189. Segredo; cidade; tempestades; espanto; árvores e vento; mais vento; resistência; break; sul; trilha sonora
Envelhecer é, entre outras coisas, não fazer caso de participar do segredo.
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Moro em andar intermediariamente alto, o sexto, ou seja: tenho vista de cima para os arredores. Parece bobagem dizer isso, mas morei vinte e dois anos numa casa em encosta de ladeira, e não via de cima nem sequer o outro lado da rua. Não é entretanto maravilhosa a vista nova: prédios vizinhos e suas garagens e áreas de lazer, bem como as janelas e sacadas de seus apartamentos, e a laje grande de uma loja de colchões no térreo do nosso prédio, cujo aluguel ajuda a abater um pouco o valor do condomínio. Para além dessa vizinhança desenxabida, veem-se outros prédios mais ou menos distantes, telhados de sobrados, as copas de algumas árvores, um trecho curto de uma avenida; à noite, vemos o brilho das luzes de rua e de alguns letreiros de comércios. Uma visão anódina, citadina, na qual mais de uma alma sensível viu motivo de tristeza, até de desespero (mas não nós; para nós, por enquanto, não tem problema).
Dia destes, da janela da lavanderia, eu apontava para a minha mulher um par de antenas lá longe, no topo da linha de prédios do horizonte, característica de São Paulo, a skyline.
— Aquela à esquerda eu acho que é a da Gazeta; a outra, mais pra direita, deve ser aquela entre a Doutor Arnaldo e a Consolação.
Ela nunca morou antes fora da periferia, dos bairros distantes do centro, e tinha esse tipo de vista apenas das janelas dos escritórios. Comentou:
— Pois então, estamos morando na cidade.
Não a cidade como entendem o termo os da minha geração, o centro (velho ou novo, tanto faz), embora não estejamos muito longe dele; é a cidade como oposição parcialmente agitada e vertical ao marasmo quase todo horizontal da periferia: ruído, gente na rua, comércio, azáfama. Para ela, tudo isso é uma novidade, e nem sempre muito bem-vinda, embora as facilidades no ir-e-vir e no abastecimento a tenham conquistado.
O Brás da minha infância era assim: ruído, gente na rua, comércio, azáfama. O bairro de então difere do de hoje por antes ser um pouco mais residencial, e porque não havia a little Bolívia que hoje há entre as ruas Costa Valente e Cesário Alvim, ao longo de praticamente toda a Rua Coimbra (mas o little Líbano da Oriente até o Pari já existia, e continua existindo, assim como a little Coréia do entorno da Silva Telles).
Por isso, quem sabe, quando ando pelas ruas do entorno de casa, me voltam algumas das sensações, já esquecidas, da infância. Especialmente quando bate o vento nas copas das muitas árvores que há por aqui.
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Neste verão recém iniciado as tempestades voltaram a dar o ar e o vento de suas graças e desgraças em São Paulo. Dia 2 saltei da estação do trem pouco depois das seis e meia da tarde; ainda havia no céu um resto de luz do sol, o suficiente para deixar ver, pros lados da zona norte, a gangue de nuvens escuras se reunindo para o assalto e a baderna. Também já se faziam sentir os primeiros fios de vento (são fios mesmo; eles nos correm pelos cabelos como os dentinhos de um pente tirado da geladeira) que a arrastaria a gangue dos nimbos na nossa direção. Lá vem toró brabo, disse eu, tautológico, para os botões ausentes da minha camiseta.
Deu tempo de chegar em casa, trocar de roupa e jantar. Pouco antes das oito fechamos os janelões da sala e vimos o mundo cair. Passei um tempo grande olhando ondas de chuva sendo levadas pelas lufadas de vento, a linha dos prédios desaparecendo sob o aguaceiro, e até os prédios vizinhos se tornando indistintos. Quando dei por mim, estava de joelhos no sofá, a cara na janela, como se tivesse outra vez seis anos de idade e visse de novo, espantado e fascinado, minha primeira borrasca, um pedaço assustador da realidade, do mundo. A autoconsciência, claro, acabou com aquela sensação na mesma hora; saí de lá e fui cuidar da vida.
Envelhecer é voltar à infância, mas uma infância sem inocência e sem proteção: uma infância que tem de cuidar da própria vida.
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Por outro lado, se envelhecer for também retomar a capacidade de me espantar, de ficar mesmerizado com as coisas, com algumas coisas ao menos, então tudo bem: pode vir, velhice. Me devolva uns sentidos que pareciam perdidos.
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Paulo Francis dizia abandonar livros nos quais os autores dissessem que as copas das árvores estavam swaying gently à brisa ou à ventania; o clichê lhe parecia insuportável. Ora, lido é mesmo. Mas visto e sentido, bah, para mim é sempre bom e bonito.
