Caso perguntassem ao meu pai, em dia de bom humor, se ele queria enforcar o último rei nas tripas do último padre, como pregava Jean Meslier, ele riria e diria que só se as tripas do tal padre fossem compridas o bastante para enforcar junto o último comunista (meu pai nutria a convicção, muito pitoresca, de que o comunismo era coisa de cariocas vagabundos encharcados de uísque, convicção essa que faz tanto mais sentido quanto mais se conhece a turma do piçóu/Leblon; apenas, o encharque dessa turma inclui outras substâncias). Se, entretanto, ele estivesse sério, responderia que nunca quis enforcar ninguém com tripa nenhuma, que parassem de amolá-lo com essas besteiras e fossem ver se ele estava na esquina. Em todo caso, mesmo que poupasse os padres, o velho era ateu de todos os costados. Ateu não prosélito, não militante: agia como se essas coisas não existissem, ou como se fossem excentricidades do tipo torcer para a Portuguesa Santista ou gostar de comer as penas do frango. Não amolava ninguém e seguia em frente, impávido qual carranca de barco ribeirinho.
Minha mãe, por seu turno, era católica. Na juventude, em Minas Gerais, tinha sido Filha de Maria, e guardava sua medalha e sua fita azul com zelo (nós a enterramos com elas). Enquanto meu pai viveu, seu catolicismo ficou adormecido; depois da morte dele, ressurgiu, moderado: voltou a frequentar missas e tornou-se membro da congregação das senhoras da paróquia de Santo Antônio do Pari, onde chegou a ser tesoureira e falava mal dos padres alemães: nunca aceitou bem a missa nova, e nunca aceitou receber a comunhão da mão de ministro. Ela não impunha sua religião a mim nem ao meu irmão: não nos chamava para as missas, não sugeria que nos crismássemos, nada. Ia sozinha e ponto.
Isto tudo para dizer que cresci numa casa sem religião. Tínhamos a noção vaga de que o Natal era o aniversário de Jesus, noção provavelmente aprendida na escola, em nada diferente, para mim, do aniversário do Duque de Caxias ou do Rei Wamba. No que tangia à minha minúscula pessoa, o Natal era antes tempo de presentes e de lasanha e pernil: esses eram os pratos da casa no dia 25 de dezembro. O peru só apareceu, opa, nas nossas vidas muito mais tarde, e foi antecedido, já nos anos 80, pelo chester, a ave que ninguém nunca viu viva ou ao vivo. Antes disso, a turma se virava com um franguinho.
Meu pai fazia em casa a massa da lasanha, sempre grossa. Vê-lo nessa indústria era ver um evento de oficina mecânica, tal o uso irrestrito do espaço, o espalhamento igualmente irrestrito dos insumos e ferramentas, e os ruídos do serviço, mais eventuais imprecações. Ovos, farinha, movimentação frenética, cenho franzido em sinal de grande concentração (minha tia Guiomar era igualzinha), o velho parecia um técnico de futebol treinando uma defesa meio fazendeira. Ou um mestre de obras. Não sei como não usava uma trena, um esquadro, um capacete, um apito. Pronta a massa, no dia 23, deixava-a dormindo na geladeira, abrindo-a em folhas no dia 24 à tarde. Então as folhas eram deixadas descansando, até a manhã do Natal, dentro de uma vasilha com leite (na época o leite era de saquinho: cor cinza para o C, cor verde para o B; a cama da massa era de leite C). Na manhã de 25 ele montava cuidadosamente a lasanha, segurando as folhas com delicadeza e dificuldade e pondo-as na forma na seguinte ordem: molho de tomate, massa, molho de tomate, presunto; massa, molho branco, mozzarela; e assim alternadamente até que o edifício lasanhal ombreasse com as bordas da forma. Por cima de tudo, parmesão, molho branco e molho vermelho. Minha mãe usava molho de tomate pronto: ela nunca aprendeu o serviço comprido, chato e delicado de cozer os pomodorini, pelá-los, amassá-los, peneirá-los e engrossar o resultado por um tempão em fogo lento para fazer o molho comme il faut (vai em francês para que o amigo saiba que os franceses não têm que se meter com o sugo). E raramente meu pai, que sabia muito bem como fazê-lo, tinha a paciência. Molho de latinha pronto, armado em bolonhesa com a carne moída refogada à parte, mais o bechamel caseiro, e voilà: nossa lasanha-pastroccio particular, macia, úmida, olorosa, uma dessas delícias estrondosas que ecoam pelo resto na vida e se tornam uma lembrança mais querida do que o rosto e a voz de muitas namoradas.
