185. Bonde; rhum; regime; vice; ETs; metade; mais ETs; revelação; Calvino; Maomé; prioritário; Francis e Waugh; política
O bonde da virtude anda tão lotado que não adianta sinalizar, ele não pára no ponto.
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Quando se escrevia rum com um agá no meio – rhum – parecia que a bebida já vinha com um pigarro. Ou temperando a garganta.
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O problema com o Oriente Médio é que sempre que um regime parece muito ruim, seus opositores mandam um hold my beer.
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Por duas polegadas – e logo nos quadris! – Martha Rocha perdeu a faixa de Miss Universo em 1954 (é, faz tempo). Já eu, por 200 ml de vinho, equivalentes a três polegadas de álcool, perdi três dias, porque tive que adiar uns exames. O mundo é mais chato do que injusto.
A propósito, Martha Rocha virou o quê, Vice Miss Universo? Acho aceitável, é material casadoiro, mas, enfim, sou humilde.
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Chegam finalmente os extraterrestres.
— Leve-nos ao seu líder.
— Ela acordou meio indisposta.
— Leve-nos então ao seu vice-líder.
E vem a Martha Rocha.
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Colleen Hoover, por cujo nome não dá pra saber bem se é homem, mulher ou uma das alternativas infinitas, tem um livro chamado É assim que começa e outro chamado É assim que acaba. No momento, deve estar escrevendo É assim quando está na metade.
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Parece que os governos andam finalmente querendo admitir que tem ET voando sobre as nossas cabeças há um bom tempo. Eu não sei bem o que pensar da presença deles aqui, afora ser talvez um certo tipo de turismo macabro: venha ver in loco uma espécie inteira indo pras cucuias. E eles vêm: pagam seus pacotes em doze vezes, ganham seus camarotes com escotilha e ficam nos olhando de dentro das naves igual a gente, no Simba Safári, fica olhando os leões de dentro dos carros.
Meu pai, nos anos 70, sucumbiu de leve à moda hippie dos ETs e comprou uns livros a respeito do assunto. Um deles contava a história de um caipira brasileiro que foi abduzido e teve que transar com uma... qual é o feminino de ET? Etéia? Pois é isso: teve que conhecer carnalmente a etéia. Só me lembro que ele dizia que ela era bonita, e que o corpo dela tinha sardas verdes, como verdes eram seus mamilos (e talvez seus vales).
(Uma vez tive que entrevistar, profissionalmente, um membro da torcida Mancha Verde. A cara dele era toda tatuada de manchinhas verdes, como sardas. Seria ele um ET?)
Meu pai comprou também dois livros de Erich von Däniken, que anda meio esquecido, mas já foi muito famoso e vendeu exemplares (livro vende exemplar, não vende cópia) pra burro: Eram os deuses astronautas? e Semeadura e cosmos. Como ele anda em baixa, explico-lhe a tese: tudo aquilo que a humanidade cultua como deuses eram ETs que vieram, como o Bilu, nos dar conhecimento. Sendo nós homens um bando de broncos, andando nus por aí e comendo carne crua com as mãos, balbuciando igual a bebês, não entendíamos as naves e os trajes espaciais, e sublimamos tudo em figuras terríveis de deuses iracundos. Isso tudo era provado pela análise dänikenta de hieróglifos, esculturas maias, desenhos em planícies, essas bossas. Se você pensar bem, é o argumento do filme Prometeus.
Os livros seguiam o padrão dos anos 70: encartes com fotografias em papel cuchê, que cheirava bem (você não cheira seus livros, amigo?), mas também muitos desenhos espalhados pelas páginas, o que era sedutor pro moleque aqui. Quer dizer: li tudo, não como quem lê uma tese, mas sim como quem lê qualquer coisa de Júlio Verne: material para aventuras. Quanto ao meu pai, acho que ele os lia com o mesmo espírito. Ou talvez sonhasse em sair por aí pelo espaço, nos braços ou nas asas de uma etéia meio verdinha. Se fosse isso, bah, não era um sonho mau.
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Estava aqui pensando que, depois que eu morrer, alguém pode demolir a minha casa anterior; e pode cavar uns 50 metros abaixo dos alicerces; e lá no fundo pode encontrar um baú; e, dentro desse baú, um cofre; e, dentro desse cofre, uma caixa; e, dentro dessa caixa, uma pastinha de papelão; e, dentro dessa pastinha de papelão, um monte de outros papéis; e, no meio desse monte de outros papéis, um recorte de uma revista dos anos 30 com um foto do Hitler. E então, ó meu Deus, ainda que eu mesmo nunca tenha tido baú nenhum, nem enterrado nada tão fundo em alicerce nenhum, mesmo assim se revelará a verdade horrível a meu respeito: “Cronista morou em casa que tinha uma foto de Hitler enterrada nos alicerces”, será a manchete de alguma sábia jornalista. Ainda bem que nunca ganhei prêmio nenhum para tê-lo cassado postumamente.
