188. Regra; resolução; lei; medicina; livros; discos; Átila, o Baiano; Oscar; trajeto; São Silvestre; malucos; Geena Davis; drag; feliz Ano Novo
Com sua licença, leitor, cago aqui uma regra de vida: quase nada do que dizem ser “simples assim” é, de fato, simples assim.
* * *
A única resolução de ano novo que sou capaz de fazer é a de tentar chegar vivo até o dia 31 de dezembro. Tenho repetido essa resolução há alguns anos (e a repetido aqui; perdão), e a taxa de cumprimento é, até agora, de 100%; mas sei que haverá o ano em que falharei. Mas, pelo menos, vou falhar uma vez só.
* * *
Espero que a partir deste 2025 se institua alguma lei de cotas para candidatos a cargos majoritários (presidente, governador, prefeito). Tantos por centro de negros; tantos por cento de indígenas; tantos por cento da infinidade de letrinhas que constituem, coletivamente, aquilo que chamarei de homossexuais em geral; tantos por cento de deficientes físicos e mentais. Assim, para cada dez candidatos à presidência da república, quatro teriam que preencher essas cotas.
Eu, da minha parte, passarei a votar sempre no deficiente físico ou mental, e terei por mui auspicioso o dia em que nossos destinos forem entregues a um (ou uma, sei lá) presidente trans cafuzo, tetraplégico e down. E não admitirei nenhum golpe parlamentarista. É na mão dele (ou dela, sei lá) até o fim.
* * *
Em 2020, o médico que fez ultrassom nos meus rins me disse: “Daqui a cinco anos, sêo Orlando, a medicina vai ser totalmente diferente. Tudo o que o senhor precisa fazer é chegar lá em condições de ser ajudado”.
Gastei dezembro em exames mil, e olha: aquele doutor era um otimista. A medicina, pelo que vi, mudou muito pouco. Eu, que sou pacato, mudei bem mais. E não para melhor.
* * *
Os melhores livros que li em 2024 foram A fazenda africana, de Isak Dinesen (se você for procurar nas livrarias, amigo, e eu recomendo muito que o faça, o achará com o nome verdadeiro da autora, a baronesa Karen Blixen); A question of upbringing, de Anthony Powell (é o primeiro livro de uma série de doze, série que atende coletivamente pelo nome de A dance to the music of time, e que é uma versão romanceada da vida upper class da Inglaterra ao longo do século XX); Vidas escritas, de Javier Marías (o capítulo desse livro sobre a baronesa Blixen é maravilhoso); Roland in moonlight, de David Bentley Hart (este lido nos últimos dias do ano, seguindo a recomendação entusiasmada dos amigos Francisco Escorsim e Diogo Rosas G., recomendação que ora estendo ao amigo e espero, faço figa mesmo, para que alguém traduza por aqui, quem sabe o pessoal da editora Ecclesiae); e À sombra das chuteiras imortais, crônicas hiperbólicas de futebol do mais do que hiperbólico Nelson Rodrigues.
Também lidos e gostados: Especulações cinematográficas, do Quentin Tarantino; Uma canção nas trevas, de Edgar Wallace; A louca matança, de Chester Himes (escritor negro de romances policiais, sempre útil para citar quando a patrulha der aquela apertada, com a vantagem de que ele é bom mesmo); A retirada da laguna, do Visconde de Taunay; e Um místico brasileiro: vida e milagres de Antônio Conselheiro, de Robert Cunninghame Graham (a guerra de Canudos vista por um escocês inteligente, que achava Canudos uma consequência meio lógica da mistura de fanatismo católico com muito sol na cuca e pouca coisa na barriga; Borges, meio mentiroso, dizia gostar mais deste livro do que de Os sertões).
* * *
Na categoria dos discos, hão de contar tanto os saídos neste ano quanto as coisas que conheci neste ano. Na primeira rubrica, ouvi pouquíssimos discos do ano (é assim desde 1991), e só gostei muito de Meanwhile, do Eric Clapton, e de Lives outgrown, de Beth Gibbons, que foi cantora do Portishead, este último precioso mesmo. Dou um joinha para Songs of a lost world, do Cure, Yessonata, do Rick Wakeman, e Luck and strange, do David Gilmour, mas uns degraus abaixo daqueles primeiros: são mais do mesmo, ainda que um mesmo muito bom.
Na rubrica dos que conheci neste ano, Visions of the country, disco de 1978 de Robbie Basho; Heartleap, disco de 2014 de Vashti Bunyan; e Andromeda heights, disco de 1987 do Prefab Sprout, foram os mais impressionantes. Jacob’s ladder, disco de 2022 de Brad Mehldau, também me eriçou a cabeleira, assim como Art Pepper plus Eleven¸ de 1960.
* * *
Estou na bancada da cozinha, devastando o que sobrou do tender. Devastando mesmo: sinto-me qual Átila, o Huno – o tender é o butim que tomo de um romano gordo decepando-lhe as mãos, a vitória me embriaga, a lâmina da faca sobe e desce sem pausa, tudo é incêndio, sangue e gritos – ao menos, na minha imaginação. Aliás, se não for para jantar assim, melhor jejuar.
