180. Tendência; bão; amor; gordura; Bocayúvas; palavras; galena; todos os santos; imortalidade; morte; árvore; link
Tendo a não querer entender o sentido que o mundo da moda dá à palavra “tendência”.
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No Brasil de hoje, qualquer coisa se torna indigna e opressora se você sair gritando “Meu Deus, como isso é indigno e opressor!”.
E tem sempre um ministro atrás do muro, ou atrás de um poste, ou escondido num bueiro, pronto para pular, gritar “Rá!” com sua capa esvoaçante, e dar uma decisão contra esse negócio indigno e opressor.
Ô, país bão.
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Durante um show, o cantor, naquelas de arranjar alguma animação do público pela cumplicidade, perguntou para a platéia:
— Alguém aí já sofreu por amor?
A platéia ficou em silêncio uns instantes. Então uma mocinha lá no fundo levantou o braço e disse:
— Pra falar a verdade, eu não.
Um moço na frente levantou-se e disse:
— Eu também não.
Ouviram-se em seguida muitos “não”, “eu nunca”, “necas”, “nadinha por aqui”, “de jeito nenhum”, “sélôko!”. Por fim, um rapaz careca e de óculos perguntou:
— Por que você quer saber isso? Tipo... nem é da sua conta, tá ligado?
O show continuou, menos – bem menos – entusiasmado.
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O colesterol de Coleridge.
Se você sonha que vai a um banquete, e come muito, demais, e acorda dez quilos mais gordo... então o quê?
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Quintino Bocaiúva (quando ele estava vivo, grafava-se Bocayúva) foi prócer da primeira hora da República; por isso, talvez, virou Ministro das Relações Exteriores e batizou uma rua no centro velho de São Paulo, na colina histórica mesmo. A rua que tem seu nome é curta e corre paralela à Praça da Sé, saindo da confluência da rua Direita com o Largo da Misericórdia, cruzando a José Bonifácio, passando pela Barão de Paranapiacaba, cruzando a Benjamin Constant (outro republicano afoito, esbaforido mesmo) e a Senador Feijó, e vindo morrer no comecinho da Riachuelo, formando três esquinas com a Praça João Mendes.
Tenho do senhor Bocayúva a pior das opiniões, legada por Eduardo Prado no seu Fastos da ditadura militar no Brasil (atenção: é fastos mesmo, não fatos e nem faustos). Segundo o sr. Prado, Quintino, que era o primeiro Chanceler da República, fechou um tratado de fronteiras com a Argentina para resolver a chamada “Questão de Palmas”, o denominado Tratado de Montevidéu. Se tivesse sido levado adiante, o tratado teria tirado de nós todo o território atual de Santa Catarina a oeste do rio Chapecó, e todo o território atual do Paraná a oeste do rio Chopim. Para isso, Bocayúva foi à Argentina assinar a estrovenga, sendo lá recebido, é claro, como herói. O tratado era tão ruim pro Brasil que o Congresso se recusou a ratificá-lo (pois é, isto já foi um país), entregando a disputa à arbitragem do presidente americano, Grover Cleveland. Felizmente quem cuidou do resto da briga foi o Barão de Rio Branco, que conseguiu tirar de Cleveland uma decisão em nosso favor e manter o território. Cleveland, aliás, se tornou tão bem quisto entre nós, quando ainda se sabia quem ele foi e o que fez, que batizou a cidade paranaense de Clevelândia.
Tão mau prócer como foi Bocayúva não pareceu entretanto mau o suficiente à vereança paulistana para ela deixar de batizar com o nome dele logradouro então importante da cidade. É uma rua ainda simpática: na ponta que morre na João Mendes há uma loja, a última, do Museu do Disco, rede que foi famosa no centro velho, e talvez a loja da Livraria Loyola ainda esteja funcionando também. E até não muito tempo atrás havia nela uma chapelaria (fechou, mas aguentou muito). No trecho entre a Direita e a Benjamin Constant ela é calçadão; na esquina dela com a José Bonifácio ainda está, judiado mas em pé, o belo edifício onde um dia funcionou a Rádio Record, o Palacete Tereza Toledo Lara.
