184. Absurdo; cútis; rigor; viuvez; a porta do mercado; caridade; proximidade; noir noir; solos; link
Absurdo mesmo é viver sem paranoia nenhuma.
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Elogios à beleza da cútis parecem o Mussum vindo com insinuações.
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Os homens às vezes são tão difíceis de entender e de explicar quanto as mulheres. E sabem que são. Permita-me um exemplo. Um dos meus antigos vizinhos era corintiano roxo. Ele, a mulher e os filhos. A rede wi-fi da casa dele se chamava “Família Corinthians”, em dia de jogo era aquela putaria infernal de hino tocando altíssimo no som do carro, gritaria e tal. Quando o time se saía bem, então, Deus nos acudisse. A gente aguentava porque domingo de tarde nem ficava tanto em casa, ainda tínhamos dinheiro e saúde para shopping e cinema. Bom: certa vez, tendo o Corinthians ganhado algum campeonato, o encontrei na rua e lhe dei os parabéns. Minha mulher, que estava comigo, deu uma encrespada:
— Por que você deu parabéns para ele? Ele não ganhou nada!
A rigor, ela tinha razão.
Também a rigor, ela não tinha razão nenhuma.
Demorou um tanto, mas quando aconteceu do Palmeiras sair campeão, ele me parabenizou de volta. E nós dois sabíamos que tinha que ser assim, ainda que não soubéssemos e – olha o rigor aí – nunca venhamos a saber por quê.
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A viuvez era, até não muito tempo atrás, uma alforria para as mulheres, que, conforme aumente a idade e decresçam os hormônios, se tornam mais úteis e necessárias para os homens do que os homens, nas mesmas circunstâncias, para elas. Daí que quando eles morriam elas se vissem livres de um peso, de uma carga, e vivessem bem, e até felizes. Rara era a mulher que de fato sentisse o luto que eventualmente trajasse ou anunciasse. Raríssima a que dissesse “que falta ele me faz” de forma sincera, não protocolar.
Com os homens era bem o contrário. Era coisa esperada eles sobreviverem por pouco tempo à morte de suas consortes, porque não sabiam se cuidar, não sabiam viver a vida comezinha, a vida de dia a dia, sem elas, e tanto pior quanto mais velhos eles fossem. Não conseguiam falar das finadas sem a voz embargar ou romper em choro, contando os anos passados juntos como quem conta um feito mais ou menos heroico, algo digno de admiração, um tipo de recorde. Não sabiam achar suas meias nem fazer seu almoço, muito menos passar suas camisas, e geralmente não tinham dinheiro para pagar quem o fizesse, de sorte que a morte era a solução econômica e prática para uma vida quase infantil de tão inepta. Os que aguentavam um pouco mais eram os que se casavam de novo, geralmente para escândalo ou incômodo da família, ou os que tinham filhas, noras ou irmãs que carregassem por eles as tarefas do cotidiano. Os poucos que sabiam se virar sozinhos raramente enviuvavam, porque raramente se casavam – eram, em geral, aquilo que o eufemismo jornalístico inglês chamava de solteiros confirmados. Isto é, homossexuais.
Essa disposição de cachorro abandonado era uma das razões pelas quais os homens eram objeto do desprezo mezzo piedoso, mezzo cruel e zombeteiro das mulheres. Havia outras razões, é claro, que aliás agora não interessam.
Hoje em dia, com o advento do homem que se cria precisando muito menos de mulher para os secos da vida (no setor dos molhados, tudo continua do mesmo jeito), isto parece que vai mudando. Vejo homens sobrevivendo mais à perda das consortes. Não digo que com o mesmo alívio feliz delas, ou ao menos ainda não, mas os caras vão levando e durando mais. Três anos, cinco, dez. Claro, hoje o desprezo delas é mais feroz, menos piedoso e zombeteiro, mas, até aí, os caras estão vivos. Desprezados e vivos.
Isto é bom ou ruim? Não sei. Sei que alguma vitória aí, se vitória houve, foi de Pirro, mas não quero nem saber de quem.