Uma das gatas sobe na cadeira ao meu lado e mia delicada. Ela quer tender.
— Você não sabe o que aconteceu com o tigre que roubou o tender de Átila, o Baiano?
Átila, o Baiano, porque enche o saco ficar falando e escrevendo Átila, o Huno. Pela cara dela, ela não sabe. Informo, sucinto:
— Foi massacrado.
Ela mia de novo.
— É verdade – insisto –, virou tapete.
E complemento:
— Serviu de exemplo para os demais felinos ladrões.
A frase sai truncada, porque falo com a boca cheia de tender. Engulo e arremato:
— Fique avisada.
Ela vem e encosta a cabeça nas costas da minha mão, a mão do garfo. E mia de novo. Ela sabe que não sou Átila, o Baiano: sou Orlando, cantado pelos trovadores e pelos credores como o Coração Bobalhão. Ela me manja e está, pois, avisada. E sabe que baiano não tem tigre; tem, no máximo, tigresa, e ela o faz de gato e sapato. Por isso segue miando e esfregando a cabeça.
— Tem certeza? Quer mesmo? Olha lá, hein. Você pode estar selando o seu destino.
Ela não olha nada lá, nem ali, nem acolá. E que mané destino? Gato tem sete destinos, pode arriscar unzinho no altar do tender. Ela mia e pede, pede e mia.
Capitulo. Dou-lhe um pedacinho de tender. E depois mais um, e outro, e mais um. Lá se foi pras cucuias a disciplina de Átila, o Baiano. E ela, além do mais, é pequena demais para dar um tapete que preste.
* * *
Tentando ficar em dia com esse negócio de Oscars, assisti recentemente Kramer versus Kramer. Vi e pensei que, se esse filme fosse rodado hoje, o personagem de Dustin Hoffman não seria simplesmente o pai dedicado que cria o filho depois da mulher meter o pé e passa seus perrengues com isso, tornando-se no processo um sujeito melhor. Não: ele teria necessariamente algo de mau, seria culpado de alguma coisa muito ruim, alguma vilania terrível que seria revelada ao longo da trama: adultério, violência doméstica, ladroeira, psicopatia, nazismo, racismo, ódio a mendigo, qualquer coisa que suavizasse ou justificasse a fuga de sua ex, e que tornasse a vitória dela no tribunal um ato de justiça moral. E seria, portanto, um filme muito pior.
* * *
Terminado de assistir o filme, o serviço de streaming me sugeriu, em seguida, Tootsie. Fiz o que raramente faço: aceitei a sugestão e vi a fita. (Não se chama mais filme de fita, não é? Fita virou gíria de bandido, pelo menos aqui em São Paulo, mas já foi sinônimo respeitável, aceito em sociedade e nos lares, de filme. Tudo muda, veja só.)
O filme saiu no finzinho de 1982, meu primeiro ano de trabalho com carteira assinada (expressão, “carteira assinada”, que tem, para a minha geração, uma importância que as mais jovens desconhecem). Foi levado no hoje extinto Cine Ipiranga, creio que primeiro na sala 1, a maior, e depois na 2, menor e mais simpática. Esclareço aos mais moços que o cinema tinha esse nome porque ficava na Avenida Ipiranga, não no bairro do Ipiranga. As fachadas dele e do Marabá, que lhe era fronteiro, do outro lado da avenida, eram imensas; ainda é uma imagem que carrego comigo ver, da janela do ônibus linha Estações número 46, a figura imensa de Dustin Hoffman in drags, parecido com a tia solteirona da Barbra Streisand, sorrindo um sorriso meio psicótico lá do alto dos seus três metros de comprimento.
A imagem é querida porque era a vista de quando eu estava indo para casa depois do expediente. Eu pegava o ônibus no ponto quase em frente ao também extinto Cine Windsor, na mesma Ipiranga, e seguia por ela, passando pela Praça da República, entrando na Avenida São Luís e seguindo até o cruzamento complicado com Consolação, Martins Fontes e Xavier de Toledo, ali onde antes ficava o prédio do Diário Popular (hoje é um hotel) e ainda está a lanchonete do Estadão. Então vinham em seguida dois viadutos, o Nove de Julho e o Jacareí, diante da Câmara Municipal, e dali a Rua Maria Paula, para, a partir da esquina com a Brigadeiro Luís Antônio, chegar outro viaduto, o Dona Paulina, que nos levava à Praça João Mendes. Contornada a Praça, na esquina na Tabatinguera com o Palácio de Justiça tomávamos a Rua Anita Garibaldi com a Praça Clóvis Bevilacqua à nossa direita, e dela desembocávamos na Rangel Pestana, circulando assim os lados sul e sudeste da Colina Histórica e descendo o que um dia foi a Ladeira do Carmo até o Parque Dom Pedro II. O Parque e o Tamanduateí eram vencidos sobre o Viaduto 25 de Março, ao fim do qual a Rangel seguia até à linha do trem. Já não havia mais as porteiras do Brás: há outro viaduto (meu Deus, quantos), Maestro Alberto Marino, que nos deixava no Largo da Concórdia. O ônibus o contornava, dobrando à direita na Rua Firmino Whitaker e depois, à esquerda, na Maria Marcolina, onde eu saltava no ponto que havia, deve ainda haver, na altura do 284. Dali, a pé, eu tomava à direita na Conselheiro Belisário, cruzava a Casimiro de Abreu e, na esquina com Xavantes, Oriente, Maria Joaquina e Rubino de Oliveira, entrava por esta até, à esquerda, a Almirante Barroso, onde eu morava. Meu pai ainda estava vivo. Éramos quatro.
