A série, geralmente dolorosa, de experiências que faziam de nós gente adulta hoje serve para vender calmante.
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Um mito dos meus tempos de juventude, firme e forte por aí até hoje, é o de que, no Brasil, o ano só começa depois do Carnaval. Ninguém que tenha pegado um metrô cheio às sete da manhã no dia cinco de janeiro acredita nisso; mas o mito se perpetua.
Bem, falo de São Paulo. Talvez no Rio e em Salvador a realidade seja diferente.
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Morreu por estes dias o cartunista americano Jules Feiffer. Ele começou nessa vida dando uma mãozinha (ou mãozona) a Will Eisner nos quadrinhos do Spirit, lá nos anos 40, ficando com ele por cerca de dez anos, colaborando firme principalmente nos roteiros. Depois firmou-se como desenhista e se tornou habituê do Village Voice, onde publicou uma tira por mais de quarenta anos. Para sua sorte, compadre meu, gente de sensibilidade lançou vários livros dele neste cada vez mais triste Brasil: Um barril de risadas, um vale de lágrimas; Mate minha mãe; O homem no teto; Enquanto isso; Coisas de arrepiar; Um zoológico no meu quarto, e outros. Todos eles valem seus suados reaizinhos, amigo: é humor judeu, tá?, e se você não sabe ou não tem lá muita certeza do que eu estou falando, eis uma chance de descobrir. Tome aí um cartum dele nas fuças, amigo, pra te estimular:
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POTUS soa muito melhor do que PRFB: é como comparar o nome de um romano gordinho com o som de um peido.
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Estou no ponto de ônibus, esperando o eléctrico. Trajo uma das minhas muitas camisas do Juventus. Sentada num dos bancos, uma senhora muito bronzeada, cabelos pintados, porém nitidamente queimando óleo 70, me encara. Seu queixo é comprido e meio jogado para a frente; penso em ascendência espanhola. Ela aponta a minha camisa e pergunta:
— Quanto foi ônte?
“Ônte.” Sotaque entre o bananês e o adonirânico, línguas primevas que ouvi. Me sinto bem, me sinto meio em casa. You had me at ônte.
— Dois a dois – respondo. O jogo, caso o amigo esteja curioso, foi com o Rio Claro, pela segunda rodada da segunda divisão de São Paulo, também chamada Série A2, e aconteceu, como escreveria o Mazzoni, “na romântica cancha de Rua Javari”.
— Bão – responde ela, bufando no ditongo. – Pêlo mêno num perdeu.
— Pelo menos isso – respondo, solidário no conformismo. – Mas foi por um triz. Empatou no último minuto.
Ela ergue um pouquinho a cabeça, mostrando um traço de coqueteria antiga, e diz:
— Eu sô cunselhêra do Juventus. Vitalícia.
Eu estava achando que era só uma senhora puxando assunto (acontece muito, especialmente no bairro onde moro: há muitos velhos querendo papo), mas, olhe, amigo, é uma conselheira vitalícia. Eu estou sempre na vizinhança dessas microcelebridades, desses quase VIPs. Entretanto sou civilizado, faço as caras e ruídos apropriados da admiração, inclusive pelo “vitalícia” posto assim, separado. Ela continua:
— Eu nem vô lá – e move a cabeça na direção vaga do estádio, situado duas ruas para baixo. – Eles num gosta de mim lá.
Olho para a velhinha e, por mim mesmo, vou imaginando algumas razões pelas quais ela não seria gostada por “eles” lá, sejam “eles” quem forem – possivelmente os torcedores, ou os conselheiros que vão ver os jogos. Mesmo assim, pergunto:
— Por quê?
Primeiro, ela desvia:
— O senhor é juventino?
— Sou palmeirense biológico – respondo – e juventino por adoção. E a senhora?
— Eu sô Curíntia.
Pausa. De fato, ela começa a me lembrar levemente a Marlene Matheus. Começo a achar que já, já ela vai puxar um Roliúde da bolsa. Mas não puxa.
— E Juventus também, né. Ma eles num gosta de mim, porque, se fosse por mim, acabava tudo lá, acabava o futibó.
Minha cara de surpresa deve ter sido genuína, porque ela continua:
— É porque é tudo ao contrário, intendeu? O futibó devia dá dinhêro pro crúbe social, ma no Juventus é o crúbe social que sustenta o futibó. Eu por mim sô a favor da SAF, sabe?, porque a SAF paga tudo no futibó e dêxa o crúbe social co dinhêro dele.
— Mas eu li por aí que o clube recusou a SAF.
— É porque oferecêro pôco. E nóis ainda discubrímo que o chinês que fez a proposta, era proibido pela FIFA de negociá cum êle, a FIFA vem em cima se você negocia cum êle. Sabe cumo é que é os conselhêro, né? Nóis levanta tudo.