Antes de ter esse nome, a rua já se chamou da Cruz Preta, e também rua do Príncipe (qual príncipe, já que tivemos mais de um? Não sei). Eu gosto de nomes de rua assim, e não tanto de gente. Onde ficaria a tal cruz preta? Nalguma porta? No meio da rua, como marco? Ninguém mais sabe. A cidade é tão moça: quando Roma tinha a idade de São Paulo, ainda faltavam uns duzentos anos para Cristo nascer. Tão moça, pois, e tão desmemoriada. É que o Brasil é assim, todo retardado.
A bocaiuva, não custa esclarecer, é uma árvore do gênero acrocomia, e pertence à família das palmas. Tem o nome alternativo (juro) de coco-de-catarro. Uma inquisição acerca dos Bocayúvas talvez nos mostrasse que eram gente interessante. Não a farei.
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A palavra inquisição não quer dizer “padres correndo pelas ruas com lança-chamas, gargalhando e torrando gente aleatoriamente”, mas sim “averiguação metódica e rigorosa; inquirição”. Foi com esse sentido em mente que Borges deu o título a um de seus melhores livros, Novas inquisições.
Já o substantivo fasto, singular de fastos, quer dizer “magnificência, pompa, ostentação”, e também “orgulho, soberba”. Assim começou nossa incensada República: orgulhenta, soberbosa, tão, ói, tão melhor do que aquela coisa maligna e démodé de imperador, paço, etc.
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Uma coisa boa do rádio de galena é que ele não precisava de pilha nem de estar ligado à eletricidade para funcionar. Não me peça para explicar como isso é possível, não entendo nada do assunto. Só sei que é assim, e que tem a ver com o comprimento da antena. A galena, registre-se, anote-se, é uma pedrinha de sulfeto de chumbo que servia, creio eu, como diodo, e fazia o que quer que um diodo faça, de tal sorte que o rádio pegava as estações.
Meu pai chegou a pegar o tempo desses rádios, nos quais se ouvia (dizia ele) os jogos da Copa de 1938, a primeira na qual o Brasil foi bem. Só servia para sintonizar AM – aliás, só havia AM. Hoje a AM está acabando para o rádio; aqui em São Paulo, capital, creio que já quase não há mais estações. Sua banda, parece, está sendo usada pro tal 5G, a internet das coisas (a minha e a sua internet, amigo, é ainda e sempre a internet dos coisas. Ou dos coisos).
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No intervalo entre esta newsletter e a anterior aconteceram a noite de todos os santos e o dia de finados – aconteceu, portanto, o Halloween. Não era coisa que se comemorasse na minha infância, nem na minha adolescência: o pessoal nem saberia pronunciar a palavra (não que hoje saibam, mas comemoram). Resolveram entretanto celebrá-lo de uns anos para cá, em certas partes das nossas cidades – aquelas poucas partes em que crianças podem andar pela rua de noite para ir pedir doces de casa em casa sem que sejam sequestradas, estupradas ou esquartejadas: os condomínios fechados. No meu bairro, por exemplo, que ainda não ostenta os índices de barbárie (a simples, a mera violência já ficou pra trás, né? Agora o bagulho é bárbaro mesmo) do resto da cidade, não teve nada. No meu bairro antigo, menos ainda. Por isso, creio eu, a coisa não pegou e nem pegará em larga escala. Mas sorte de quem mora onde seja possível ter a brincadeira, onde uma criança possa se vestir de fantasma ou vampiro e ganhar um saco de balas ou um chocolate.
Por mim, se eu fosse criança, adoraria.
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A ciência, ou, melhor dizendo, o ramo das muitas ciências que cuida dessas coisas (não sei qual é) diz que a vida na Terra tem prazo: de quinhentos milhões a um bilhão de anos. No correr desse tempo o sol vai se preparar para uma espécie de inchaço ou explosão que terminará engolindo a Terra, e junto com ela a Lua, Vênus e Mercúrio; antes que isso aconteça, entretanto, o sol vai aumentar seu brilho, e com ele seu calor, de sorte que oceanos evaporarão, a atmosfera mudará, talvez até desapareça, e o planetinha azul se tornará uma pelota de rocha seca, calcinada e com vida, se vida houver, apenas bacteriana. Até, claro, o sol engolir esta rocha.
Mas é como eu disse: só daqui a quinhentos milhões, um bilhão de anos. Ainda dá tempo do amigo fazer tudo o que quiser ou for obrigado. Não se afobe.
