183. Conteúdo; desmonetizado; ironia; cultura; discos; poetas; história; almanaque; residências
“Monetizar seus conteúdos” parece novilíngua para trottoir. Vem cá, garotão, monetizar muito este meu conteudão.
(Ainda se diz, ainda se sabe o que é trottoir?)
Tudo bem ganhar dinheiro com o suor do seu cérebro. Mas ache uma fórmula menos feia do que “monetizar o conteúdo”, por favor.
Inclusive, verbos terminados em -izar são verbos que pessoas humildes, formadas em faculdades noturnas de administração, acham bonitos e usam diante da polícia.
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Uma vez, ali na Avenida da Liberdade, quase esquina com a João Mendes, uma jovem, sonhadoramente encostada num poste, me convidou a monetizar seu teúdo e conteúdo. Nestes termos:
— Vamos fazer tchaca-tchaca na butchaca?
A frase era boa, a moça nem tanto. Mas foi na época mais desmonetizada da minha vida, de-modos-que o uso do conteúdo ficou pros outros.
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Acho muito legal quando leio, geralmente em redes sociais, alguém avisando que disse o que disse “não ironicamente”. Imagine, a pessoa quer fazer a gente acreditar (ou ela mesma acredita, sei lá) que sabe o que é ironia, e pois sabe ser irônica, e, caso nós não tenhamos percebido, aquele escrito lá está isento disso.
Faço vênia para a gentileza.
E lembro da letra de Ironic, da sumida srta. Morissette, cuja única ironia era não ter ironia nenhuma.
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Português culto do Brasil de hoje: moleque manda cartinha pro Papai Noel solicitando uma bicicleta.
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O amigo Sérgio de Souza fez a lista dos discos de 2024 de que mais gostou. Leia a newsletter, que é saborosa por si mesma, ainda que você, como eu, só tenha ouvido, de toda a lista, o disco do David Gilmour (et pour cause).
Compartilho muitos gostos musicais com o Sérgio, e me penitencio por não conhecer nada da lista afora as coisas mais antigas do Morrissey, Cure, Beth Gibbons e Primal Scream, e também por nutrir uma pontinha daquele orgulho dos ignorantes que se traduz em falta de curiosidade (não é à toa que o orgulho é pecado). Por isso me prometi baixar e ouvir os discos que lá estão, especialmente o do Cure. Aliás, é o que faço enquanto escrevo. Mas é claro que eu quero falar de outra coisa.
Cavilando sobre o pouco que conheço da música pop de 1990 em diante, me perguntei que diabos aconteceu que eu não virei a década acompanhando o cenário musical: por que meu conhecimento e meu interesse pelo pop/rock decaiu tanto, e tão depressa? Cheguei à conclusão de que foi tudo culpa dos CDs.
Comprei meu aparelho de tocar CDs em 1991. Era um Phillips de mesa, com controle remoto, programação e saída de áudio em duas vias para equipamentos de som modulares (funcionou perfeitamente na entrada auxiliar do meu 3-em-1). Junto com ele, comecei a comprar CDs, que já naquela época começavam a aparecer em promoções.
E os CDs em promoção não eram, evidentemente, os das bandas e artistas “do momento”. Não: eram de bandas e artistas dos anos 60 e 70 que tinham sido relançados para aproveitar a onda. Discos aqui fora de catálogo em vinil por décadas começaram a aparecer, a preço acessível, nas gôndolas do Mappin, da Mesbla, das Americanas: Beach Boys, Cream, Country Joe and the Fish, Frank Zappa, Os Doces Bárbaros, os primeiros discos do Jimi Hendrix, Blind Faith, Traffic, os Mutantes, o primeiro disco do Who, ah, a lista pode ir longe, muito longe. E tudo com som bom, som de vinil inglês ou até melhor, porque as remasterizações começavam a aparecer também.
Os três primeiros CDs que comprei foram do Premiata Forneria Marconi: Storia di un minuto, L’isola di niente e Live in USA. Eram discos que eu nunca sequer tinha visto em vinil. Como os do Cream. Como os do Buffalo Springfield. Como os de Derek and the Dominos. Como os dos Allman Brothers. Como os do Hot Tuna. Deu pra entender, né?
Foi aí, pois, que, em vez de olhar o presente, e ouvi-lo, comecei a olhar e ouvir cada vez mais o passado. O que só piorou com o advento da banda larga, dos mp3 e dos flac. Hoje estou firme nos crooners dos anos 50: Frank, Mel, Mooney, Nat, Billy, Ella, Sarah, Bing, essa turma aí.
Quer dizer: eu passei a remar a minha canoa para trás, e cada vez mais pra trás a vou remando. Já saí da água com ela; já atravessei os campos de morango e estou chegando aos de algodão – daqui já dá pra ouvir alguém chorar: “Well‚ like raising a good cotton crop [is] just like a lucky man shootin’ dice”. Só paro quando chegar às ondas do Mar de Vigo.
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Os poetas chegam sempre primeiro – e ficam lá fora, esperando a casa abrir.
Os poetas chegam sempre primeiro – e ajudam a banda a montar o equipamento.
Os poetas chegam sempre primeiro – e acabam ganhando roupa de garçom e servindo as bebidas.
