192. Odisséia; dirty blues e Flávio Cavalcanti; the dead; boy; Zé Ramalho e David Lynch; Twin Peaks; goiabinha, inner jokes e mistério; Jorge de Lima; Lua; link
Odisséia paulistana de janeiro e fevereiro: voltar para casa em dia de tromba d'água. (Consegui, estou bem, acho que só perdi a ponta de uma orelha.)
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Nesta idade provecta fui saber da existência dos dirty blues, que também atendem, ou atenderam, pelo nome de bawdy blues: eram uns blues com letras sexualmente muito explícitas. Quase como um desses funks que tocam hoje nas festas infantis. Bom, talvez não tão explícito, mas explícito mesmo assim.
Conheci essa parada ouvindo Lucille Bogan cantar Till the cows come home no perfil de Instagram – muito engraçado – chamado honest2betsy. “Betsy” deve ser o apelido da moça que aparece nele: vestida como uma mulher dos anos 40/50, tocando um instrumento (piano, violino, sanfona) ou fazendo alguma das coisas que um dia as mulheres fizeram – tricô, olhar um álbum de fotos – ela ouve canções (reais) e estranhíssimas dos anos 20 a 60 com letras sobre envenenar pombos na praça, rixas sangrentas de família, mulheres matando seus maridos e coisas assim. É tudo sempre igual: ela começa, faz um ar de aprovação à letra inicialmente anódina, e vai se espantando com o que ouve depois. Ao final, entra uma filmagem antiga de uma loirinha quebrando um disco, à lá Flávio Cavalcanti (talvez o amigo seja jovem demais para se lembrar de Flávio Cavalcanti; procure, você acha. Antônio Maria o apelidou de Boca Júnior).
Não sei bem por que, mas programas de auditório sempre foram populares. Meus pais viam – nos anos setenta – o Flávio Cavalcanti e, depois, o J. Silvestre (minha mãe adorava um quadro chamado “Esta é a sua vida”, que celebrava heroísmos e dificuldades de celebridades da época). E já falei por aqui do Sílvio Santos.
Cavalcanti era uma espécie de predecessor de gente como o Ratinho (não tão esculachado) ou o Datena (não tão nervoso: Cavalcanti era frio, ainda que afetasse indignações): dedo em riste e falas duras contra os desmandos do mundo, ou o que assim lhe parecia. Era detestado pela esquerda, e não muito amado por aquela parcela enorme de gente que não quer saber das chatices políticas do dia e por isso é tida como de direita. Quando o víamos, seu programa ia ao ar pela Tupi de São Paulo, o que devia ser sinal de decadência: nos anos 60 ele estava em algum canal do Rio. Digo decadência, mas acho que foi por essa época que a velhacap começou a perder a corrida cultural para São Paulo (a econômica já perdera fazia algum tempo). Flávio tinha uma voz poderosa, inconfundível; passadas décadas, sei que posso reconhecê-lo falando depois de meia frase.
Agora me ocorre que talvez Freud se interessasse em saber como foi que um texto que começou tratando de dirty blues terminou em Flávio Cavalcanti. Mas Freud is dead, amigo; deixa ele pra lá.
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Freud is dead, the Queen is dead, Paul is dead too (mais sobre ele lá no fim, dead mas ao vivo).
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Eu já era adulto – tinha dezenove anos – quando Curtindo a vida adoidado (Ferris Bueller’s day off) saiu nos cinemas, em 1986. Causou sensação entre a gente da minha idade, como antes tinha sido com O clube dos cinco, mas mais, porque, afinal, muito mais divertido em certas partes. Daí fui vê-lo, e saí da sala pouco impressionado (mas achando Mia Sara a gracinha do ano). Lembro de um amigo que o viu antes de mim resumir o filme assim: “é um boy, fazendo coisas de boy”.
Éramos idiotas, o amigo já vê. Desculpo um pouco a mim e à minha idiotice particular lembrando que, materialmente, a vida de Ferris e companhia bela, quase-adultos de classe média do país mais rico do mundo, era muito diferente da nossa, de moleques das classes C ou D do Brasil: não tínhamos quartos enormes, só nossos, cheios de coisas; morávamos em casas pequenas ou apartamentos pequenos; não sabíamos dirigir; e dinheiro na mão não era vendaval, não era nem brisa, porque cadê dinheiro? E a vida estudantil? Inconcebível um diretor de escola ou um inspetor de alunos ir às nossas casas ver por que tínhamos cabulado aula: mais fácil aparecer a polícia. É claro que Ferris parecia um boy, fazendo coisas de boy. Éramos ressentidos.