Nisso ela aproveita para se levantar e pegar seu ônibus. Não era o eléctrico; esse demora para vir e eu fico lá, relembrando o bananerês e o adonirânico da infância. Tios, tias, avó, mesa da cozinha e alguém me mandando í arranjá sirvíço.
Era aliás o que eu estava indo fazer.
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Por exemplo: futibó. O segredo do sotaque da velha São Paulo está no “t”. Ele não soa como “tch”, futchibó; é um “t” alveolar, pronunciado com a ponta da língua tocando aquelas almofadinhas das gengivas que ficam atrás dos dentes incisivos de cima, mais ou menos como acontece com o “d”, e que transforma o “e” seguinte em “i”.
Um exemplo sonoro disso: os Mutantes cantando “A minha menina”. Escute nos fones o modo como o Arnaldo canta “a lua pratiáda se escondeu e sol dourado apareceu”. Escute isso, e a seguir o transforme em mulher, lhe dê mais de setenta anos, lhe estique o queixo, e o ponha ao meu lado esperando o ônibus na Moóca e falando no futibó.
Ou lembre da Catifunda. Como, o amigo não conhece a Catifunda? Olha ela aí:
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Ir arranjar serviço. Não se dizia “vá trabalhar”, “vá caçar o que fazer”; se dizia pra “ir arranjar serviço”. Vá dar serventia à sua existência, vá ver se você serve para alguma coisa.
Os caras não amaciavam.
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Já tive oportunidade de comentar com o amigo, nesta newsletter, o papel que tiveram Olavo de Carvalho e Antônio Carlos Magalhães no processo lento, mas seguro, que culminou na minha reaproximação com a Igreja.
Escrevo reaproximação porque não sei bem se deva dizer a minha conversão. Por um lado, a palavra me parece inadequada porque nunca apostatei do meu batismo (que aconteceu no Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, posto que nasci num 13 de maio); se cheguei a fazê-lo, foi de forma tão fortuita e desimportante que nem recordação guardei dessa apostasia, daí que de coração nunca apostatei, e portanto não sou converso. Por outro lado, nunca dei bola para esse mesmo batismo senão muito tarde na vida, quando começou esse processo lerdo de convencimento e aceitação do Cristo e de sua única Igreja – processo tão poderoso, tão cheio de sustos, revelações, percepções, entendimentos e rompantes emocionais que não seria absurdo chamá-lo, sim, de um processo de conversão: por ele, afinal, mudei (ou venho tentando mudar) o rumo da vida.
Menciono isto como exemplo de que as coisas às vezes correm entre os rejuntes dos conceitos e da doutrina, não se encaixam exatamente dentro das categorias mas, no entanto, tudo concorre pro mesmo fim, whatever works. Converso, reconverso, reconduzido, tanto faz: o que importa é estar lá.
Fiquei pensando nisso enquanto lia a parte da biografia de Antônio Carlos Villaça que se refere a seu tempo como noviço entre os monges de São Bento, no Rio de Janeiro, e de como descobriu que não queria a vida monástica, que foi arrastado para ela por um arroubo de jovem que não conhecia muito bem a si mesmo, não sabia a sede exata onde moravam as suas aspirações.
Gnôthi seauton, conhece-te a ti mesmo, dizia um filósofo (sou fraco nisso: Sócrates? Platão?), e isso, admita o amigo, não é sopa. Perto dos sessenta, ainda me espanto, lá de vez em quando, comigo mesmo – geralmente em maneira de decepção: tu quoque, Orlande? Porque isto de conhecer-se a si mesmo é também, e muito, decepcionar-se consigo mesmo, descobrir-se aquém das forças e dos méritos almejados.
Bem, em todo caso, sempre soube que não dou para monge, ainda que o mundo – vasto prum poeta aí, cada vez mais estreito para quem envelhece – pareça convidar mais e mais tantos e tantos a ser, a tentar ser, o que não são.
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Nós somos o que somos, queiramos ou não, amigo; vamos torcer para sermos algo bom. Bah, o amigo é bom; eu é que, se calhar, não sou. Mesmo assim, vá ficando, sim? E até mais ler.
Ótima como sempre, Orlando.
Se me permite: creio que a menção ao ACM deveria ser ao Antônio Carlos Villaça, não? Dificilmente o ACM faria alguém se reaproximar da Igreja! Ou não (leia-se com o sotaque baiano aplicável).
Feiffer era dos grandes,além de Quadrinhos,tiras e cartuns, também era bom roteirista e trabalhou em desenhos animados da Terrytoons ,sob direção do Gene Deitch,inclusive o seu conto Munro(sobre uma criança que é convocada pelo exército),também com direção de Deitch, recebeu o Oscar de melhor curta em 1961