema operacional nem nenhum app. Pedi para ficar com ele, e ela deixou. Ora, é a melhor coisa que existe para se ler livros em pdf, muito melhor do que qualquer kindle. Como, ultimamente, venho acumulando muitos livros nesse formato, vem sendo uma mão na roda.
Eu tenho dificuldade de lidar com o iPad: apanho para alternar entre janelas e aplicativos, para fechar aplicativos abertos, enfim, sou e tenho sido sempre, por pobreza, por preguiça, por caipirice, um homem do Windows, e pior, um homem dos desk e lap tops, não dos tabletes. Aos poucos entretanto vou me desalfabetizando das mumunhas desse negócio: corre um dedo e segura, corre um dedo e larga, arrasta dois dedos ali e abre, catuca a borda da tela acolá e acontece outra coisa, enfim, é quase uma aula do Visconde de Valmont. Mas gostei mesmo da engenhoca, a ponto de cogitar comprar uma nova quando essa morrer (essas coisas, como nós, morrem, né?).
* * *
Há pouco tempo achei, justamente em pdf, os doze volumes de A dance to the music of time, de Anthony Powell, livros dos quais ouvi, senão maravilhas, elogios muito calorosos, e que sempre tive curiosidade de ler. Joguei no iPad o primeiro deles, A question of upbringing (título que eu traduziria, neste caso, como Questão de formação). Me meti a ler em inglês, e o livro não tem se mostrado excessivamente difícil (também não é essa facilidade toda, não). Dá para ver que o exemplar foi feito a partir de texto convertido depois de escaneado, e uma que outra letra foi mal identificada: shake bands no lugar de shake hands, por exemplo.
Pesquisei se os livros formam um romance à clef enorme, e o que andei vendo é que não: é antes a memória como matéria-prima da ficção. O protagonista desse livro que estou lendo, e possivelmente o de todos os demais (até onde vi, narrados em primeira pessoa), Nick Jenkins, é seu alter-ego, e parece menos fazer e dizer coisas do que contar as coisas feitas e ditas pelos outros. Contá-las, é claro, muito bem. Hoje, segundo entendi, está menos famoso e falado que alguns de seus contemporâneos: Evelyn Waugh, Malcom Muggeridge, Graham Greene, mas já ombreou com eles em nomeada, e talvez os tenha ultrapassado em vendas.
O artigo da Wikipedia sobre Powell traz uma foto dele no seu casamento. Lembra David Bowie, mas com um sorriso meio fanfarrão, meio esgar de vencedor, de quem parece ter ganho no sweepstake. A noiva, aliás, não parece menos alegrona, mas seu sorriso parece mais feliz do que feroz. Consta que foi muito amigo de Evelyn Waugh, até onde era possível ser muito amigo de Waugh, e também de George Orwell, a quem ajudou. E que tinha fumos de artista plástico: decorou com colagens (parecem colagens) todo um cômodo grande de sua casa, que hoje é lugar de visitação.
O livro: o texto é mesmo o de um observador inteligente que nos explica as coisas que foi percebendo do mundo na época em que terminava sua escola (Eton, não nomeada) e ia começar a universidade, ou seja, aquele comecinho tateante da vida adulta em sociedade. Seu upbringing é o aprendizado que faz nas coisas do mundo: é uma espécie de bildungsroman seco, irônico, witty. Pro meu gosto, muito bom mesmo.
* * *
Como tantas crianças com o corpo cheio daquilo que os velhos chamavam de “bicho carpinteiro”, minha filha detestava ter que posar para fotografias, porque isso implicava em parar quieta – para ela, um estorvo impossível de compreender, duro de aceitar. Daí que ela apareça com cara de emburrada num certo número de fotografias de sua infância – para a nossa alegria, para o nosso senso de fofura (esse que a gente aplica muito aos nossos próprios filhos e nem tanto aos filhos dos outros), bem como o senso de mortificação dela, sejam desproporcionalmente, até injustamente, aumentados.
Como de costume, meu assunto é outro. A mudança de casa só se completa depois de – quanto tempo? Uma década? O caso é que, meses depois da nossa, ainda não cessou de sumir e aparecer coisas. Uma das coisas que apareceram foi uma fotografia que tiramos em família, eu, minha mulher e minha filha, no inverno moderadamente frio de 1996. Fomos tirá-la, à velhíssima maneira, num estúdio de fotógrafo: eu ia fazer uma viagem demorada, de alguns meses, e queria, em caso de fatalidade, deixar um registro formal desse meu pequeno núcleo e legado neste mundo (eu sou assim, convencional e medroso. Não parece – não, né? –, mas sou).
Lá estamos nós, pois, emoldurados em vidro: minha filha num conjunto de calça e blusa de lã vermelho e branco, cara de muito injuriada, em pé entre mim e minha mulher, ambos sentados, ambos bem mais magros, ambos quase trinta anos mais jovens.