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Fomos há algum tempo a um casamento numa igreja presbiteriana, que é de inclinações, ao menos na origem, calvinistas. Lembrei disso quando vi os músicos e cantores – um total de onze para um lugar bem pequeno, músicos tecnicamente muito bons – todos vestidos de preto.
O filhinho da noiva estava lá, também ele de terninho preto. Vieram as madrinhas, oito, assentar-se atrás do púlpito. Uma delas com um tomara-que-caia digno de aplauso de arquibancada, várias com as saias acima dos joelhos. Os oito padrinhos? Todos predestinadamente de preto.
Pois eis que, na hora da troca de, hum, votos, o noivo, como demonstração pública de seu afeto, mandou na cara da noiva um pagode (depois me disseram que era de um certo Thiaguinho). E, na hora dos cumprimentos, a banda mandou uma versão (bem boa) de alguma coisa do Barry White.
Calvino, my man, you can’t beat Brazil.
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O motorista do uber que nos levou para casa nesse dia era marroquino. Dois anos de Brasil e já falava um português muito razoável. Me ensinou a pronúncia marroquina de muezzin (não me pergunte qual é: já esqueci) e me perguntou se oxalá era versão nacional de insha’Allah, e se portanto queria dizer a mesma coisa. Expliquei como pude que a interjeição sim, mas o substantivo não: este é uma divindade africana. Ele estranhou haver uma adega com o nome Mesquita, e achou graça que aqui isso seja nome de família.
Ou seja, Maomé parece que não está se saindo muito melhor por aqui também.
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Precisando fazer exames de sangue e de urina, esses exames que os velhotes têm que fazer com frequência cada vez maior para avaliação de prejuízos e medição dos danos, recorri a um laboratório já usado pelo meu irmão. Pedi-lhe avaliação.
— Nada de mais, nada de menos. Serve. Mas tem um negócio: abre às sete e sempre tem fila na porta. Se puder, chegue uns vinte minutos antes.
Segui a dica: cheguei lá faltando quinze para as sete. A fila já era compridinha, dominada que estava pela melhor idade, aquela à qual me dirijo a passos mais largos do que me achava capaz. Na hora da distribuição das senhas, o rapaz, vendo minha barba já bem mais branca do que preta, perguntou se eu queria uma senha de prioritário.
Não sei por que mistura de sonho, birra ou ilusão me tive por mais jovem do que sou e, orgulhoso, pedi uma senha normal. Os quarenta minutos que isso acrescentou ao tempo que levou para me atenderem bastou como cura para toda a vaidade juvenil que me restava. Porque eu estava em jejum havia quatorze horas: cada segundo aumentado a essas horas fazia borbulhar em mim o Sr. Orlando Hyde, que, para cúmulo de suas hydices, ainda tem simpatias pela Mancha Verde.
Aprendi minha lição. Doravante, sempre que me oferecerem ou sugerirem prioridades, aceito correndo.
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O amigo Adaubam Pires dá, em sua última newsletter, uma transcrição traduzida de uma entrevista de Evelyn Waugh à BBC em 1960, entrevista sardônica e pontuada de hostilidades entre ele e o entrevistador, principalmente no que tangia à religiosidade e ao estilo de vida de Waugh. Em seguida, o amigo Cleóbulo Oliveira relembrou que essa entrevista, mais outras duas e um artigo de Waugh para o Spectator rebatendo um anterior de J. B. Priestley, faziam parte de um apêndice à tradução de The ordeal of Gilbert Pinfold que a editora Globo lançou por aqui nos anos 90 sob o nome A provação de Gilbert Pinfold. As leituras prazerosas dos amigos me remeteram logo ao Paulo Francis e a um artigo dele sobre Waugh que faz parte do livro Paulo Francis nu e cru, coleta de escritos dele na época do Pasquim.
Tal qual o entrevistador da BBC, John Freeman, Francis achava a conversão de Waugh ao catolicismo o fim da picada. E coisa de burro. Aguente aí a transcrição:
(...) que Waugh fosse buscar no catolicismo, o mais antigo sistema totalitário da História, a panaceia, me parece sumamente ridículo, e mostra a pobreza intelectual do homem. (...) A grandeza da Inglaterra (...) se deve, inclusive, em boa parte, ao protestantismo, que Cromwell [manteve] à força e decisivamente.
