190. Agostinho; Mercúrio; Mercúcio; idolatria; checar; bálsamos civilizatórios; woke; óculos; pontuação; ideologia; link
Santo Agostinho fustigava um paganismo em retirada. Nós – ou pelo menos os sãos entre nós – nos divertimos com a debilidade mental do paganismo que renasce.
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Quando ficar novamente retrógrado (consta que será nos idos de março), Mercúrio vai querer matar Júlio César.
Já Mercúcio não fica retrógrado nunca.
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Políticos para se idolatrar ou seguir em rede social: só os escancaradamente malucos e os (cada vez em menor número) muito extravagantes ou excêntricos. Berlusca. Os falecidos Enéas e Plínho. O Kógoz. Esses tipos. Os outros você, se quiser, siga na rua, gritando coisas que dentro de casa, ou diante de senhoras, nem sequer se murmura.
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Não são muitas as coisas em que estou de acordo com José Saramago (não que ele jamais tenha sabido disso, ou, se soubesse, que se importasse), mas há uma em que formamos juntos: a ojeriza ao verbo checar. Não me lembro se a bronca do Saramago com o verbo ia além de sua inutilidade (o português dispõe de sinônimos bons e ainda em uso: verificar, apurar, corroborar, confirmar, fazer prova de) e de sua anglofonia tão evidente, o que costuma causar sofrimento até físico em comunistas da velha escola. Eu, do meu lado, concordo com a inutilidade, não dou bola para a anglofonia, e me queixo muito, e principalmente, de como soa feio aos nossos ouvidos macios de lusófonos: checar. Fale em voz alta: checar. Não é horroroso? E com soa sugestivo de sacanagem, sendo “checa” um dos nomes populares de coisa que é escusado definir.
Daí que, adicionalmente, eu ache que “checagem profissional” parece eufemismo para prostituição. Imagine-se o amigo andando pela rua, e uma checadora profissional, ora no olho da rua, ganhando a vida encostada num poste, o convide:
— Vem, bonitão, vou te dar aquela checada pro-fis-sa.
Caso o amigo, compreensivelmente, vacile, a demitida do Zuckerberg acrescentará, entre impaciente e zombeteira:
— Deixa de frescura, franguinho. Lavou, tá novo.
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Quando eu era menino, havia três bálsamos, três panacéias universais que eram também, por sua vez, três pináculos da nossa civilização, três norteadores das nossas virtudes: o merthiolate (que substituiu duas panacéias anteriores, o mercurocromo e a tintura de iodo), o Biotônico Fontoura e o leite de magnésia de Phillips.
O merthiolate, que ardia como o inferno e forjava o caráter, a hombridade, até o patriotismo, perdeu em anos recentes essa propriedade ardente, ou ardorosa, enfim, e temos visto os resultados disso na decadência do Ocidente. (O mercurocromo era ainda pior: meu pai arranjou uma vez e usou em mim, sádico. Ardia mais que merthiolate, mas também causava dores musculares: era a um tempo ferro em brasa, pauladas e pontapés. Não à toa, seus usuários se meteram em duas guerras mundiais.)
O Biotônico Fontoura, levemente alcoólico, era tido e havido (e também vendido) como azougue e fortificante. Talvez por ser alcoólico quiséssemos bebê-lo direto no bico, como os americanos e suas cervejas; talvez. As mães nos davam uma colherada de manhã, uma colherada e olhe lá, e, se ficássemos anêmicos (os sinais clássicos de anemia eram olheiras e bom comportamento), batiam-no no liquidificador com ovos de pata e leite condensado, fazendo uma vitamina grossa que azedava depressa, por isso era guardada na geladeira.
(O amigo Cláudio Shikida estranhou o ingrediente “ovo de pata”; não sabe onde tem à venda. Ora, eu também não sei. Mas as mães dos anos 70 sabiam, e é quanto basta. O segredo não atravessou as gerações.
A propósito, amigo Shikida: eu acho que o ornitólogo de gente é o antropólogo. Se for, estamos pior do que os passarinhos, porque os antropólogos enchem o nosso saco muito mais do que os ornitólogos amolam a passarada.)
Por fim, havia o leite de magnésia, cujos usos e propósitos eram mais universais. Minha mãe o usava para tudo: nas queimaduras (de praia, de fogão) e nas assaduras (menino de coxas gordas), nos desarranjos da barriga e nas suas securas, sobre as brotoejas e, conforme dia e farmácia caseira desfalcada, até tentando a sorte com a febre. Tinha gosto e consistência de gesso líquido, e era sempre frio, fresco, mesmo no pior do verão. Com o amaciamento geral da civilização ocidental, resolveram lhe dar sabor de hortelã. Ficou com gosto de gesso com hortelã.
É verdade que escapei dos óleos: o de rícino e o de fígado de bacalhau (que ainda está por aí atendendo pelo nome de Emulsão de Scott – que canalha, esse Scott – e também ora infantilizado com “sabores” laranja e morango. Sim, amigo, fígado de bacalhau mais laranja, fígado de bacalhau mais morango). O óleo de rícino também ainda está por aí, mas agora o sadismo da medicina o restringe aos velhos e a quem ter artrite. Mudam os tempos, mudam os costumes: o propósito original desses óleos era fortificar o corpo, a alma e a mente por intercessão da infelicidade, da miséria, do acabrunhamento e do horror – e funcionava. Deles foi a grande era do mundo: os descobrimentos, os impérios, a ida à Lua, Cole Porter.