No dia 24, à tarde, massa já em seu leito lácteo, meu pai tratava de temperar o pernil à sua moda e deixá-lo em vinhas d’alho durante a noite. Eu acompanhava o serviço em parte, gostando do cheiro do vinho, detestando o do alho e principalmente o da cebola, e via que ele esburacava o pernil com a ponta da faca, “pro tempero penetrar”. Minha mãe acordava cedo e metia a carne no forno lá pelas seis da manhã; ao meio-dia lá estava ele, dourado e estalando em cima da mesa. Meu pai tirava fatias grossas e mergulhava nacos da panhoca no molho que sobrava na forma. Vinham as lascas parrudas e os pequenos edifícios de lasanha para os nossos pratos como se fossem – bah, e eram – presentes em si mesmos. Comíamos tanto que saíamos da mesa sonolentos, calangados.
Era também um dia raro de refrigerantes. Não tínhamos o hábito de beber refrigerante em casa. Mas, no Natal, meu pai trazia garrafas de guaraná e de soda (sempre da Antárctica), de Gini e, enquanto houve, de Crush e Ginger Ale (da antiga, escura e doce). Meu pai não comprava Coca-Cola e nem nos deixava tomar: dizia que dava brochura, o que eu só vim a descobrir o que era anos depois. As garrafas eram das pequenas, de 300 ml., cujos cascos ficavam guardados debaixo do tanque, no quintal, geralmente com bebês-barata mortos pelo excesso de açúcar do que sobrava no fundo delas. Meu pai enchia os copos meu e do meu irmão de soda e pingava vinho: era a nossa pink lemonade primitiva, que adorávamos.
Também não tínhamos o hábito do panetone, nem o das rabanadas. Geralmente ganhávamos uma bacia de crostoli feitos pelas tias, o que era mais do que suficiente. Ou então bolo de chocolate, ou ainda a torta de maçã delas, que tinha massa quadriculada por cima e, por recheio, uma pasta de maçãs verdes amassada com canela e açúcar cristal. Não queríamos saber de mais. Antes do panetone entrou em casa o pan d’oro, trazido por algum tio-avô. É melhor do que panetone, mas você, amigo, nunca vai estar pronto para essa verdade fundamental e vai continuar vivendo sua vida em dor, miséria e ilusão. No fim de tudo, café preto, feito à maneira árabe e coado em coador de pano. Não era luxo, sofisticação ou excentricidade – era como era.
Isto tudo no dia do Natal; a ceia do dia 24 era um jantar comum, no horário comum.
Em 1971, ganhei um trenzinho elétrico. A locomotiva levava pilhas grandes; meu pai preferia as vermelhas, as do gato, Eveready; eu queria aquelas que tinham o Pelé, as azuis e amarelas, Ray-o-Vac (era assim que se escrevia). O pai prevaleceu. Mas tanto fazia. Ela tinha carcaça de metal e era ligada movendo uma lingueta plástica na frente, como a manivela de um velho Ford Bigode, só que deslizante em vez de giratória, e puxava dois vagões plásticos, um com portas que abriam e fechavam (vazio), outro tipo caçamba, com caixinhas de papelão (vazias: eu as abri e fiquei decepcionado). Os trilhos plásticos se encaixavam com um clique forte; o circuito deles era circular. No primeiro dia, achei aquilo o máximo; no segundo, o circuito imutável já me entediava. Comecei a ligar os trechos retos dos trilhos e fazer o trem descarrilhar; era muito mais divertido. Ou fazê-los em forma de ladeira, vendo, decepcionado, que a pequena locomotiva não tinha força para subir. Quebrou logo.