Demorei um pouquinho para entender que o filme não trata das possibilidades materiais de diversão do sr. Ferris, mas sim de um dia de folia antes de resolver o que fazer da vida, um dia de zoeira antes das coisas ficarem sérias de verdade.
Entendi isso quando me lembrei de mim mesmo em casa, em dezembro de 1981, terminada a oitava série e desfeita a turma com quem eu vinha junto desde a quinta série, em 1978: estava sentado na cama, ouvindo no rádio a Baby Consuelo cantando Dia de índio, deprimido pela música, pelo dia e pela circunstância de sentir saudades de gente que tinha visto no dia anterior, sabendo que muitos deles eu vira pela última vez (foi assim mesmo). Era um pouco a vida adulta, sempre antecipada em países piores e em classes mais baixas: quatro meses depois eu já estava trabalhando como office-boy. Eu fui um Ferris do mundo bizarro.
É a mesma coisa. É sempre a mesma coisa.
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Boy, claro, era um encolhimento de playboy. Que depois, graças ao pessoal do Casseta & Planeta, virou mauricinho, e sua parte feminina, que não chamávamos de girl, não dávamos nome nenhum na verdade, virou patricinha. Mas nem os boys daqui eram como Ferris; aqui nunca houve nada parecido. Me lembro da primeira vez que ouvimos Chão de giz, do Zé Ramalho: meus vinte anos de boy, that’s over, baby. Nos perguntamos se Zé Ramalho dava à palavra boy o mesmo sentido que nós, e não desfizemos a dúvida cumprindo a tarefa de casa muito simples e óbvia de imaginar o Zé Ramalho como um garoto do Jardim Europa ou de um subúrbio de Portland.
Zé Ramalho e suas letras que, pelo menos aqui para mim, são uma espécie de versão por escrito dos roteiros do David Lynch. É isto: Zé Ramalho letrista é o David Lynch da MPB. Se o amigo duvidar ou não aceitar, permita que eu lhe recomende os versos da mesma Chão de giz, ou da louquíssima Canção agalopada, ou até do Frevo mulher:
Espalho bolas de canhão:
é inútil, pois existe um grão-vizir.
E
Sete botas pisaram no telhado,
sete léguas comeram-se assim.
Sete quedas de lava e de marfim,
sete copos de sangue derramado.
Sete facas de fio amolado,
sete olhos atentos encerrei;
sete vezes eu me ajoelhei
na presença de um ser iluminado.
Bem, talvez aí haja hermetismo, macumba, simbolismo, assuntos em que reconheço de pronto minha incompetência. Mas também:
Quantos homens eram inverno, outros, verão,
outonos caindo secos no solo da minha mão.
(...)
Um olho cego vagueia procurando por um.
É David Lynch ou não é?
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Por ocasião da morte do Lynch, aliás, me descobri muito pouco ligado na oeuvre dele. Vi Veludo azul e me lembrava somente de Isabella Rossellini going down no goiabinha Kyle MacLachlan, que fazia as caras, bocas e ruídos apropriados; e vi Eraserhead, que me custou um pouco terminar: achei nauseante, por isso mesmo também impressionante. Vi Duna sem saber que era dele. E vi, por fim, aquela piada esquisita que é ele dando uma de tira durão pra cima de um sagüi malaco. Pouco. Os streamings puseram à minha disposição Wild at heart (Clarice Lispector?) e Lost highway, que verei logo.
Enquanto isso, a TV a cabo me ofereceu Twin Peaks, em versão lamentavelmente dublada, e resolvi encarar. E, bah, desse tenho gostado. Vi ontem o terceiro episódio da primeira temporada, que termina com MacLachlan tendo um sonho no qual aparece um anão que é a cara do Olavo de Carvalho. Imagens lindas (principalmente na abertura), humor negro, roteiro com esquisitices (quem chamou o FBI? Como o legista sabia que Laura Palmer transou com três homens no dia em que morreu sem analisar o ADN dos, ah, vestígios?), mulheres lindas sem os exageros de funilaria de hoje em dia, trilha sonora bem anormal. Acho que vou até o fim.