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Noite dessas fomos, eu e Mme. Tosetto, ao supermercado. Era noite de chuva, que tinha parado momentaneamente. Dissemos um ao outro: “é só uma quadra de distância, vamos dar uma corridinha até lá que dá tempo da gente não se molhar”. Essa é a fé curiosa e injustificável que os velhos bobos têm nas nuvens (quando não estão gritando com elas).
Demoramos mais do que devíamos, compramos mais do que inicialmente queríamos, e o resultado é que nos vimos sem guarda-chuvas, parados na porta do mercado, à espera do aguaceiro ingrato voltar a arrefecer.
E aí percebemos que ficar em porta de supermercado nos dias que correm – days of love and loin – é um problema.
Primeiro, colou em mim um nóia, um mendigo de extração recente (quer dizer, tornado mendigo agora, nos dias do amor), me pedindo que lhe comprasse uma caixa de balas para ele poder vender por aí e arranjar algum dinheiro. Com quatro sacolas de compras nos pés, não tive coragem de contar a mentira de sempre, “tô a zero, bonitão, perdão”. Também não tive o sangue frio de negar a ajuda, pura e simplesmente, de tal sorte que resolvi comprar as balas pro infeliz; veja aí, amigo, como covardia e hipocrisia podem ser armas ou veículos da virtude, e como a Providência nos pega pelo que temos de pior.
Ele fez questão de escolher as balas que queria vender: umas rosinhas, à base de perfume de iogurte. Aí me pediu um pacote de bolachas para “ir comendo”, porque estava sem almoço e etc. Topei; ele parou detidamente para escolher a bolacha que bem quis. No entrementes ia desfiando as durezas de sua vida, os azares e injustiças que sofreu, e seus planos para pôr tudo nos eixos. No caixa, enquanto eu pagava (tudo muito barato, na verdade), usou o álcool em gel para lavar as mãos e os pés.
Quando ele se foi, mais limpo e carregado, encontrei minha mulher às voltas com uma senhora que, de posse de um carrinho cheio, explicava-lhe as desfeitas que sofria de uma vizinha velha e rica, a qual a explorava (“eu vou na farmácia pra ela, vou na feira pra ela, subo e desço ela de elevador”) sem lhe dar em troca nem sequer uma caixinha ou uma maçã fresca: só lhe dava maçã velha e desprezo. Ela estava muito infeliz, muito chateada e revoltada, mas nada indicava que as compras naquele carrinho cheio fossem da tal velha maligna: havia ali uma bela meia peça de mortadela, que nenhuma velha de maus bofes digere bem. Minha mulher ouvia e tentava furar a barragem palavrosa da fulana para dizer alguma coisa, não passar em branco, mas estava impossível. Cochichei para ela:
— Vamos tomar chuva, nêga, porque viramos ímãs de mendigos e de malucos.
E assim o fizemos, e assim o recomendamos: tema menos a gripe, amigo, do que o estado mental e social do país. Não ouso dizer que a Providência agiu em nosso favor, mas o fato é que a chuva já tinha mesmo quase parado.
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O que fiz a contragosto pelo mendigo meio noiado foi o que se chama caridade. Fi-la não porque qui-la, como se viu, mas por vergonha e constrangimento: sou mau, eis a verdade simples, e não obedeço de bom grado à palavra que manda dar a quem pede. Sou avarento e casmurro, ciumento do meu quinhão.
Mas a caridade. Em traduções mais antigas da Bíblia, lê-se, no capítulo 4 da primeira epístola de João, que “Deus é caridade” (nas mais recentes, está que “Deus é amor”), Deus caritas est na fórmula das duas Vulgatas.
Caridade vem pois de caritas, que é a tradução dada pelos latinos, e mantida por São Jerônimo, para a palavra grega ἀγάπη, ágape, um dos muitos termos que aquela língua tem para nomear aspectos diferentes do que aglutinamos na polissemia da palavra amor. O grego dos redatores do Novo Testamento a usou para dar nome ao amor ao próximo. Assim, ágape ou caridade é a expressão concreta, em obras, do novo mandamento de Jesus: “que vos ameis (ἀγαπᾶτε, agapate) uns aos outros”.
