18. Cartório - Dr. Palhinha - figueiras - links
Figueiras e lágrimas, não esqueçam das lágrimas
Pressionado pelas chatices da vida, vou a um cartório em pleno sábado de manhã buscar um documento. Chego pouquinha coisa depois das nove. Já há fila do lado de fora: gente indo se casar. Vou entrando, e ouço um sujeito perguntar ao vigia: “Registrá criança, naonde que é?”. Apontam-lhe a sala a que deve ir. E ele vai.
Gente casando, gente se multiplicando. Ainda não é o fim do mundo.
Eu fui Catifundo, de chinelos e carção – quem fica bonito para dar de comer à burocracia? –, e mesmo assim achei jeito de me condoer da toilette humilde de uns casais que vi na fila. Pensei que era uma sacanagem desse cartório de bairro não ter uma sala ou salão onde as pessoas pudessem esperar, em vez de deixá-las expostas em fila na rua. Me perguntei se será que é assim também em cartório de bairro bom.
Aí me ocorreu que em bairro bom quase ninguém mais casa, e só vai a cartório pegar escritura ou, se é que já permitem, registrar o pug.
E me ocorreu também que aquelas pessoas na fila não se incomodavam com a exposição. Até gostavam. Lá detráis daquele morro tem um pé de manacá, nóis vam’ casá, nóis vam’ casá.
E soltei de-mim-para-comigo a frase que faz de você um conservador, mesmo que o amigo ainda não tenha percebido: é assim mesmo.
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Um caso do Dr. Palhinha de Taubaté, o maior detetive que o mundo já conheceu.
O Delegado Dr. Rangel, tirando da boca o palito de dentes que flamejou, distorcido, nas lentes de seus óculos escuros, desistiu. Chamou Mariel, seu investigador, e deu a ordem:
– Vai lá em Taubaté e traz o Dr. Palhinha.
Mariel só apareceu de volta com o homem no dia seguinte. Ante a bronca, se justificou:
– Ele me fez tomar sorvete de milho, me ofereceu cigarro de palha, contou um caso que resolveu prum coreano gordinho, outro que ele resolveu prum russo meio careca. Acabei dormindo por lá.
A vantagem é o Doutor Palhinha chegou já sabendo do “caso do sumiço dos gatos da Rua da Figueira”. Uma mocinha muito nervosa de uma ONG tinha denunciado que os gatos da Rua da Figueira estavam sumindo. Antes dezenas, agora só restava meia dúzia de pingados, assustados, ariscos. Fez um escândalo no plantão, disse que ia chamar a TV se ninguém fizesse nada, disse que ia denunciar nos portais. A mocinha desconfiava de uns sem-teto que tinham se mudado para baixo do viaduto Abreu Sodré, mas não queria que eles fossem presos para não “reforçar os estereótipos”. No impasse, veio o Dr. Palhinha, o maior detetive que o mundo já conheceu.
– Já que eu vim, vamos lá ver o lugar.
No caminho, o Doutor Palhinha comentou que “não acredito que me buscaram em Taubaté pruma merda dessa”; que “agora na polícia só tem trouxa, né possível”; que “só quem gosta de gato é viado e muié”; que “ficam dando atenção pras besteiras que as muié fala e agora tá todo mundo estrepado”; que “ah, é perto do Parque Dom Pedro? Lá a baianada tomou conta”; que “quem manda nocêis é os jornal, né, doutor?”; e que “ainda bem que eu vim junto, né, senão cêis ainda rouba os cara lá, que a polícia todo o mundo sabe como é”. Quando o Doutor Rangel perguntou se o Doutor Palhinha achava que os sem-teto estavam matando os gatos para comer, ele respondeu: “Magina. Esses favelado é tudo cozido de preguiça, nunca que eles ia esfolar e limpar os bicho. O senhor não vê que eles só come lixo e comida que os outros dá? Isso aí é alguma outra coisa. Vamo vê”.
Chegando nos baixos do viaduto Abreu Sodré, o Doutor Palhinha viu um sujeito gordo com uma camiseta de uma escola de samba.
– Quem tá sumindo cos gato é aquele ali. Pode prender.
De fato, na barraca do sujeito acharam as peles de cinquenta gatos. Doutor Rangel se admirava.
– Como o senhor sabia?
– Sambista, ué.
– E daí?!
– Primeiro que nenhum presta. Pior do que sambista, só jogador de futebol. Segundo que o melhor couro pra tamborim é couro de gato.
Que luzes. Que presciência. Quando saiu da Delegacia, levado de volta pelo Mariel, os policiais, em homenagem, atiravam para o alto.
– Gostei – comentou o Doutor Palhinha, se ajeitando no banco para puxar uma paia.
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Doenças na família têm nos levado com frequência indesejável à Rua da Figueira. Para mim, ali ainda (ou já, dependendo de onde o amigo vem) é Brás, onde sou nascido e criado, ainda que o final dela esteja colado à Rua da Moóca. Se você a segue a partir dali, no entanto, passa pela Radial Leste, pela Rangel Pestana, pela Rua Maria Domitila, pela Rua do Gasômetro, e vai se despejar na Avenida Mercúrio. Tudo aí é Brás, que morre (ou nasce; de novo, depende de em que sentido vai ou vem o amigo) na Zona Cerealista.
