O problema não é a polarização.
O problema é que cada lado polarizado acha que o outro lado polarizado não é formado por seres humanos, mas sim por monstros que mesclam, em graus e teores variados, perversidade e imbecilidade.
Só portas fechadas.
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Quando a verticalização chegou à Vila Isabel (a curitibana, não a carioca: tenha modos), o senhor Badé Correa decidiu experimentar a novidade, e mudou-se para um apartamento de um quarto num dos chamados “novos empreendimentos”, cujo slogan era este: “a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que é capaz de criar empreendimentos de qualidade também”.
Logo na manhã do primeiro dia morando ali, Badé ouviu, no elevador, seu vizinho de frente falar mal de Eric Clapton e de Lupicínio Rodrigues, caros a seu coração de bluesman e barfly das araucárias; e por isso guardou-lhe rancor.
Na tarde daquele dia, o tal vizinho ouviu gritos de mulher vindos do apartamento de Badé. Como suas áreas de serviço davam uma para a outra, para a sua o vizinho correu, a fim de averiguar o que se passava. De lá viu a mão direita de Badé, portando uma faca de cortar pão, dessas pontudas e serrilhadas, sendo erguida e baixada freneticamente, enquanto os gritos de mulher diminuíam, até terminarem numa espécie de gorgolejo ou golfada. O ricto no rosto de Badé era maníaco: olhos arregalados, suor na testa, extrema-direita.
O vizinho chamou a polícia. Badé, sorridente, franqueou-lhes a entrada num apartamento quase nu de mobília e portanto muito solteiro: um frigobar, uma espiriteira, dois bancos de madeira, um aparelho de som com uma fita k7 cheia de gritos de mulher, uma bicicleta. Lá não havia sangue nem cadáver de mulher, e a faca, sobre a pia, ainda trazia restos da manteiga do café da manhã. Os policiais, milagrosamente, se desculparam e foram embora. Badé fazia o ar compungido de um presidiário ou uma lavadeira do Sebastião Salgado.
Assim é Badé: bom homem, mas sua psicopatia é absolutamente falsa, e está sempre disposto a constranger socialmente a gente que discorde dele.
Daí em diante, sempre que se encontravam – na escada, no elevador, em desvãos sombrios do empreendimento gigantesco –, Badé abria um sorrisão e cumprimentava o vizinho calorosamente:
— E aí, amigão? Tudo bem?
Isto até que Badé se mudasse, seis meses depois, para uma casa – sempre na Vila Isabel – com um jardim e um cachorro de raça indefinida, mas, como o próprio Badé, nada psicopata, muito amistoso.
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Fui dia desses a uma festa de aniversário, dada num buffet. Compreendo que fica mais fácil pro anfitrião dar festa num buffet do que em casa, como se fazia até há pouco tempo (e ainda se faz entre a turma da parte de baixo da tabela): o tamanho e o arranjo do lugar são apropriados, contrata-se comida e bebida segundo as equações e cálculos “por cabeça”, sem grandes sobras portanto, e há gente para servir e limpar; quando tudo acaba, é só ir embora sem se preocupar com outra coisa além de dirigir bêbado. Pro convidado também é bom: se quebrar alguma coisa, se beber demais e acabar devolvendo uns quitutes, se gastar tempo demais no banheiro, tá tudo certo, não passa vergonha. É conveniente para todos os lados. Me chateia apenas que os bolos sejam cenográficos e depois apareçam garçons trazendo pratinhos com fatias finas demais. Fatia de bolo, para mim, tem que ser mais grossa do que o senso de humor do Lula. Mas a vida é assim, pouco queijo em torno dos furos. Paciência.
Como sempre, meu assunto é outro. A festa era de gente melhor de vida do que eu: digamos, gente que está com um pé na classe B (eu estou no subsolo da C, agarrado às raízes, que escorregam muito). Havia pista de dança; havia banda e havia DJ. A banda era especializada em sertanejo, vertente a que sou deliberada e tenazmente alheio. Já o repertório do DJ era o trivial variado do baticum.
Havia na festa muitas mulheres: jovens e não tão jovens, bem-vestidas e, até onde entendo do assunto, bem produzidas. Adivinhei numas uns maridos bem-postos; noutras adivinhei bons empregos, talvez no mundo das profissões ditas liberais ou no funcionalismo público. Sobravam bons tratos e bom passadio.
E eis que, finda a banda sertaneja com seus versos sobre traição e bebedeiras desmedidas e seus agudos exagerados, o trivial variado do DJ atacou o funk chamado “O baile todo”, de um certo Bonde do Tigrão.
Eu gosto do amigo, e lhe impinjo a seguinte estrofe da “letra” da “música” só porque é necessária ao meu relato:
Só as cachorras
As preparadas
As popozudas
O baile todo
Não sei bem o que se quer dizer com “cachorras”; uma ou duas interpretações me vêm à mente, mas parece que tem a ver com a pouca idade das referidas. Sei que “popozudas” quer dizer “bundudas”, e que “preparadas” quer dizer que as moças vão ao baile sem as calcinhas, porque lá serão penetradas por inúmeros homens e tirar e pôr a roupa de baixo entre cada brevíssima relação é um estorvo e uma perda de tempo que pode, inclusive, resultar em violência: o “preparo” é pois em nome de princípios muito modernos de segurança, eficiência, produtividade e praticidade.