Os poetas chegam sempre primeiro – e não escutam os anfitriões cochichando entre si: “Puta cara chato”.
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“Deixo o X para estar do lado certo da história.”
A História dedilha sua lira e pergunta para a Geografia:
— Qual é o meu lado certo, aliás? De frente ou de costas?
A Geografia, que se acha a mais importante das duas, não responde.
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Para ler no banheiro, nada melhor do que uma revista ou um almanaque. O amigo talvez nunca tenha pilhado um almanaque como os que a Abril lançava todos os anos até o final da década de 80 mais ou menos, ou os mais antigos, como o Eu sei tudo; eram compilados anuais de curiosidades e variedades que ensinavam – estou pegando como exemplo a edição de 1922 do Eu sei tudo, que está no site da Hemeroteca online da Biblioteca Nacional – os mecanismos dos eclipses, os nomes das nuvens e o tempo que elas anunciam, as vantagens do verão, os livros que todos devem ler, os calendários (lunar, católico, etc.), mais ilustrações, quer artísticas, quer chistosas (chistosas, é). Tudo com ilustrações e extensão máxima de página e meia: o tempo exato que o adulto são gasta naqueles momentos de concentração no chamado toilet.
Claro, todos os almanaques tinham uma seção do tipo “Você sabia que...?” Portanto, e supondo que o amigo tenha entrado no banheiro com esta newsletter aberta no seu smartphone ou tablet, apresento uma seção desse tipo para seu agrado, distração e, por que não, ilustração.
Você sabia que as tribos quíchuas da Bolívia têm o hábito de recortar dos jornais as fotos dos grandes homens do seu país – presidentes, ministros, juízes, jogadores de críquete – e moê-las, espalhando depois o pó assim obtido sobre as notas e moedas do seu dinheiro, protegendo-o, com essa mandinga, dos efeitos da inflação?
Você sabia que o último rolo de papel-jornal produzido no Brasil está guardado num galpão nos fundos da Imprensa Oficial do Rio de Janeiro, e foi considerado oficialmente imprestável por uma comissão de notáveis do Senado Federal? E que isso foi anunciado pelo senhor Presidente da República e grande comitiva numa solenidade acompanhada por uma banda, discursos e rojões?
Você sabia que, na mesma oportunidade, umas senhoras da comitiva presidencial, umas meio emocionadas pelo champanhe, outras meio agitadas pela glicose e pela cafeína, tiveram que ser discretamente levadas para outro lugar, onde puderam descansar?
Você sabia que a bandidagem até que é legal? E que você é que é muito cheio de nove-horas?
Você sabia que os moradores do Leblon têm o hábito de jogar seus sacos de lixo pelas janelas nas calçadas, mas que, felizmente, esses sacos nunca estão cheios de lixo, e sim de pétalas de rosas, sumo de alecrim e pinturas a óleo de muito bom gosto?
Você sabia que sempre que você entrar num elevador e sentir nele o cheiro forte da mistura de cecê com desodorante barato, a ação correta é tirar uma vela do bolso (ou da bolsa), ficar de joelhos e acendê-la, fazendo pequenos estalidos votivos com a língua no céu da boca?
Você sabia que o governo tem uma máquina que lhe permite ler os teus pensamentos, mas que ela está quebrada, e a verba de manutenção só sai no próximo exercício, de modo que, até lá, você meio que pode pensar o que bem quiser? De qualquer um? A qualquer hora?
Você sabia que as vítimas da indigestão noturna e do ácido úrico têm uma Associação, mas que ela é secreta, porque lá todo o mundo tem vergonha de ser vítima da indigestão noturna e do ácido úrico e não de uma dessas grandes injustiças sociais modernas?
Você sabia que entre os animais mais intrigantes do mundo está o Bandicot, que é um intermediário entre o Diabrete da Tasmânia e o Canguru? E que ele é intrigante porque nos deixa intrigados, não porque semeia a cizânia entre diabretes e cangurus?
Você sabia que, para nós, eu e tu, não seria jamais belo o azul do sol (isso mesmo, o azul do sol) se nunca desaparecesse a nossos olhos, oculto ocasionalmente por nuvens sinistras de espantoso negror?
Você sabia que não adianta correr, é melhor ficar tomando uma cervejinha (ou chupando um picolé, se você não gostar de cerveja) até a hora de ser preso?
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Talvez a coisa mais espantosa desse almanaque é que tinha as fotos e os endereços residenciais de todos os deputados federais em 1922. Pois é: a ninguém tinha ocorrido, já nem digo construir uma capital, mas dar casa a deputados, que moravam de aluguel ou em quartos de hotel, suponho eu - todo Poliana - que pagando os réis dos próprios bolsos.
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Deixo o amigo sonhando com os tempos de antanho, os bigodudos e civilizados tempos de antanho. E, amigo, compartilho o sonho contigo. E sonhando me vou, até a onírica semana que vem.
Tosetto a cada dia melhor. Vai terminar, involuntariamente, recebendo alguma dessas premiações literárias que existem por aí. Vai ser premializado.
Comigo aconteceu a mesma coisa, não acompanhei a "evolução" dos conjuntos que gostava até 1990, agora quase sexagenário voltei a escutar The Cure, Nick Cave e David Gilmour e vou ficar por aqui. Já é muita informação.