Fico, no entanto, pensando na vida do eventual humano imortal. Já andam prometendo imortalidade, o amigo sabe, fora do âmbito religioso: imortalidade nesta carne, neste corpo e neste mundo. Não sei bem como: trocando peças, talvez, como se faz com as melhores máquinas. Ou mudando o ADN (é ADN, viu? Não é DNA) para auto-regenerações automáticas, sei lá. Seja como for, imaginemos esse imortal, a que daremos o nome, digamos, de Irineu.
Por uns quatrocentos milhões de anos, tudo bem com Irineu. Tá lá, imortal como, digamos, o foram (de modo honorário) o Antônio Cícero e o Marco Maciel. Fazendo e acontecendo, curtindo a vida infinita adoidado: todos os excessos, todas as mediocridades e todas as contenções, só pra ver como é. Aí o sol começa a esquentar. Irineu é imortal, mas passa calor. Cada vez mais calor. Aí a água começa a rarear. Irineu é imortal, mas sente sede, precisa tomar banho, gosta de uma cervejinha: vai ficando impossível. A comida, por sua vez, vai sumindo: plantas, bichos, frutos do mar – aliás, o próprio mar vai recuando. Irineu é imortal, mas tem fome. Logo, logo, é o oxigênio que começa a negar o ar de sua graça. Irineu é imortal, mas respira. A vida alheia vai acabando, mas o Irineu tá lá. Com o fim da vida alheia acaba tudo: indústria, comércio, eletricidade, comida enlatada, feiras livres, produção de conteúdo. Começa a sobrar lugar onde morar, mas não há quem mantenha e com o tempo vai tudo desabando. E, claro, os bichinhos de estimação já eram. Veremos Irineu andando em meio ao pó sozinho, pelado, com fome, com sede e asfixiado, sem TV nem internet, por uns seiscentos milhões de anos. Aí o sol finalmente explodirá, e lá estará Irineu, torradinho, flutuando em meio às chamas da coroa solar. Vivo, muito vivo. Até que o sol encolha, se torne uma anã branca, se apague e seja, por fim, tragado por algum buraco negro, para dentro do qual lá vai o vivo e decerto injuriado Irineu.
Em que pensará Irineu nessa hora?
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Lendo a newsletter do Sérgio de Souza, lembrei do seguinte: minha avó paterna morreu em 1977, quando eu tinha dez anos de idade. Um ou dois anos antes disso, quando tudo estava ou parecia estar bem com ela, tive o pensamento repentino de que ela iria morrer, cedo ou tarde ela iria morrer, e um lado inteiro da vida – as visitas frequentes a ela, a sopa de feijão, as garatujas, o idioma arrevesado, o mazzolin di fiori – sofreria uma mudança para um estado desconhecido, que eu me pus a imaginar: como é que vai ficar? O pensamento me impressionou e, não direi que assombrou, mas demorou uma ou duas semanas para ir embora ou ser esquecido.
Quando ela morreu, lembrei desse meu pensamento e tive um medo: o de que, sempre que eu pensasse na morte de alguém, isso fosse um sinal, um agouro, uma premonição. Como se eu fosse distinguido com um dom difícil, ou como se pressagiar a morte fosse alguma façanha. Tal é a importância que a gente se dá nesta vida.
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Domingo, três de novembro – com quase um mês de antecedência: o primeiro domingo do Advento cai, neste ano, dia 1 de dezembro –, as mulheres começam a montar em casa a nossa árvore de Natal. Daqui de onde escrevo as ouço falar e rir, felizes. Fico feliz também.
É fácil não crer. Mas, quando cremos, tudo fica mais fácil.
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Antes de ir, não deixe o amigo de ler minha crônica nova na Crusoé. Depois disso, sim, vá-se em paz, e até semana que vem.
A única coisa boa que Quintino nos deu foi o Galinho de Quintino, o Zico.
Quando meu filho estava na creche, mandei-o fantasiado de Santo Antônio, com direito a martelo ( do Thor) e tudo. E disse que era pra ele caçar todos monstros, fantasmas e aberrações que encontrasse. Valeu pela brincadeira, mesmo o pessoal da creche não entendendo que era um protesto disfarçado. Já temos uma tradição em distribuir doces para crianças no dia de São Cosme e São Damião. No Rio, é comum. Não sei como é em São Paulo.
Vou ler na Crusoé seu texto,valeu.