Pois bem: o DJ tocou a “música”, que aliás já tem bem mais de vinte anos, e um número enorme daquelas mulheres com um pé na classe B, jovens e não tão jovens, bem-vestidas e, até onde entendo do assunto, bem produzidas, acompanhou a letra, não somente de cor, mas também pondo as ênfases certas e fazendo os gestuais adequados a cada verso: batendo no peito para indicar cachorrada e preparo, erguendo as bundas para se mostrar popozudas, e até alargando os braços para indicar “o baile todo”.
Claro, nem todas eram popozudas. Obviamente, nenhuma tinha vindo preparada (essas coisas se notam), e o quesito cachorrada, se relacionado à juventude, já dissemos, não era de aplicação universal (se relacionado a outras coisas, será da ordem das coisas não aparentes). Em todo o caso, não eram o tipo de mulher de que a letra fala: a favelada carioca cuja vida pobre é uma espécie de intervalo comprido, briguento e tedioso entre esses momentos de arrebento ou de, como dizia Rimbaud, longo, imenso e nada pensado desregramento de todos os sentidos.
Não: lá estava a quase, quase classe B paulistana aderindo a plenos pulmões e não menos plenos saracoteios à apologia de uma vida que não é sua, de um baile ao qual jamais iriam, de atos que jamais praticariam em público, e de definições que, aplicadas a si noutro contexto, rejeitariam sumariamente: cachorra, eu?! É a tua!
O amigo dirá: bah, estavam só se divertindo, tire as minhocas da cabeça. Pois olhe: não tiro. Que se divertiam era evidente. Mas essas minhocas, essas que ficam falando “meu Deus, essa gente não tem a menor noção do que está fazendo” já são de minha estimação. Elas ficam comigo, fora, alheias como eu já nem digo ao baile todo, mas até ao seu mero anúncio.
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Graças às indicações (boas) dos amigos (excelentes), ando lendo as Vidas escritas, do espanhol Javier Marías. E aqui me penitencio do preconceito enorme, e sem justificativa, que sempre tive para com todos esses Marías. O sobrenome Marías, aliás, me faz pensar num cronista Antônio Marias e num bairro Vila Marias e até num caixeiro José Marias, mas não me dê bola, eu penso mesmo muita bobagem. Importa que o livro é uma delícia: trata-se das vidas de vinte e tantos escritores e escritoras famosos, de nacionalidades diversas, que vão do século XVIII ao XX, mais um apêndice dedicado a “mulheres fugitivas” e outro aos “artistas perfeitos”. Os textos são curtos, se concentram no essencial do essencial; sobram ironias e veneno para aqueles de quem o autor gosta, e mais ironias e mais veneno para os de que não gosta; e há, até onde sei, pelo menos uma imprecisão (quanto à vida sexual de Isak Dinesen, que não cessou com o divórcio e a sífilis). Estou lendo no original – aliás, que delícia saber, se não for outra das zoeiras do autor, que Wuthering heights, “O morro dos ventos uivantes”, ganhou na Espanha o nome de Cumbres borrascosas –, e creio que a única tradução em português foi feita em terras lusitanas (na bezzoslândia sai por mais de quatrocentos reais). Fica a dica, como dizia Confúcio.
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O nome de Confúcio, que faz a gente, quando desatento, pensar em confusão era, segundo o sistema de transliteração de Wade-Giles, K'ung-fu-tzŭ. Ou seja, era um mestre do kung-fu. De um kung-fu ético ou filosófico, digamos. De um kung-fu de analectos. Do kung-fu que Confúcio diz.
Se não tivesse morrido, David Carradine poderia vivê-lo no cinema, ele que viveu outro mestre do kung-fu (Carl Douglas está vivo e pode fazer a trilha sonora). Se não estivesse aposentado, Paul Gulacy poderia desenhar sua biografia em quadrinhos, ele que desenhou outro mestre do kung-fu. Se não estivesse enterrado há quarenta e um anos, capaz que meu pai estivesse lendo isto aqui, meu pai que nunca deu a menor bola para o kung-fu. Ora, quantos ses. A vida é um novelo de ses.
Já Analectos, o nome que deram à obra kung-fuciana, quer dizer duas coisas interessantes. A primeira: coleção de máximas ou aforismos de um ou mais autores. É precisamente isso o que são os Analectos: as máximas ditas por Confúcio. A segunda coisa: entre os romanos, analecto era o escravo que tinha por função limpar os restos dos banquetes e arrumar as camas dos convidados. Eram camareiros, ou seus precursores. Como, entre os romanos, também um bom número de professores eram escravos, e outros tantos eram lutadores, temos aí uma rede curiosa envolvendo aforismos, kung-fu e limpeza doméstica, rede que não sei explicar nem, muito menos, desenredar.
O amigo, se desenredar qualquer coisa, me avise que, semana que vem, prometo replicar aqui o relatório. Entretanto, até lá.
Juntar Rimbaud e Bonde do Tigrão no mesmo pensamento? E com muita desenvoltura? Sim, mais uma bela crônica do Tosetto para conciliar ideias destoantes e assombrar "o baile todo".
Me fez lembrar que só ia à essas festas por causa da comida,hoje sempre dou uma desculpa. Sempre há uma virose estratégica nesses dias.