A rua tirou seu nome de uma figueira que havia ali entre a Rangel e o Gasômetro, mais ou menos no lugar em que hoje fica a Casa das Retortas – lugar por onde, menino, andei tranquilo tantas vezes, e onde hoje até homens armados só passam meio receosos. A figueira era o símbolo de uma chácara, justamente chamada da Figueira.
Afonso Schmidt, no seu “São Paulo de meus amôres” (o circunflexo se explica pelo fato de que o livro foi uma das homenagens, das mais modestas aliás, prestadas ao IV Centenário da cidade, em 1954), conta o seguinte:
“O dono da chácara tinha um filho no Grupo Escolar do Brás. Era meu colega de classe. Certa manhã, no recreio, ele me disse:
– O govêrno escreveu uma carta dizendo para a gente conservar a árvore porque ela é histórica. Papai leu e ficou danado. Disse que êle é quem manda em nossa casa... E mandou botar abaixo a figueira...”
O que se fez, salvo engano, em 1905. Ficou a lembrança dela no nome da rua. E fica para mim e para o amigo a escolha de lamentar a figueira perdida, ou admirar o tempo, já quase incompreensível, em que um paulistano podia mandar o governo ao diabo e derrubar a sua figueira.
Schmidt lamentava a árvore perdida:
“Foi pena. Aquela árvore, em outros tempos, ficava à porta da cidade. À sua sombra, os viajantes do Rio de Janeiro descansavam, mudavam de roupa e se preparavam para subir a Ladeira do Carmo e chegar ao Largo da Sé. Era tão alta e frondosa que levou mais de um mês para ser inteiramente destruída, transformada em lenha. Durante muito tempo São Paulo queimou-a no seu ‘fogão econômico’, que tinha uma sereia de metal amarelo servindo de pegador para abrir o forno... E assim desapareceu, em fumaça e cinza, uma das mais respeitáveis testemunhas do nosso passado”.
Achei na internet esse desenho, datado de 1827, de um certo William Burchell que mostra, talvez, a tal figueira e a casa da chácara (que um dia pertenceu, como tudo por ali, à Marquesa de Santos). A estrada de terra talvez corresponda à Rangel Pestana; a araucária do fundo talvez seja liberdade poética:
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Caso o amigo se interesse em saber, a Ladeira do Carmo é hoje o trecho da Rangel Pestana que desce da Sé até o Viaduto 25 de Março.
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Agora, se o amigo ficou triste, alegre-se; se chorou, lave a cara: São Paulo tem outra figueira célebre, a das Lágrimas. Essa está desde o século XVII na altura do 539 da Estrada das Lágrimas, no Sacomã (mas ali já foi Ipiranga), bem identificada, sobrevivendo como Deus é servido. O lugar onde fica já foi a saída da cidade a caminho de Santos (a Estrada das Lágrimas morre na Via Anchieta) e era o ponto de despedida dos que partiam pro porto. Quem se despede, se tiver coração, chora, e daí a figueira e a própria estrada tiraram seus nomes.
Dizem que Pedro I cochilou à sua sombra pouco antes de proclamar a Independência. Bem pode ser. Essa figueira não tem dono (ser de todos é ser de ninguém) e foi tombada pelo governo em 2016, ano em que a docilidade dos paulistanos já estava, como direi?, firmemente enraizada.
Ei-la, meio sinistramente rodeada por uma estética à la Beco do Batman:
Um clone dela foi plantado no Ibirapuera em 2017. Sim, um clone. Antigamente seria um ramo, mas hoje temos governo e tecnologia.
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Uma última nota de saudosismo: ainda peguei velhos que se referiam às suas escolas como “o grupo”. No meio desses velhos, muitos dos meus primos.
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O amigo sabe, e se não sabe fica sabendo agora, que o Doutor Palhinha é criação espetacular do Alexandre Soares Silva no seu último e mais do que recomendado livro “O homem que lia os seus próprios pensamentos”, livro que você pode, pode não, deve comprar clicando aqui: O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos - Contos de Alexandre Soares Silva (editoradanubio.com.br). Ele também escreve a melhor newsletter de língua portuguesa do momento, a qual você assina clicando aqui: https://lordass.us1.list-manage.com/subscribe?u=b11cbfca6319eb0217b8b1d99&id=0ba6a5bc50. O conto que escrevi é parte de uma campanha à qual aderiu também o César Miranda, como se vê aqui: https://t.co/ATxXxtDyZ2" / Twitter.
Portanto, está aí o amigo abastecido com duas indicações de livros, uma de newsletter e outra de twitter (o César Miranda é muito bom, vá na fé), o que dissipa qualquer malquerença que minha escrita lhe tenha deixado no fígado. De modo que conto consigo por aqui daqui a sete (ou oito) dias.