Em 1974, ganhei um Forte Apache. O forte era de madeira (logo o fizeram de plástico). Os bonequinhos dos índios eram impressionantes, especialmente os que eram feitos para cavalgar: cocares, coletinhos de cantor brasileiro de samba-rock, tacapes. Mesmo assim, os garbosos soldados de azul os matavam aos magotes, como um palhaço sapateando em cima de baratas ou formigas. No meu forte os apaches não se criavam. Com o tempo, a pintura dos bonequinhos, vagabunda, descascava, e terminavam todos cor de carne, como o abajur da menina veneno: pequenos manequins nus, alguns de cocar. O que restava era repintá-los com canetinhas hidrocor: as famosas Sylvapen ou Bic Ponta Porosa (ela é macia, ela é a mais gostosa), com resultados decepcionantes até mesmo para uma criança.
Em 1977, ganhei um rádio portátil Philco (não era Evadin, e não tinha a capinha de couro que terminava ficando lustrosa, ensebada e fedegosa). Pegava AM e FM (com som de AM) num dial arredondado, e tinha uma banda de ondas curtas (uma só). Eu o usava para ouvir os jogos do Palmeiras, primeiro na Jovem Pan com sua adaptação da música do Trio Esperança sempre que saía um gol (“que bonito é...”), revezando com a Bandeirantes, na época ainda sob o reinado de Fiori Gigliotti (“abrem-se as cortinas e comeeeeeça o espetáculo”), que fingia não ser palmeirense roxo, e por fim na Globo, já com a dupla Osmar Santos/Oscar Ulysses. De todos, eu gostava mais do Osmar, mas o sotaque, o modo de falar, até o vocabulário grandiloquente do Fiori era o dos meus: era como ter um tio-avô narrando, uma sensação familiar de história contada à mesa da casa da avó. Esse rádio me acompanhou uns bons anos, e ficou emprestado para o meu pai quando o dele, um Philco Ford Solid State, quebrou.
Numa fita cassete havia a gravação de Anoiteceu, que também atende pelo nome de Boas festas, na voz do Carlos Galhardo; sempre a ouvíamos. A letra é triste, patética; até hoje se a escuto tired and emotional, isto é, encachaçado, meus olhos ficam querendo umedecer:
Anoiteceu, o sino gemeu,
a gente ficou feliz a rezar.
Papai Noel, vê se você tem
a felicidade pra você me dar.
Eu pensei que todo mundo
fosse filho de Papai Noel;
bem assim felicidade
eu pensei que fosse uma
brincadeira de papel.
Já faz tempo que pedi,
mas o meu Papai Noel não vem:
com certeza já morreu,
ou então felicidade
é brinquedo que não tem.
Fazia calor no dia 25, geralmente chovia mais pro final de tarde. Abríamos a porta da cozinha e deixávamos o vento, e até uma parte da chuva, entrar no apartamento de resto mal ventilado, refrescando um homem adulto e dois meninos (os três só de cuecas) e uma mulher (de vestido leve e chinelos). Então vinham da geladeira umas fatias de melancia, uns cachos de uva italiana, ou saía água gelada para misturar ao xarope de groselha. O jantar era um café simples, com o pão que tivesse sobrado (nada nunca estava aberto no dia 25) e umas fatias frias de pernil. Deitávamos cedo, dormíamos o sono narcotizado dos bois e acordávamos para a melancolia pós-festim do dia 26, para a anormalidade da vida normal.
* * *
Em quase quatro anos de newsletter, esta é a primeira vez que o dia dela ir ao ar coincide com o Natal – ou com o finzinho do Natal, já que ela sobe às 21h00, faltando pouco para acabar o segundo dia mais feliz dos cristãos (o primeiro é o domingo de Páscoa).
Surgiu a luz do mundo.
Que o seu Natal esteja sendo até agora muito feliz, leitor amigo, e que essa felicidade vá se espichando para o ano que vai entrar. E que a gente possa continuar juntos por aqui por mais alguns Natais e anos novos ainda.
Nos vemos do lado de lá da porteira, dia primeiro. Salve, vale.
Uma história comum descrita tão bem, que chego a ter a impressão de tê-la vivido. Parabéns!
"meu pai nutria a convicção, muito pitoresca, de que o comunismo era coisa de cariocas vagabundos encharcados de uísque, convicção essa que faz tanto mais sentido quanto mais se conhece a turma do piçóu/Leblon; apenas, o encharque dessa turma inclui outras substâncias"-Seu pai era um sábio à frente de seu tempo.