O caminho do centro para o Brás passava quase sempre pela Rangel Pestana e pelo viaduto 25 de Março, que unia suas duas pontas sobre o Tamanduateí. Na ponta caída para o Brás havia, e ainda há, um par de árvores do lado direito, bem ao pé do viaduto, perto da esquina com a rua a Figueira. Muitas e muitas vezes passando por ali de táxi, de madrugada, vi e ouvi as copas dessas árvores swaying gently à brisa da noite, e esse ruído, bem como o vento que entrava pela janela do carro (sempre aberta), tinham sobre mim um efeito repousante, como se me nanasse.
Agora, deste sexto andar, muitas vezes escuto o gentle sway das árvores do entorno; se estou sentado no sofá, meio entorpecido de sono, flutuo entre três mundos – este, o dos sonhos, e aquele que já não existe mais, perdido nos anos lá atrás. E, no entanto, sou um e o mesmo em todos eles.
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Se abrimos as janelas todas, da lavanderia e da sala e dos quartos, o vento atravessa este apartamento de um lado a outro. Faço isso quando estou sozinho ou só com a minha mulher (minha filha reclama de frio). As janelas tremem, as portas batem, roupas drapejam (eu gosto desse verbo, drapejar; deduzo que a maioria dos que escrevem em português no Brasil de hoje não o conheça ou não goste) meio alucinadas no varal, idem as sacolas penduradas em preguinhos batidos na parede (viemos da classe C, muito prazer), nenhuma folha solta pode ficar sobre mesa ou bancada, as cortinas se erguem e se curvam como fantasmas fazendo vênias a seus mestres, outros fantasmas que uivam junto com a ventania.
É uma delícia, uma coisa parecida com sonhar que estou voando (nunca sonhei isso, até onde me lembro).
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Se ameaça a minha resistência, serei uma pausa para um cafezinho.
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Em 1983 eu conheci, no trabalho, um dançarino de break (era moda dançar break em 1983) e fazia coisas estranhas, meio robóticas, com o pescoço e a cabeça. Era um cara até legal. Não sei a troco de quê, falei com ele uma vez sobre “meditação transcendental”. A expressão o fez rir muito, quase chorar de rir: ele riu mais do transcendental do que da meditação.
Em todo caso, para quem dança break, qualquer transcendência deve parecer ridícula. Eu era jovem e não entendi isso.
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“Faça login para continuar.”
É o meu email?
Não.
É uma das minhas redes sociais?
Não.
É sistema do trabalho?
Não.
Então vá pescar no sul.
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Passando o Ano Novo em casa de familiares da minha mulher, a certa altura uma das minhas cunhadas me pediu que tomasse conta da trilha sonora. Mau aviso dela me pedir, mau aviso meu aceitar. O gosto musical dos presentes oscilava entre pagode, sertanejo e o pop nacional hodierno, três áreas do mapa musical que fogem completamente da minha expertise. Me arrisquei com pop dos anos 80, isto ou aquilo de classic rock (os mais calminhos e conhecidos), alguma coisa nacional do meu tempo . Fui logo substituído.
A noite de Ano Novo estava fresca; eu, que nunca fui o mais entusiasmado dos convivas nem a alma de festa nenhuma, achei um canto silencioso para mim e por lá fiquei até pouco antes dos fogos espocarem. De onde estávamos não se viram muitos: azar nosso, ou pouco entusiasmo geral, ou um pouquinho de cada coisa. Poucas luzes, pouco ruído, uma rodada de taças de espumante doce demais, bons votos, beijos e abraços.
Uma vez vi uma foto de uma virada de ano em algum lugar dos Estados Unidos, Nova York talvez, nos anos 40. No telhado de um prédio, um camarada com um belo terno segurava uma taça de alguma coisa na mão, champanhe decerto, e, com um pé apoiado no beiral, braço descansando sobre o joelho da perna curvada, olhava para cima. Estava sozinho naquele teto; tudo o que podia estar sentindo ou pensando ficou lá com ele naquele momento – a mim só chegou sua imagem, mais plácida do que solitária, mais meditativa do que melancólica, outro homem adulto separado de mim por, afora tudo o mais, dezenas de folhinhas viradas e uma estação invertida (aqui é verão). Sem saber nada sobre ele, deduzo, arbitrariamente, que talvez ele, como eu, só quisesse um cantinho para respirar fundo antes de – our burden – botar um pé diante do outro e ir em frente.
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Em frente nos vamos e vemos, amigo: até semana que vem.
Crônica suave e nostálgica, nos remetem a bons momentos vividos. Abraços e ate lá.
Nunca sonhou que estava voando? Sonhei com isso inúmeras vezes quando era moleque, depois parou