* * *
Na noite de 31 de dezembro, uma parte pequena desse trajeto coincidia com o da corrida de São Silvestre. Na virada do ano de 83 para 84 a Gazeta, quebrada, tinha que dividir a organização com a Globo, e esta fez a corrida mudar o trajeto: começando na Paulista, descia a Brigadeiro e pegava o mesmo viaduto Dona Paulina, contornando a Praça da Sé pelo lado esquerdo até a Boa Vista (na época, ainda a rua dos bancos) e descendo a São João até o minhocão. Corria-se à noite, durante a virada, de modo que o campeão (Emil Zatopek foi um deles) tivesse mais a comemorar do que os outros.
O cartaz de Dustin Hoffman vestido de mulher viu com o canto do olho, naquele restinho de 83, a prova ser liderada pelo brasileiro João da Mata de Ataíde, que a venceu.
A corrida noturna era um evento grande da cidade, um evento charmoso. Permaneceu noturna enquanto esteve nas mãos da Gazeta, primeiro a Esportiva, depois a TV. Nas mãos da Globo passou para a tarde, o que ainda tinha alguma graça, menor, e hoje a correm de manhã, quando quase ninguém vê, e a única dúvida que resta é se ganha este ou aquele queniano de segundo escalão (nem os quenianos de ponta vêm mais).
* * *
Uma vez, nos anos 90, fomos eu, minha mulher e minha filha ainda quase bebê ver a São Silvestre numa tarde do dia 31. Ficamos ali na lateral do Teatro Municipal, na Conselheiro Crispiniano, quase esquina com a 24 de Maio. Vimos o pelotão de frente (não lembro o nome do queniano que liderava), depois o intermediário, depois o que interessava: o dos malucos. Passaram por nós alguns Batmans e outros tantos Homens-Aranha; homens vestidos de mulher; padres; vikings; garçons carregando bandejas com copos cheios; um astronauta; uma baiana de escola de samba (era homem); um dos muitos reis das embaixadinhas; algumas noivas e freiras (todas homens); palhaços, muitos palhaços; um doido com capa cintilante e aquelas botas de plataforma do Gene Simmons; uma melindrosa (homem); gente ostentando seus times, todos os grandes e alguns médios representados; um Capitão América com escudo de isopor; uns caras com faixas presidenciais no peito; um com cabeça de cavalo.
Todos eram saudados, aplaudidos, incentivados. Torcer pelo maluco é sempre uma alegria. Saímos de lá muito contentes.
* * *
Se você acha que não tem motivo para ver Tootsie, vou lhe dar um: Geena Davis, na flor orvalhada e rosada de seus vinte e cinco anos, tem um par de cenas em que aparece só de calcinhas e sutiã. Sua figura mezzo Manara, mezzo Crepax enterra Dustin Hoffman e o faz parecer a velha surda do programa de humor, quase irrelevante, quase invisível, tendo que berrar para ser notado. Quando voltamos os olhos para ele, é com uma espécie de culpa, como se tivéssemos deixado na chuva uma avó, um cachorro, uma criança. É preciso ser um gigante para sobreviver ao que a tela mostra, e muito gigante não aguenta. O poder imenso da mulher bonita, que não adianta querer combater.
* * *
Minha filha viu Tootsie comigo e me corrigiu quando o chamei de travesti: ela disse que não, era um drag, homem que se veste de mulher sem ser homossexual, com propósitos artísticos ou de farra. Tal qual as freiras, noivas, baianas do acarajé e melindrosas da São Silvestre. Deixo registrada a definição para ilustração e escarmento meu e teu, ó leitor.
* * *
Assim como aconteceu no Natal, esta é a primeira vez que esta newsletter vai ao ar no dia do Ano Novo. Nada resta senão desejar ao amigo que este ano, que já conta aliás com vinte e uma horas, lhe seja tremendamente bom, estupendo mesmo, muito do feliz e do abonado: será, se tudo correr como deve, nosso quinto ano juntos por aqui, nossas bodas de madeira. Mas não entre de vez no ano sem antes ler minha crônica nova na Crusoé, sim? Isto feito, vai lá, tome caminho. Nos vemos ao longo dele.
Hilarious, nostalgic and very assertive!
A damn Good Newsletter. Have a happy New Year extended to your Family of course.
Temos que lutar por uma cota para algum candidato à presidência SEM deficiência intelectual posto que já são majoritários