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Kyle MacLachlan, o goiabinha. O primeiro filme dele que vi, na companhia dos falecidos W. C. Oliveira e Gollum, foi The hidden, que aqui ganhou o nome óbvio de O escondido, ficção científica muito engraçada em que um bandido alienígena fã de carrões e heavy metal se esconde em corpos humanos na terra e é caçado por um policial ET – o MacLachlan. Nós o achamos com cara de bebê, e o Gollum, que era quem dava os apelidos, o chamou de goiabinha. Quando, pouco tempo depois, ele pegou a fita (videocassete, é) do Duna, nos chamou para ver dizendo que o protagonista “era aquele goiabinha”, para a gente se situar. Nos situamos. Tanto que até hoje, quase quarenta anos depois, sempre que vejo o Kyle penso: ah, sim, o goiabinha. Uma inner joke que ficou.
Noutro dia, aliás, eu estava ouvindo um disco ao vivo de Paul McCartney chamado Amoeba gig, tremenda apresentação, como soem ser as dele. No finalzinho, Ringo Starr sobe ao palco para tocar I saw her standing there com a banda de Paul, que saúda o Ringão à base do I love him e tudo. E depois Paul diz o seguinte:
— Well, Elvis has left the building!
Ouve-se Ringo dando uma gargalhada alta. Só ele. Fiquei com a impressão de que era uma inner joke lá deles, uma dessas em que a gente só penetra se um dos envolvidos explicar – e, explicada, talvez não tenha muita graça, se tiver alguma.
W. C. e Gollum (ele tinha nome, mas o perdeu quando virou o Gollum) já morreram; sobrei como depositário fiel e único de uma série de inner jokes que não tenho mais onde ou com quem usar (salsichas Rei do Mar; Mi-zi-za; fala, palíndromo). Bom, talvez as use falando sozinho. No fundo, são todas bobagens: vão morrer comigo, e nem o mundo, nem a humanidade perderão grande coisa.
Mas ficam aí como provas de que mesmo o mais banal dos homens é um mistério nunca inteiramente devassado ou resolvido.
Não digo que mistério interessante, mas mistério sempre.
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É o que me lembra: minha mãe dizia,
quando eu apenas meus seis anos tinha,
Nossa Senhora, em seu altar, havia
sido quando nasci minha madrinha.
Depois... (eu bem o sinto), que alegria
esta Santa nos olhos entretinha!...
— Uns olhos verdes, como verde eu via
minha esperança, que nascendo vinha.
Vinte e dois anos passam, desenganos
afloram, com a perfídia dos abrolhos,
que as naus aventurosas desarvoram;
e eu me recordo então dos meus seis anos,
e noto que no luto dos meus olhos
os Olhos Verdes da esperança choram.
Ricordanza della mia gioventù, soneto de Jorge de Lima escrito em 1921. Jogaram fora, num lixão de Belo Horizonte, a biblioteca desse poeta enorme.
Ultimamente falou-se muito na atual “elite intelectual brasileira”, que – confesso – mal li e pior lerei; em todo caso, duvido que dela tenha saído um verso como “e noto que no luto dos meus olhos”.
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Com nove anos de idade, o poeta Jorge de Lima tinha pena da Lua sozinha no céu.
Todo o mundo é Lua, poeta.
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Jogaram no lixo a biblioteca do Jorge de Lima.
A queda do Brasil é pior do que a do Império Romano.
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No mais, amigo, tem crônica na Crusoé. Lê lá, e me reencontre aqui na semana que vem, no segundo mês do ano que, como todos os últimos anos, voa, não corre. Até lá.
Outro dia li um texto bacana, que interpreta que Em Curtindo a Vida Adoidado, o personagem principal não é o Ferris, mas o Cameron. Aliás, adoro rever a cena do museu, com trilha dos Smiths (sempre complicado se referir a banda que começa com "The" não acha?). Eu já acho que o personagem mais interessante é o diretor, o típico burocrata brasileiro, que só quer acabar com a alegria de alguém.
Essa da biblioteca foi de doer. Não temos nenhum interesse em nós mesmos, no nosso passado.