Da próxima vez que for às ruas, amigo, não grite o nome de nenhum desses sacripantas que estão aí. Leve antes faixas com os nomes dos verdadeiros salvadores da nossa cultura: merthiolate! Biotônico alcoólico! Leite de magnésia! Emulsão de Scott! Queremos nosso caráter de volta.
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Uma vez um amigo meu, espírita, disse que franceses vinham ao Brasil aprender a respeito do kardecismo, extinto na França (de onde é originário). Vai acontecer a mesma coisa com esse papo de woke. Vamos mantê-lo conservado nessa água de picles nojenta que é a nossa “cultura”.
Em 2174 virão americanos para cá entrevistar umas deputadas trans, umas gordas cheias de tatuagens, cabelos coloridos e alfinetes nos beiços, uns barbudos de saias, um senador querendo criar cotas para descendentes de mamelucos haitianos nascidos na Penha, essas coisas.
O novo mundo e suas tendências arcaizantes.
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Tive o azar de ter que usar óculos desde os dez anos de idade. Meu primeiro par, que conservei até os quinze, era no padrão Clark Kent: quadrado, grande, preto. Era um handicap duplo, ter problemas na vista e usar óculos, ser quatro-olhos. Até porque o único charme masculino de usar óculos, que é olhar por cima deles com espanto, admiração ou censura, é ridículo em homens moços (as mulheres, de qualquer idade, têm outros truques).
Esse primeiro e clarkentiano par foi feito errado, e o meu problema original, uma miopia leve, se transformou num problema complicado: miopia aumentada num olho, hipermetropia criada em outro. E assim fiquei: um olho ruim para longe, um olho ruim para perto. Como os anos elevam tudo ao seu máximo potencial, fazendo crescer pelos nas orelhas e joanetes nos pés, hoje os meus dois olhos são ruins tanto para perto quanto para longe. O triste consolo é que são italianamente verdes.
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Amigos bons recomendam livros bons, e eu tento ser bom amigo dos meus leitores. Por isso é que vos recomendo o livro que ando lendo, O nariz do morto, primeiro volume da autobiografia ou da memorialística de Antônio Carlos Villaça (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006, 8 reais na bezzoslândia), bem recomendado por amigos bons deste seu criado. É muito bom, vale muito a pena: vai lá e pega, amigo.
Agora, curiosidades de pontuação, inesperadas para um livro que teve sua primeira edição em 1970 e terá portanto sido escrito na segunda metade dos anos 60. Me acompanhe.
(...) voz agradável de orador, espírito malicioso, leve, diria até – brejeiro (pág. 87).
Esse uso de um travessão entre o “até” e o “brejeiro” foi comum nos textos escritos no século XIX, até no começo do XX; em 1970, já era completamente desusado. Se fosse escrito hoje, esse travessão simplesmente não existiria, e a frase ficaria assim: “diria até brejeiro”. Vejamos mais um caso.
Ernesto, esse dizia que eu era: desensofrido (pág. 57).
Se o amigo for são ou moço demais, não saberá que esse uso dos dois pontos foi uma moda passageira entre brasileiros nas redes sociais há alguns anos, moda aliás particularmente irritante (para mim). Também é uso que remete a fins do XIX, começos do XX (não sei se quem escrevia assim em redes sociais sabia disso), mas, mesmo naquela época, não muito comum. Hoje, do mesmo modo, os dois pontos seriam abandonados, e a frase seria escrita “dizia que eu era desensofrido” (palavra cuja grafia, aliás, é desinsofrido, e quer dizer inquieto, agitado, impaciente demais, e não, como seria de esperar, alguém que não sofre ou deixou de sofrer).
Villaça nasceu em 1928; aprendeu a ler nos anos 30, e nessa sua biografia diz de seu amor por escritores justamente do final do XIX, entre eles Rui Barbosa, que Villaça deve ter lido em edições de época; daí ter conservado, naqueles recônditos da cabeça que ficam debaixo de escadas ou em porões empoeirados, essas ideias de pontuação (que são raras ao longo do livro). Por outro lado, não se fechou à língua mais recente: na página 106, por exemplo, o vemos chamar a filosofia francesa do pós-guerra de “xaropada” (com toda a razão).
Eu gosto de prestar atenção nessas coisas, o que faz de mim, dependendo da beleza do dia ou do donaire das outras companhias, um camarada meio cansativo, meio chato. Tenha paciência comigo, sim? Aliás, me permita o amigo cagar outra regrinha: pontuação é civilização.
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A obra toda do Villaça está muito baratinha na bezzoslândia amazônica. Claro, ela pertence ao tempo morto em que escritores brasileiros não dedicavam cada maldita vírgula dos seus livros à peroração ideológica, a cada ismo que esteja em voga. Aproveite.
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E, pontuando esta newsletter, vai o link para a minha crônica nova na Crusoé.
Pontuada, pois, está. Até semana que vem.
Sobre "desinsofrido": nunca tinha visto, mas dou fé que, em certa região de Minas Gerais, quando querem dizer que alguém é agitado, inquieto, dizem que ele "não tem sofrimento".
Orlando, minha mãe, ao deparar-se com mal uso de algo, dizia: Ihhh, isso é desperdício igual olhos verdes em pessoa feia!
Parabéns pelo texto!
Como sempre, muito bom.