186. Inimaginável; despertar; esposas; habite-se; cabelão; MJ; mais cabelão; Brasil; impressão; pato; link
O inimaginável não somente é imaginável como também é, quase sempre, acontecível.
* * *
Cochilei. Cochilando, sonhei que dirigia um carro (não sei dirigir) e, enquanto o dirigia, cochilava. O susto me fez acordar duas vezes.
* * *
Acho uma gracinha quando vejo duas jornalistas falando do humor do Lula como se fossem duas tias solteironas falando do humor do sobrinho birrento, ou duas esposas do Mr. Catra falando dos moods do marido.
— Ai, Suzete, hoje ele tá im-pos-sí-vel!
(Risos.)
— Não! Me conta, Apolinária, o que é que foi?
(Risos.)
* * *
Perto daqui de casa estão construindo uns prédios de apartamentos pequenos, ditos “populares”, numa área onde, há tempos, funcionou ou existiu um “sacolão”, isto é, uma feira-livre enorme, ligeiramente mais organizada do que as feiras-livres comuns. Passo de ônibus diante do cartaz e está escrito que estão erguendo duzentas e tantas “unidades habitacionais”. Não “apartamentos”: unidades habitacionais.
Tento não ser preconceituoso com palavras, mas “habitar” me soa mais primitivo, mais animalesco do que “morar”. Bichos habitam, têm habitat; gente mora. Mas a verdade é que se o cartaz dissesse que estavam erguendo duzentas e tantas moradias, eu também embirraria. Sim, sou quase impossível.
Por essa razão também implico com “praça de alimentação”. Alimentar-se é um primitivismo; gente almoça, janta, toma um café, faz uma boquinha, bate um rango. Ninguém vira pra namorada e a convida para se alimentar, ninguém chama a família para a alimentação do domingo.
De volta às “unidades habitacionais”, elas me lembram a letra de Navegar de novo, canção de Arnaldo Batista do disco Loki?, de 1974:
Por que não se criam núcleos
habitacionais menores
para que possa haver maior descentralização?
Para existir o verde,
pra haver espaço?
Os apartamentinhos que estão construindo são núcleos habitacionais mais que menores: são minúsculos. Já é um começo, ainda que pareça o fim da picada.
A esse propósito, aliás, depois de caçoar de leve dele semana passada, presto agora reverência ao Paulo Francis, que escreveu, sobre esse assunto, na sua última coluna pro Pasquim (janeiro de 1976), o seguinte:
O PASQUIM foi melhor em linguagem, ponto. Até hoje me arrepia o cabelo quando entro num avião e o cara diz ao microfone que estamos numa aeronave, em vez de avião. Analfabeto pensa que o não coloquial é sintoma de cultura.
(...)
Orwell achava que a corrupção da linguagem era um dos indícios claros do advento do totalitarismo. Pobre Orwell. Essa corrupção é muito mais prova de uma infinita pobreza mental, do subdesenvolvimento não só de países como do ser humano em geral, que não confia em si próprio o bastante sequer para falar como pensa, o pouco que pensa.
Como ele mesmo diria: nada a acrescentar.
* * *
Duas memórias dos meus tempos de cabeludo.
Uma. Pela época em que conheci a obra do Arnaldo Batista, meado dos anos 80, estava eu num sábado no metrô da Praça da República, nas catracas, esperando alguma mulher. Eu era magro, cabeludo, apresentável, e estava sem meus óculos, esquecidos em casa ou quebrados. Nas mãos eu levava uma revista de rock, talvez a Rock Brigade, com uma foto do Jimmy Page na capa (foi quando ele lançou o primeiro disco de The Firm, a banda apenas razoável dele com o Paul Rodgers, ex-Bad Company). Bom, tou lá, esperando ansioso a moça, e eis que se aproxima de mim um rapaz magrinho, mulatinho, cabelos bem encaracolados.
Ele aponta para a capa da revista e pergunta se sou eu. “Imagina”, respondo. Naquele tempo de cabeludo genérico eu me parecia mais (mas não muito) com Jim Morrison. Ele: “Ah, pensei que fosse”. E me estendeu a mão em cumprimento: “Eu sou o Michael Jackson da Praça da República”.
Retribuí caloroso o cumprimento. Porque sou educado, e, puxa, porque era o Michael. Ou um Michael, o que também serve. Nos despedimos como bons amigos. Anos depois, relembrando a ocasião, percebi que perdi a chance de fazer uns trocados com ele mimicando lá na Praça a Black or white: com uma cartolinha e um par de óculos escuros eu faria facilmente a transição de Jimmy Page para um Slash aceitável.
Eis a minha vida: uma navegação de cabotagem em torno da fama.