Olho para nós dois, o casal, e não é como se de repente sentisse todo o peso dessas décadas. Não, não é isso. Pode ser coisa minha, mas sinto o peso dos anos de outros modos, não de sopetão, como se, ao olhar uma foto, eles caíssem em cima da minha cabeça como um piano ou uma bigorna de desenho animado. Não: o sinto aos poucos, nas cada vez mais coisinhas que, cada dia mais, vão falhando, vão faltando, vão ficando difíceis e, já, já, impossíveis. Vou sentido mais ou menos como a gente sente um ocaso que, de início, parece gentil, mas, à medida que avança, se mostra inflexível, inexorável, imutável, inadiável, e que, ainda assim, não perde a gentileza de nos avisar que, olha, o negócio é assim mesmo, e te segura aí que é pirambeira e vai ficando mais e mais escorregadio.
Insisto: não é isso. Olho para nós dois e nos vejo mais jovens, e mais sérios, e mais medrosos, com aquela criança irritada entre nós acabando com todo o sentido de bagunça da vida. Eu os vejo mais inteiros, menos macilentos, preocupados com dinheiro e moradia e todas as coisas que era preciso observar e fornecer àquele ser chateado de ser fotografado, e lamento um pouco aquela tensão, aquele susto súbito da responsabilidade. Relembro um pouco das durezas, das penúrias, e também das felicidades dos anos que se seguiram, e penso que todas aquelas comparações meio ridículas, meio clichezadas que se fazem sobre a vida – como, por exemplo, a de uma navegação, ou a de uma viagem improvisada – são verdadeiras. Vejo nos meus olhos, naquela foto, nos meus olhos que me fitam de volta, as seguintes palavras:
— Sim, eu sei quem você é, e tinha esperança de que você tivesse ficado diferente. Que diabos aconteceu?
— Aconteceu o que vai te acontecer – respondo de mim para comigo.
Mas como eu poderia explicar a ele o que ele não sabia e eu agora sei: que o destino não é inexorável, e que eu, portanto, não sou inexorável, que só me tornei tão definitivo por causa dele, e que se ele mudasse algumas coisas na vida dele eu talvez não estivesse aqui agora, olhando-o e escrevendo esta crônica? Como fazê-lo entender que sou, em boa parte, fruto e resultado dele? Eu o conheço: ele não entenderia. Ia tratar como obviedade boba todas as coisas nada óbvias que não seria capaz de perceber. Eu sigo sendo uma besta, mas, naquele tempo, era um tipo diferente de besta.
Embora talvez não soe assim, escrevo tudo isto sem um pingo de melancolia. Lembro daquele tempo e penso que mesmo agora, num ponto bem mais baixo da pirambeira, estou mais tranquilo, mais relaxado, menos tenso e mais feliz. Somos sim a soma de erros e acertos; se eu pudesse voltar e conversar com aquele camarada da foto, diria a ele: olhe, você acertou mais do que errou – chegamos lá. Ainda há caminho, não sei quanto, mas há, e pois muita chance de errar, mas até que não fomos tão mal.
Eu o conheço: ele não ia acreditar em mim. Mas já não depende mais dele.
* * *
O “bicho carpinteiro” é um dos nomes do escaravelho, por sua vez uma espécie parruda de besouro. O bicho carpinteiro rói a madeira, já não sei se como refeição, se como lugar onde procriar, se ambas as coisas; daí que quem não pára quieto é como se estivesse sendo roído pelo bicho.
Dizem também que a expressão é corruptela de “estar com bicho no corpo inteiro”. Não acredito, porque já a ouvi na forma “estar com bicho carpinteiro no corpo”.
Escaravelho soa mais terrível, mais poderoso, mais supervilão do que besouro (cuja pronúncia lá em casa era bizôrro). Li a palavra pela primeira vez num conto de Edgar Alan Poe chamado “O escaravelho de ouro”, e como Poe pesa na nossa imaginação, especialmente se lido em criança, ficou-me essa impressão de bicho mais terrível do que realmente é: uma Joaninha vitaminada. Joaninha que mereceu uma quadrinha infantil, assim:
Joaninha, voa, voa,
que o teu pai tá em Lisboa
com um rabinho de sardinha
para dar à Joaninha.
Dizem que, ao ouvir isso, ela, bobinha, sai voando, sem se importar com quão longe Lisboa esteja.
* * *
No mais, amigo, não há mais. Ou há: eis o link para a minha crônica nova na Crusoé.
E até mais ler.
Quando moleque "escaravelho" sempre me remetia ao "Escaravelho do Diabo",livro da coleção Vagalume,e ao "Escaravelho Azul",vilão de um desenho do Scooby-Doo de um episódio de 1979.
Bebi muita Cidra Cerezer e Chuva de Ouro era a coqueluche.
Comprei o primeiro computador um 286 na década de 90 para meu filho de 13 anos.
O segundo um 386 prometi comprar se passasse no exame para o Colegial técnico. Paguei a promessa em 24 prestacoes, Hoje ele pilota de seus computadores as melhores máquinas de radioterapia do Brasil, é Físico Médico Radioterapeuta.
Ele também Chuva de Ouro comigo e com seu amado avô.
Comprei meu Tablet quando meu ultimo neto nasceu, ele aos 2 aninhos ligava e colocava nos desenhos sozinho.
O nosso passado, ficou amigo, dele só tenho o hábito da minha Chuva de Ouro, e das minhas caipirinhas...
Grata pelo texto e pelas doces e não tão doces lembranças.
Compartilho com louvor