Ora, há algum tempo um rapaz escreveu um livro desancando a caridade por efeitos dela que reputou daninhos. O livro se chama A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria, de Yago Martins. A tese do livro, segundo li dos que o leram, é a seguinte: a mendicância consiste numa espécie de indústria mafiosa; praticar a caridade, que no geral é a da esmola ou a do donativo, sustenta essa máfia e essa indústria, que é uma indústria da miséria, e, pois, se não a aumenta, ao menos a segura no patamar alto em que está. Portanto, a caridade é daninha, porque, em resumo, dar esmolas é sustentar vagabundos profissionais. Para chegar a essa conclusão, o autor passou algum tempo vivendo em meio aos mendigos de sua cidade, que não sei qual é, e fez sua constatação a partir da observação do fenômeno in loco.
Curiosamente, o autor dessa tese, se bem a entendi, demoníaca, era, e talvez ainda seja, pastor de alguma seita (o eufemismo é “denominação”) protestante, gente que em tese conhece muito bem a primeira epístola de João e os Evangelhos todos. Digo que a tese é demoníaca porque argumenta em favor da desobediência seletiva a uma ordem direta de Cristo no “Sermão da montanha” (Dá a quem te pede e não te desvies daquele que te quer pedir emprestado), e diz que o próprio Deus, que é, segundo João, caridade, tem algo de contraproducente ou reprovável. Há, reitero, a possibilidade de que eu tenha entendido mal; tomara que seja o caso.
Agora, depois do que eu falei do mendigo no supermercado, não vou dar uma de santo e dizer que sou melhor do que esse autor e, ao contrário dele, não faço acepção de pessoas. Faço, e faço muita. Envergonhadamente, com a noção plena do erro e da desobediência que cometo, e que pelo meu mau fruto me faço conhecer. O que só torna tudo, aqui no meu lado, muito pior.
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O bom de estar em São Paulo é estar a vinte minutos a pé, a dez minutos de uber, ou a um passeio de linha turquesa ou lilás, dos amigos.
Parece pouco, e é pouco em termos de tempo (já demorou muito mais esse negócio de condução por aqui), mas, em termos de vida, é muito, é parte do que serve como raiz, do que nos fixa e nos sustenta.
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Peguei para ler A louca matança (The crazy kill), de Chester Himes. Os protagonistas são os detetives Ed Caixão e Jones Coveiro, e pelos nomes o amigo tira que metade da coisa é comédia, e metade é romance policial linha hard boiled bem americana. A tal da louca matança se passa na comunidade do Harlem, em Nova York, e o olho do autor, que aliás era parte dessa comunidade, é fino em cima dos modos, hábitos e fala do pessoal: é meio um antecessor noir e mais adulto de Todo o mundo odeia o Chris.
Romance policial com senso de humor é quase sempre bom; está aí o Rex Stout que não me deixa mentir. Estou gostando deste do Himes. A edição é das de bolso da L&PM, custa menos do que dois litrões de Skol: entra fácil no seu escopo, amigo.
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Sobre os solos de Alex Lifeson, guitarrista do Rush, um amigo guitarrista me dizia o seguinte: “Está tudo certo: tempo, tom, tudo certo. Mas ele está solando em outra música, uma que está na cabeça dele, não a que os outros caras estão tocando”. Dava como exemplo o solo de The trees. E isso era um elogio.
Eu acho que com o Robert Fripp é a mesmíssima coisa. Não precisa ir ao manjado solo de 21st century schizoid man; prefira, se puder, ouvir o de Sailor’s tale, do disco Islands. Ele estava na Lua.
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E se acabou. Ou quase: clique e leia, amigo, a minha crônica nova na Crusoé. Isto feito, aí sim, finito. Salve, vale.
Escreves bem pra cacete mesmo...
No solo de guitarra,assim como o Free Jazz, a única pessoa a se divertir é a que está praticando o ato.