* * *
Bem-aventurados os logradouros que têm seus Michaels Jacksons. O Michael Jackson da rua Visconde de Parnaíba. O Michael Jackson da Avenida Pompéia. O Michael Jackson do Beco do Batman. O Michael Jackson do Largo da Misericórdia. O Michael Jackson da Travessa dos Caraibebes. O Michael Jackson da Viela das Lavadeiras. O Michael Jackson do Piscinão da Penha.
* * *
Dois. Minha filha, ainda bebê, gostava, quando estava no meu colo, de puxar os meus cabelões. Puxava e sempre arrancava vários, e imediatamente os metia na boca. Eu ficava pacientemente sendo tosado e tirando das mãos dela a matéria prima do bezoar. Até que um dia me cansei de sofrer, e me cansei também do excesso juvenil. “Sou pai, estou me tornando um sujeito responsável”, disse a mim mesmo, mais ou menos como Robert de Niro dizia ao motorista de táxi diante do espelho, “é hora de botar ponto final nesta bobajada.”
Saí, fui ao barbeiro e pedi a ele que metesse a máquina no número 2, poda de praça pública. Eu, que um dia já fui confundido com Jimmy Page e me achava meio parecido com o Jim Morrison, saí do salão quase sósia do Christopher Lloyd na versão “Tio Chico”.
Quando me viu, minha filha danou a chorar, e se recusava, até com um certo pânico, a vir no meu colo. Quando finalmente veio, horas depois, ficava passando a mão pela minha cabeça, olhos muito arregalados, como se se perguntasse: onde é que foi parar aquilo tudo?
Assim a iniciei nos mistérios.
* * *
Toda vez que alguém diz “o Brasil não esqueceu”, “o Brasil não perdoou”, “o Brasil perdeu não sei quem”, o Brasil isto, o Brasil aquilo, está primeiro sendo covarde, porque chama a si mesmo de Brasil, quer diluir sua cara invocando uma multidão. Segundo, está me enfiando no meio da história sem pedir licença: truculento, autoritário, abusado.
Deixa eu resolver sozinho se vou ou não vou aonde vai esse teu Brasil aí.
* * *
Dizem que a primeira impressão é a que fica. Isso não é verdade: a gente corrige, sim, primeiras impressões, tanto boas como más. Mas algumas primeiras ficam, sim.
Uma vez, comecinho dos anos 80, uma amiga me emprestou um LP da Maria Bethânia. A amiga era louca por ela, a achava o máximo, artista boa estava ali. Para me catequizar, me emprestou o disco, que era, se não me engano, o Pássaro da manhã. Ela me trouxe num sábado e pediu, encarecida, que eu o devolvesse na segunda-feira.
O aparelho de som ficava no meu quarto. Cheguei, pus o disco e a primeira faixa era ela declamando um negócio em cima de um pianinho etéreo. Quer dizer, não exatamente declamava: interpretava, punha pausas e ênfases dramáticas, lá de vez em quando acelerava e erguia a voz meio dando uma de “tomada pela emoção” e tal. Eu estava deitado na minha cama e pensei: nossa, que troço chato. E adormeci.
Devolvi o disco direitinho na segunda, fazendo os elogios protocolares e hipócritas esperados (a menina, afinal, tinha sido simpática), mas nunca mais me livrei da impressão – nem sei se tão errada assim – de que Maria Bethânia é fenergan pros ouvidos.
* * *
Outra primeira impressão que não somente ficou, mas é renovada a cada vez que vejo a mulher: Julia Roberts anda igual a um pato.
* * *
Sendo brasileiro abençoado por Deus e feio por natureza, tenho lugar de fala, que digo, tenho camarote de fala na “questão” da crise estética, e o exerço aqui, na minha crônica nova na Crusoé.
A próxima newsletter sairá precisamente no dia de Natal. Faça de conta que é um presente, sim? E até lá.
Recentemente, ao voltar do treinamento do freela de fim de ano deste ano (eu ainda tenho coragem), descobri que existe um Michael Jackson no terminal rodoviário de São Roque. Sempre achei o lugar bem-aventurado por ficar ao lado de um supermercado (é bom esperar um ônibus sem passar fome). Logo, tudo converge para a grande verdade do seu dito.
Hahaha, hilária a crônica. Também sou fã de Arnaldo Baptista, escutei esse disco um milhão de vezes. Assisti a apenas um show dele, velho e gagá (ele, hein?), apenas ele ao pianinho, fazendo música para um gato (animal) dele e me emocionei. Lojas Bethania, chata, chata, declamando Pessoa com mil erres na boca. "Imagine só, xuxu-beleza... Tomate-maravilha... É a úuuultima moda...Eu vou mais é me afogar na lingerie"