Francis, que foi acólito, diga-se, concedia, ao menos, que o catolicismo era, nos anos 30, uma das duas alternativas de pensamento, senão de conduta, à disposição das “pessoas de sensibilidade da Inglaterra”: a outra, claro, era o comunismo. De fato, há um livro muito interessante de Joseph Pearce, Convertidos literários, que trata precisamente da onda de conversões que arrastou boa parte da inteligência inglesa naquele tempo: Chesterton, Tolkien, o próprio Waugh, Dorothy L. Sayers e outros. Verdade que considerar o catolicismo totalitário e uma alternativa ideológica é, até hoje, um desses erros que parecem impossíveis de consertar na cabeça de gente de esquerda: o mais provável é que todos os convertidos dos anos 30 estivessem justamente fugindo das ideologias comunista e fascista.
Enfim, tudo isso levava Francis a ter também má opinião do caráter de Waugh. Ele achava que Pinfold era a narrativa desonesta de um colapso nervoso, o que ele chama de “completa desintegração mental” de Waugh – uma baboseira, mas, como todas as baboseiras do Francis, deliciosa de se ler:
Pinfold é o crack-up, à la Fitzgerald, de Waugh, mas sem a mesma força, porque Fitzgerald, ao contrário de Waugh, não é belicoso, e não trai o menor traço de pena de si próprio no inferno individual que descreve, enquanto que Waugh é explícito e forte, porém em momento algum chega o dito cujo à seringa. Uma verdadeira autocrítica tem de ser pejorativa, e a dele é estranha, o que quiserem, menos isso.
Entre os problemas desse parágrafo esplêndido estão a presunção de que o crack-up de Fitzgerald (posto em livro postumamente aliás), com mulher louca e suicida internada, fosse do mesmo gênero das alucinações de Waugh, e a insinuação, velada aqui e em outros pontos do texto, de que Waugh tivesse rachado por padecer de algum tipo de culpa de classe, não inteiramente sublimada pela religião.
Que Waugh não era uma besta, nem intelectualmente mendigo, nem muito menos um cavalheiro roído pela culpa (esnobe e reacionário, sim, ele era, e ainda bem), seus livros e as entrevistas deixam claríssimo. A tradução do Adaubam tem, além dos méritos próprios, o não menor de ter conseguido preencher lacunas da que saiu pela Globo comparando duas gravações diferentes disponíveis nesta sempre inesgotável internet.
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Em tempo: sou team Francis há mais de trinta anos. Tenho tudo, li tudo, reli tudo várias vezes, fã mesmo. Por isso lhe perdôo tudo.
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Quando da abdicação de Bento XVI, a Folha de São Paulo enviou o jornalista Clóvis Rossi para cobrir o conclave que elegeria Francisco. Apesar do sobrenome oriundo, o jornalista não fez ou esqueceu as lições do catecismo. Primeiro, disse esperar não ser excomungado pelos leitores católicos por suas opiniões, como se os fiéis católicos tivessem o poder de excomungar alguém, especialmente alguém que, como o jornalista, não comunga. Segundo, e aqui voltamos àquela convicção estranha dos esquerdistas de que o catolicismo é uma ideologia, ele se mostrou espantado de ver que todos os cardeais com quem conversou parecessem acreditar mesmo que o Espírito Santo teria parte na eleição no novo Papa: ele achava que essa conversa era para enganar o rebanho, e que lá dentro, no meio de raposas sofisticadas, tudo o que acontecia era mera ou pura intriga palaciana.
Não é que não possa haver intrigas palacianas nos conclaves e fora deles: cardeais são homens, e tudo o que é humano é esquisito. Mas a Igreja não é um país e não funciona como os países: ela está a serviço não de fronteiras, exércitos, agricultura, metrô, políticas cambiais e tratados comerciais, mas sim da velha, boa e tão frequentemente esquecida salvação das almas. A política, tal como a entendem homens do calibre do sr. Rossi, ali só vai até certo ponto, e só para atender o periférico, nunca o essencial.
Dito isto, ufa, amigo, chega por esta semana. Até mais.
Se eu que sou tonto ,por vezes,tenho lampejos de inteligência, por que pessoas inteligentes ,como Francis , não podem ter lampejos de pensamentos simplistas? Eu perdôo até militância boboca quando o artista( Pintor,escritor,cartunista...) é talentoso.
Tenho o mesmo sentimento em relação ao Francis. Algumas pessoas (ou, no caso, escritores) conseguem esta proeza: por uma afeição à distância, perdoamos seus equívocos ou sandices. Outro que goza desse privilégio comigo é o Nelson Rodrigues.